domingo, março 04, 2007

Planeta Babel

Um dos fantasmas do século XX parece ter ultrapassado a barreira do seu tempo e, incólume, assombra o século XXI: o malogro da tecnologia de comunicações.
Não que ela, em si, seja falhada. Ao contrário: o que conseguimos nessa área nem parecia possível há bem pouco tempo. Telefones, celulares, fax, chipes... e a ligação invisível entre eles e os satélites artificiais em sua eterna órbita são conquistas colossais e irrenunciáveis, não há dúvidas.
O problema é que tudo isso não nos aparelhou para nos comunicar bem uns com os outros. Nossas incompreensões restam vitoriosas, apesar da facilidade com que poderíamos nos comunicar, se fôssemos capazes. A queda do Muro de Berlim, o aperfeiçoamento e o conseqüente barateamento da comunicação a longa distância, a globalização e sua falácia de igualdade, a indústria de produção e distribuição de cultura, nada, nada mesmo conseguiu facilitar nossa comunicação.
Incompreensões triunfantes – esse é o tema do filme “Babel”, de Alejandro González-Inárritu.
O enredo se dá em quatro cantos do mundo – Estados Unidos, México, Marrocos e Japão. O nacionalismo, portanto, de raspão, é um dos temas do filme, pois constitui uma de nossas fábricas de incompreensões. Mas os autores da narrativa não se detêm nesse ponto, que, na verdade, é uma ferida do século XX, e eles querem empurrar a reflexão mais para frente.
Na história, há incompreensões de toda ordem: entre marido e mulher, entre pai e filho (ou filha), entre turistas (o que soa irônico, pois o turismo é a mais próspera indústria da globalização e parece ser um vetor de aproximação entre as pessoas), ou entre turistas e o povo do país visitado, entre governos, embaixadas, entre policiais e civis, entre tia e sobrinho, entre pessoas consigo mesmas... Ninguém sabe tudo de ninguém – há gritos engolidos, silêncios, dores mudas, medos inconfessados, culpas esmagadoras e desejos que não se sabe ou não se pode articular.
E nem uma proximidade inexplicável, como a de esposos de longas datas, que a cena da “aparadeira” tenta mostrar, impede essas incompreensões de ocorrerem, de modo dilacerante. Mágoas, ressentimentos, perdões adiados, diálogos partidos, agressões desnecessárias vão sedimentando camadas que nos endurecem e nos destroem e aos nossos relacionamentos tão frágeis e tão cheios de falhas.
A história também lembra o fato de que nossas incompreensões já existiam antes do “onze de setembro”, que inaugurou o terrorismo como causa de violências inomináveis: “o imponderável de Almeida”, como chamava Nelson Rodrigues, foi o detonador do incidente central do enredo, mas certos ruídos já apontavam um terrorista como o autor do disparo. E as notícias corriam o mundo, no Japão sabe-se notícia da mulher ferida, identifica-se o registro da arma, na fronteira entre o México e os Estados Unidos, um policial “acessa” o pai de crianças perdidas no deserto, todos os telefones e todos os televisores funcionam, os “walk-talks” também, o celular da moça japonesa, que é deficiente auditiva, toca acendendo belas luzes azuis...
Mas a incomunicação é monstruosa de grande: esposas se suicidam; filhos morrem e seus pais, em luto, não conseguem confessar sua dor intensa, de incompreendida e incompreensível; esposos fogem, sabe-se lá como ou para onde, quando é preciso que fiquem em casa para consolar; há fronteiras que são lugares explodidos de tensão; línguas diferentes; brutalidades; há quem procure no sexo ou nas drogas o afeto de que precisa; fotógrafos, jornalistas, aos ventos, anunciam que os culpados serão punidos, como se a punição fizesse a bala perdida e sem razão voltar à arma e “desacontecer” o trágico e inexplicável episódio; há amores confessados a quem não acredita; pancadas; solidões nas montanhas e nas metrópoles; valores, culturas e crenças diferentes demais...
Entretanto, o filme não pára aí; não cega o outro lado da mesma moeda: algumas inexplicáveis compreensões que acontecem, tímidas, mas que existem; não falar delas seria trair a nossa natureza complexa.
Em “flashes” rápidos, é como se o diretor olhasse tudo numa outra perspectiva (como o telefonema do americano para a mexicana, que a gente vê de duas formas): uma mulher marroquina acalma a americana com seu cachimbo; o guia não aceita o dinheiro, como quem diz que ajudou por nada; o policial japonês, que recusa sexo, pois compreende o que habitava a menina; a festa de casamento no México; a queixa contra a babá mexicana, que não foi prestada; o pai, que abraça a filha, sob as luzes incontáveis de Tóquio; o esposo, que batia e gritava fora, mas que protegia e beijava a esposa, quando entrava na cela em que ela jazia, ferida; as duas crianças brincando no vento...
A síntese da mensagem do filme é a japonesa surda-muda: há em nós dificuldades ou até impossibilidades de expressão, mas não podemos nos render a elas. Ela é a única que se oferta e, portanto, se comunica, apesar de tudo; que expõe suas razões escondidas; que se desnuda e que, ao fim, ganha o afeto necessário.