terça-feira, outubro 17, 2006

Clarice Lispector

Clarice Lispector está localizada no Terceiro Tempo Modernista, que se caracteriza por uma intensificação da questão propriamente modernista – a busca de uma nova linguagem.
É que a realidade do século XX parecia não “caber” dentro da linguagem da tradição literária, cuja erudição vocabular e sintática não se coadunava com o espírito diferente do novo século.
Na esfera temática, o Modernismo fraturou os temas antigos e trouxe a pauta do século XX para sua arte: a tecnologia e seu ritmo alucinante, as grandes guerras, a desumanização do homem, a nova utopia da igualdade comunista...
Na esfera lingüística, o Modernismo rompeu com a linearidade narrativa e sintática e a erudição, relevando o prosaísmo e o cotidiano como fonte de criação artística.
A primeira fase do Modernismo brasileiro foi implacável no objetivo de destruir o academicismo reinante nas nossas letras e centrou-se mais na pesquisa de uma nova forma de expressão, tanto do ponto de vista lingüístico como do temático.
A segunda, já desobrigada dessa busca, constatou e analisou os fatos nacionais e internacionais; deu testemunho, denunciou, levantou causas e efeitos, lutou, indignou-se: o século XX aparece nessa fase descrito em toda a sua crueza.
Num último momento, o Modernismo parece secundarizar os fatos e priorizar as repercussões dos fatos nos indivíduos, ou os registros das impressões subjetivas – é o tempo de James Joyce, Virginia Woolf e, aqui no Brasil, Clarice Lispector, que se dizia mais uma “sentidora” do que escritora.
O “fluxo de consciência” é a técnica usada por esses escritores para alcançar o íntimo de seus personagens: a narrativa mergulha o leitor nos seus pensamentos, sem garantir, no entanto, articulação lógica, temporal e espacial entre as idéias, o que quebra a tradição narrativa completamente.
Em Clarice, isso se soma a um “momento de epifania”, ou seja, um momento privilegiado de revelação quando “algo” acontece e muda completamente o “eu” do personagem, que, assim, triunfa sobre o cotidiano alienante, o grande tema da autora.
Por fim, Clarice Lispector, num toque de renovação e intensificação, tudo isso coroa com uma linguagem original que parece se realizar por meio de uma potencialização das virtualidades do idioma, o que a situa ainda dentro das balizas do Modernismo, cujo corolário mais forte parece ser a experiência com a pluralidade lingüística.

domingo, outubro 01, 2006

"O cão sem plumas", de João Cabral de Melo Neto

"O cão sem plumas", de João Cabral de Melo Neto, tematiza o rio Capibaribe que corta a cidade do Recife. É um longo e hermético poema que denuncia não só o estado do rio, mas também a situação de exclusão da população ribeirinha, à margem de tudo.
Para começar a entendê-lo, é preciso saber que seu autor pertence ao Modernismo, estilo de época que se deu, no caso da poesia de que tratamos, na quebra dos elementos da tradição literária do passado - o verso e sua estruturação sintática, a estrofe, a rima e a lógica, ou seja, o autor em questão mostra clara influência do Surrealismo, movimento modernista do começo do século XX que se construiu, na literatura, sobre lapsos e lacunas sintáticas e sobre a quebra da estruturação lógica do pensamento e de sua tradução lingüística equivalente. Advêm daí as comparações algo estranhas que são feitas ao longo do poema e a falta de estruturação linear na sintaxe frasal.
Além disso, as escolhas vocabulares do autor remetem a um objetivismo incontestável que quebra o subjetivismo presente na lírica de tradição romântica. Desse modo, pode-se dizer que João Cabral também objetiva destruir a troca sentimental e emocional que há entre o eu-poético e o leitor na tradição ocidental.
O poema se constrói em duas instâncias geográficas: a da geografia física, que reflete sobre as questões regionais propriamente ditas (a descrição do rio, sua desembocadura, seus mangues e o processo de seu desaguamento no mar), e a da geografia humana, que nos faz pensar não só sobre as condições sociais e econômicas do homem que habita suas margens, mas também sobre o que faz de um homem um homem, ou seja, o poema parte de uma reflexão sobre a região e se completa com outra de caráter mais universal.
Há ainda, para a compreensão do poema, de se relevar uma oposição: a que o autor criou entre as coisas como deveriam ser e as coisas como na realidade se apresentam. Assim, ao falar da água do rio, ele sonha com a água perfeita (a água do copo, a água da chuva azul, a água que se abre aos peixes, a água que teria os enfeites ou as plumas das plantas), ao mesmo tempo em que sofre ao constatar que ela não existe no rio Capibaribe, cuja água tem lodo, ferrugem e lama. Também, ao se referir ao habitante das margens do rio, o autor reflete sobre o que um homem devia ser (sonho e pluma) e se revolta diante da dificuldade de achar, naquele ser, um homem.
Outro ponto que se pode ressaltar é a pertinente análise do meio ambiente, sem isolá-lo das questões humanas - rio e homem são entidades indissociáveis no poema, tão confundidos que não é possível saber onde um começa e outro termina; a pobreza e a negritude do rio é causa da pobreza do homem negro de lama.
Por fim, há um claro posicionamento do poeta no sentido de chamar o leitor à reflexão sobre o fato de que o rio será aquilo que o homem fizer dele, como a ave que conquista o seu vôo, e sobre a sociedade, que transforma o rio num não-rio, o mar num não-mar, o mangue num não-mangue e o homem num não-homem.

"Grande sertão: veredas", de João Guimarães Rosa

Há vários enredos dentro do “Grande sertão: veredas”, de João Guimarães Rosa, livro fundamental da literatura não só brasileira, mas também ocidental, por contemplar todas as dimensões humanas.
O primeiro enredo é uma história de jagunços ou cangaceiros, como a palavra é mais conhecida aqui no Nordeste. Tem um sabor todo especial numa seqüência intensa de episódios que relatam uma história de traição, vingança e lutas entre dois grupos rivais que se enfrentam numa batalha decisiva: o grupo de Joca Ramiro, de cangaceiros motivados pelo Bem (mas que nem sempre agiam corretamente), e o de Hermógenes, motivados pelo Mal, total e cegamente. O narrador, Riobaldo, conta a sua versão dessa saga de pistoleiros, de como ele se tornou chefe e de como, sob sua chefia, o grupo venceu o inimigo, num monólogo ininterrupto que parece ser presenciado por um interlocutor, em silêncio.
O segundo é um enredo de amor: ampliando os sentidos do livro, o narrador acrescenta à dos cangaceiros uma linda história na qual ele se flagra sentindo “amor encoberto em amizade” por outro rapaz do grupo chamado Reinaldo ou Diadorim (o nome como só Riobaldo o chamava). Na verdade, no final do livro, tanto o leitor quanto o interlocutor ficam sabendo que Diadorim era uma mulher vestida de homem e que vivia disfarçada entre os jagunços para vingar a morte do seu pai, Joca Ramiro.
Esses dois planos entrelaçados já são muito difíceis de narrar, e Riobaldo tem pouco estudo. Aí começa a terceira aventura desse livro genial: numa oralidade entre regional e virtual, o narrador vai ampliando as potencialidades da língua portuguesa ao limite do possível e, vez por outra, faz sínteses filosóficas epifânicas que traduzem seus aprendizados existenciais – inventa palavras, usa aliterações, interrupções, recursos poéticos, numa festa lingüística inimaginável. Esse é o primeiro motivo de estar João Guimarães Rosa localizado no Terceiro Tempo do Modernismo Brasileiro, quando a linguagem tem uma característica inovadora e surpreendente, distante do traço clássico que ela possui no Segundo Tempo.
Enfim, nas entrelinhas, o livro explode de significados quando o sertão adquire uma significação ampla e parece ganhar um sentido de mundo (“O sertão está em toda parte”). A essa altura, Riobaldo, numa última e formidável ampliação, começa a contar, numa dimensão mítica, a história mesma do mundo e da magnífica trajetória do Homem que luta entre o Bem e o Mal. Começa a representar os homens quando, usando o livre arbítrio, pactua com o Mal e começa a querer “ser mais”, sem “tolerar conselho ou contradição”. O poder cega-o completamente e ele vai enveredando pelo caminho da ira, da raiva, do ódio... Diadorim estranha-o, fica triste e vai tomando uma dimensão simbólica extraordinária, quando se torna, através do sacrifício da própria vida, o salvador de Riobaldo (e, portanto, de todos nós?).
Essa última reflexão, entre mítica, religiosa ou transcendente, aponta uma das mais profundas análises já feitas sobre a condição humana, raramente tentada e mais raramente realizada: “Grande sertão: veredas” é uma “bíblia” em que está recontada uma história mítica exaustivamente narrada em nossos sonhos, tradições, lendas, desejos... é uma história linda de amor que desperta a lembrança longínqua de que não viemos para dominar uns aos outros, mas para viver uns pelos outros... é uma história completa sobre esta condição ordinária de ser gente que erra, acerta, perdoa, ama, escolhe, se arrepende e, no fim, narra para deixar para o outro o registro de uma vereda.