sábado, dezembro 29, 2007

Coisas de ano novo

Ganhei de presente de Natal a oportunidade de assistir ao “Código desconhecido”, de Michael Haneke. Além de tudo, esse filme fez-me lembrar outro, chamado “A cidade está tranqüila”, de Robert Guédiguian, que aluguei para rever. São duas histórias sobre o engodo da globalização, as quais denunciam a violência decorrente do choque entre diferentes na França do começo do século XXI.
O “Código desconhecido” apresenta vários enredos que se entrelaçam de raspão. Uma jovem atriz, que segue sua rotina profissional de ensaios, estréias, dublagens e, ao mesmo tempo, relaciona-se com um fotógrafo de guerra, que só raramente está em Paris e cujo pai tem uma fazenda de que cuida, com a ajuda do filho mais novo. Há entre eles uma claustrofóbica e invisível cobrança – o pai não consegue dar conta da tarefa só, e os filhos, como todos os filhos, acham que têm de dar conta de si mesmos e de seus próprios desejos, já que todos nós somos frutos dos desejos de nossos pais, mas também o somos de nós mesmos. A forte imagem do assassinato das vacas traduz o que para o pai significa tudo isso: o primeiro filho, longe, e dando para o mais novo o exemplo de partir; a fazenda, uma impossibilidade; ele, atônito, diante das surpresas da vida. Outro personagem é um rapaz negro, filho de um africano que fez migração de retorno e sobrinho de um taxista. Tem uma irmã surda e, talvez por causa dela, seja professor de percussão numa escola especial. “Amadou” é o seu nome e ele é uma espécie de centro nevrálgico da trama: ele consegue comunicar-se com a surda, defende a imigrante romena na rua, encontra-se com uma moça branca... Ele tem a senha, o código, algo que ninguém tem: a tolerância, o compromisso com o próximo. Ele transita bem entre dois mundos, a África longínqua, que esconde seu pai, e a França impenetrável, a não ser pela arte. A atriz, numa das seqüências desarrumadas do filme, ensaia uma cena em que um torturador estuda sua aflição, por estar enclausurada num quarto de que não pode sair. Ela seria a França, presa de sua própria história, das conseqüências do neocolonialismo? Das três palavras sobre as quais forjou sua identidade – liberdade, fraternidade, igualdade? Nada é fácil, quando é humano: um rapaz branco (francês?) a constrange num metrô, cospe nela, um senhor interfere. Ela diz “merci”.
É um filme que fala da grave encruzilhada que a globalização armou: o inevitável contato entre diferentes culturas, religiões, raças e a falta da contrapartida necessária para isso – o amor, que tudo facilitaria e de que só somos capazes raramente. Não só culturas estrangeiras – a atriz está confusa com o casal que espanca a filha, questiona-se e ao noivo quanto ao que deve fazer e sofre muito com a conseqüência da violência e de sua própria paralisação – a morte da criança...
Ainda não sabemos o código que criaremos para este novo século... Só sabemos que não será aquele dos séculos XV e XVI, quando uma cultura se arvorava do direito de “desaparecer” outra, em nome da civilização.
Noutra perspectiva, o filme “A cidade está tranqüila” também pensa a globalização e seus efeitos. Seu cenário é a cidade operária de Marselha, cujo porto e estivadores estão no centro da trama. Os portuários, em assembléia, representam a morte da ordem sindical e socialista; um taxista, traidor(?), personaliza a busca de novos caminhos depois da falência geral. Em várias situações do enredo, ele é a porta de saída.
Essa história tem como personagem central uma mulher sofrida que trabalha encaixotando peixes gelados, tem uma filha drogada, uma neta recém-nascida e um marido desempregado. Seu casamento desmorona, sua filha morre de overdose e o taxista resolve ficar com ela. Entendemos depois sua relação anterior com o traficante que consegue a droga para sua filha e que se suicida.
Reformas urbanísticas, assassinatos, injustiças, tensões racistas, desemprego, tudo está presente naquela cidade que, “de cima, parece bem”, diz o africano islâmico negro, da varanda de sua namorada burguesa branca e francesa, que conheceu na prisão, onde ela era professora de música. Aliás, além dos detentos, ela tinha alunos excepcionais, cuja sala de aula é um dos poucos espaços felizes dessa história.
Há uma semelhança nítida entre os dois filmes: a música, proposta como uma espécie de código universal, é ponto de encontro da diversidade humana que, no horizonte, vencerá a homogeneidade. Os tambores dos surdos, de todas as cores e de todas as classes, conduzidos por um francês afro-descendente, híbrido de dois mundos tão diferentes, ou o piano, dedilhado na periferia de Marselha por um genial menino da Geórgia, são os elementos agregadores, são a coluna vertebral de um tempo novo, com um novo código que contará como conseguimos suplantar nossos impasses e como nossa babel foi derrotada pelo amor.

sábado, dezembro 08, 2007

Despedida

Há uma sensação de perda em mim quando se aproxima o fim do ano. Sou professora de Literatura para o vestibular e há, nesta época, uma necessária despedida que tenho que cumprir.
Quando o ano inicia, temo as expectativas dos meus alunos, fico de mãos trêmulas e frio na barriga, mas há um sentimento bom de amor que começa.
Eles riem do meu jeito expressivo e enfático de falar, encantam-se com meus raciocínios, divertem-se com minhas histórias e com minha "loucura".
Eu sei de cor que poucos não gostarão de mim, muitos vão me admirar e achar que tenho razão, e alguns se aproximarão e criaremos laços. Também sei que outros, mesmo sem chegar, longe, farão de mim uma referência para sempre nas suas vidas.
É que sou uma ponte, ajudo-os a entrar na universidade e seguir suas vidas. Quando o ano chega ao fim, portanto, há um sentimento triste de amor que termina.
É claro que já tentei desenvolver milhares de estratégias para me defender disso tudo, mas falhei: todo ano me apaixono por alguns deles e essa perda, mesmo que necessária, me faz pensar, sofrer... Também me faz retomar outras perdas... E resto triste, esvaziada, apesar das festas, alegrias e comemorações que são a cara deste momento todo ano. Aliás, às vezes, nem mais estou ao lado deles na hora do resultado, que foi "empurrado" para janeiro, quando é preciso descansar para recomeçar.
Às vezes, brincando, digo a eles que, em dezembro ainda, em pleno trabalho de parto, já é urgente engravidar de outros filhos, porque é necessário planejar horários, mudanças, reformas, pinturas para os que virão...
Meus alunos, neste momento, pensam que voltarão sistematicamente para me ver, aí não sofrem tanto. Mas eu sei que eles terão muitas tarefas e rotas novas e que virão uma ou duas vezes e desaparecerão para sempre ou para um encontro fortuito num banco, restaurante, sala de espera, que nunca é a mesma coisa... E, mesmo assim, eles me acolhem em abraços e palavras doces e mornas que fazem a minha vida inteira ter um gosto bom e um porquê.
Através deles, penso que contribuo para a construção de um país melhor, aos poucos, pois, se há uma coisa que não faço, é dar aulas apenas para treiná-los para fazer uma prova e, às vezes, chorando, falo a eles de meus sonhos, utopias, desejos... com a intenção de que eles me ajudem a concretizá-los.
Este ano, lendo, na aula, um poema de Drummond chamado "A noite dissolve os homens", chorei que só, porque metade do poema é sobre uma noite horrível que nos destrói e a outra metade é sobre uma aurora cheia de perdões macios que triunfará quando os sobreviventes da treva aprendermos a enlaçar as mãos, apesar de tudo.
Eles ficaram calados, em respeito ao meu sentimento... Meus óculos viraram um aquário... Esse momento ficou suspenso no ar...
Dou esse instante calado e bonito brotado dessa manhã luminosa que devagar moldamos, apesar das noites, na sucessão das gerações, tão visível na minha vida.
Recebo sua teimosia, sua inocência, sua coragem para seguir em frente, pensando que tudo vai dar certo.
Desejo que a chama dessa manhã acenda nossas vidas para que sejam chamas para mais velas.

Para Adriana, Beatriz, Bela, Bernardo, Beto, Caio, Fernando Henrique, Jota, Luzia, Mariana, Noelle, Peste, Rafael, Samarone, Sofia e Suennya, que, nomeados em ordem alfabética, como numa metonímia, são a parte que simboliza o todo dos meus alunos, que abraço em despedida.