domingo, junho 22, 2008

O tigre, a neve e o espelho

Ganhei de presente de um amigo o filme “O tigre e a neve”, acompanhado de um bilhete. Sua letra inconfundível dizia que o filme parecia comigo de alguma forma. Fiquei curiosa. Roberto Benigni não só divide o roteiro com Vincenzo Cerami, mas também dirige o filme e atua nele, fazendo, de certa forma, o mesmo papel que executou no seu mais famoso filme, “A vida é bela”. Andei percorrendo o “Google” para ver opiniões sobre o filme e muita gente escreveu sobre a falta de criatividade da atuação, como se ele fizesse sempre o mesmo filme. Discordo totalmente dessa idéia. Chaplin fez vários filmes com o mesmo personagem e, em cada um, foi desenhando o humano e o risível de forma original e única. E posso listar escritores que escreveram mais de uma vez a mesma história e terminaram por fazer um grande livro no caminho que percorreram, tentando.
De forma sutil, vê-se que "O tigre e a neve" é uma história de reconciliação. Essa é a primeira chave para se entender o filme. Attilio traiu Vittoria com uma colega inglesa da faculdade em que trabalha como professor de poesia, e ela, de maneira italianamente apaixonada, não lhe perdoa, num primeiro momento. Attilio percebe que não só se enganou, mas também que caiu num abismo e passa a perseguir a ex-esposa, tentando convencê-la a lhe perdoar. Mas ela resiste.
A segunda chave para se compreender o filme é o fato de o personagem ser um poeta − alguém que usa as palavras de maneira tal, que consegue fazer com que os outros sintam o que ele sente. Conseqüentemente, o filme todo tem uma parte subterrânea e metafórica. Na cena de Attilio conversando com suas duas filhas, ele fala de sua emoção quando um passarinho pousou no seu ombro quando ele era uma criança e de como, ao dizer à sua mãe o que acontecera, ela reagiu friamente.
− Minha avó era má? – perguntou uma das meninas.
− Não, respondeu o personagem, eu não sabia contar com as palavras certas. E, a partir daí, comecei a pesquisar e descobri que a profissão que eu queria ter era ser poeta, aquele que sabe falar de emoções de tal forma que os outros as entendem perfeitamente!
Um dia, Attilio convence sua ex-esposa a visitar seu novo apartamento e lá acontecem coisas mágicas, por meio da ajuda involuntária de sua ex-amante, numa cena impagável, mas, mesmo assim, ela exclama:
− Só voltarei para você quando vir um tigre na neve.
− Vamos para Bengala, ele diz.
− Não, quero um tigre na neve, aqui em Roma, ela o cala, definitiva.
Jornalista, Vittoria vai a Bagdá fazer uma entrevista com um poeta iraquiano (Fuad), amigo de Attilio. Lá sofre um acidente. Attilio é avisado e, sem ninguém entender como, chega imediatamente para socorrê-la de todas as formas: o médico diz a ele que Vittoria não tem salvação, mas ele sabia que o médico desconhecia a história como ela realmente era ou ia ser e lutou arduamente para salvar a sua amada. Na verdade, ele salvou-lhe a vida, com a ajuda de seu amigo iraquiano, também poeta; nossa insolúvel babel foi vencida por meio de suas palavras (quando ele convence o farmacêutico iraquiano a aviar a receita falando em italiano) e do seu amor.
Linda a cena em que Attilio e seu amigo Fuad conversam sob o céu de Bagdá, cheio de estrelas e de mísseis, pensando na torre de babel e, por conseguinte, nos nossos desencontros, violências e guerras...
Realmente, é um filme que se parece comigo, pois é um passeio pelos mesmos temas que recentemente visitei – nosso planeta é essa maldita torre, e as guerras nascem desse nosso defeito básico de não sermos capazes de compreender uns aos outros.
Como disse no meu último poema, e podemos ver no filme, alguns homens se matam durante as guerras; outros falam delas − de suas injustiças, destruições, incompreensões, dificuldades, prisões, brutalidades... tentando suplantá-las − e conclamam os outros a seguirem adiante, louvando a vida, apesar de tudo...
Nas últimas cenas, sem uma palavra, o diretor faz uma seqüência de metáforas visuais: Attilio tropeça e solta dois passarinhos de uma gaiola que tinha ganhado de presente das filhas; um deles pousa no ombro de Vittoria, que tinha visto um tigre quando havia pólen em Roma − o que lembrava neve − e, atrapalhado, como todos nós, sai (dizendo que vai voltar sempre) com a gaiola aberta e, portanto, sem sentido, por um portão, como quem diz que não vale a pena ficar preso em certas prisões (a da guerra, a do passado, a da lógica) e é necessário seguir, escolhendo o vôo (ou a liberdade) e o canto (ou a poesia), conceitos bem humanos, coisinhas que parecem pequenas, mas que dizem muito da nossa natureza e que fazem muita diferença quando queremos ensaiar um passo de tolerância.
O filme também parece dizer que certa dose de fuga, sonho, fantasia, surrealismo e, portanto, arte é sempre bom para essa natureza humana, tão complexa, que não se alimenta só de pão e realidade. Ao fim e ao cabo, acho que, como eu, também diz que nosso passado, com seus erros e acertos, não deve ser esquecido, mas perdoado. E perdoar, é sempre bom repetir, é se construir noutra direção, deixando que o passado fique no seu próprio lugar. E a vida flua vitoriosa no presente, o único pedaço do tempo que tenho na palma de minha mão, dádiva e enigma, ao mesmo tempo.
Quando me olho, eu sei que sou eu, mas o espelho não guarda o que passou.

domingo, junho 08, 2008

Outra despedida

Uma vez um aluno meu se aproximou de mim e perguntou:
− O que você é de Marcos Suassuna?
− Filha, respondi.
− Veja o que eu trouxe para você ver!
E me entregou uma coleção de receitas médicas escritas com uma letra firme que eu bem conhecia, enquanto acrescentava:
− Teu pai foi pediatra de minha mãe; quando ela era pequena, teve uma doença grave e teu pai a salvou... Por isso estou aqui... Acho tua letra tão parecida com a dele... Foi minha avó que guardou essas receitas...
Eram muitas; na verdade, havia ali todo o percurso de uma infância e suas inescapáveis injunções: leitinhos, sopinhas, analgésicos, dietas, antibióticos...
Sem as receitas, ao longo desses anos todos em sala de aula, isso aconteceu inúmeras vezes e sempre me emocionou muito – ver assim tão concretamente a justificativa da seqüência milagrosa das gerações e revisitar em mim as marcas fortes de meu pai.
No último dia 15 de maio, ele partiu. Tinha 86 anos, uma vida completa e a maior de todas as fortunas – o reconhecimento. Seus pares e seus incontáveis clientes referem sempre sua inteligência, sua perspicácia nos diagnósticos, seu desprendimento e sua dedicação. De fato, ao longo de minha infância e de minha adolescência, nunca o vi faltar ao trabalho, nem deixar de atender emergências a qualquer hora do dia, da noite, da semana.
Os gregos antigos costumavam dizer que, para saber se um homem foi feliz, é preciso esperar o fim. Então: meu pai foi um homem afortunado. Teve uma mãe formidável, oito irmãos próximos quando foi necessário, uma esposa bela e mansa, cuja logística compensou sua falta de jeito com a vida prática, e cinco filhos.
Foi mais recluso e calado do que sociável, teve, como todos, fragorosas derrotas, mas, principalmente, foi triste, de uma tristeza mais desesperada que melancólica.
Sua inteligência serviu a outros, não a ele. Seus dilemas, suas ambivalências, suas dores sem remédio e seu silêncio duro e confuso criaram em torno dele um tufão de renúncias e sofrimentos perigoso.
Mas foi um pai acertado. Deu a sustentação, foi até o fim porto seguro e registrou, com certeza e força, cada um dos filhos, fazendo-os membros pertencentes a uma família.
Reconheço-o no amor que sou capaz de sentir pelos meus próprios filhos; na força que tenho para enfrentar as dificuldades de minha própria vida; na habilidade que sempre arranjo para me sustentar e aos meus filhos; na minha resistência à futilidade e à superficialidade; na minha escolha clara do que sou, mesmo quando isso me traz prejuízo e dor.
A bem da verdade, o resultado final me traz mais ganho que perda: seu governo deixou-me uma base de valores preciosos que, junto com a mansidão de minha mãe, fazem de mim o que sou.
Essa ordem triste e difícil me construiu e norteou minhas escolhas que, aliás, foram livres e puderam ser privadas. Meus segredos, ausências, silêncios nunca me foram cobrados. Até o final, pude dar a meu pai o que pude dar. Nem mais, nem menos. Como ele me ensinou – o que ele não me deu, ele não pôde me dar. Pronto. Assim, duro e mudo.
João Guimarães Rosa tem um conto bonito que sempre me ajudou a compreender o meu pai: a história de um homem que, a certa altura da vida, resolveu viver não nas margens tradicionais de um rio, mas dentro de uma canoa, “perto e longe de sua família dele”, numa terceira margem. A história é contada por seu filho, que não dá conta de entender aquilo e sofre anos a fio, sem de todo poder seguir sua própria vida, conectado que permanece àquela realidade incompreensível.
Eu sou esse narrador de uma história tão parecida com a minha que me assusta: meu pai esteve sempre numa margem difícil de compreender – cercado de peixes, galos, peças de xadrez e outros objetos sem lógica entre si, viveu num ponto da geografia social com meridiano e sem paralelo. O meridiano lhe deu certa habilidade à sustentação material, herança antiga que tornou a falta de paralelo sempre menos aflitiva, apesar de difícil.
A topadas e quedas sem mão, fui aprendendo e aceitando essa geografia única e especial, meu pai, na sua canoa de tristeza, vivendo numa distância intransponível de mim e de si, minha vida correndo a seu largo...
Lá... acolá... ele pôde estar ao meu lado e, devagar, fui aprendendo a crescer e a tirar de mim mesma o necessário, por meio de suas lições caladas.
Ao contrário dos personagens, no fim, ele não me chamou para mais me confundir. Foi passando devagar e totalmente para a sua terceira margem e pareceu não ter sentido meu último beijo nem ter ouvido meu pedido de força para o último passo.
Seu repouso também foi meu: sua canoa agora é o rio.
Um rio é uma vida limpa que nasce, a gente nem sabe onde... ele passa, às vezes se turva... tanta gente vive daquela água... a gente nem sabe avaliar... depois ele deságua no mar.
Tem gente que não sabe ver o rio dentro do mar... Mas há uma mágica nas correntes marinhas que alimenta o ciclo do tempo e que faz meu coração funcionar...
A teimosia da onda que molha os pés dos meus filhos é parte da água incansável que adia, sem explicar. E que carrega consigo parte do rio perdido.