Uma história sobre tudo - 1
Há cinco semanas, começaram os rumores sobre eles: eram irmãos biológicos, não podiam ser separados, não deviam ser separados. Se há idéias claras no mundo, essa é uma, todos concordam, pelo visto.
Minha irmã, que esperava há anos uma menina, ficou, incialmente, confusa:
– Não quero ser a personagem de “A escolha de Sofia”, foi o que primeiro exclamou sobre a situação.
Logo depois, no entanto (ou portanto), enunciou:
– Vou adotar os dois, a menina se chama Vitória, o menino não tem nome.
A aula que dei logo depois desse parto, foi em lágrimas e sem pé nem cabeça.
Aí eu, a diretora do Departamento de Digitação e Marketing deste blog (minha irmã Débora) e a parturiente (minha irmã Lívia) corremos ao centro da cidade para compras emergenciais: cuequinhas, calcinhas, fraldas descartáveis, shorts, blusas, vestidos, camisetas, camisolas, pijamas e companhia ilimitada...
Lívia tem uma memória prodigiosa e sabia de cor os erros e os acertos de sua primeira adoção repentina. Diz ela que errou na quantidade de roupas e de cobranças e, com esse raciocínio, comprou uma montanha de roupas cuidadosamente combinadas e botou o pé na embreagem das expectativas. Pelo que entendi, adoção é uma coisa de repente, não há aqueles nove meses básicos para a gente se acostumar e ir comprando devagar as coisas de um tamanho que todo mundo sabe qual é. Principalmente as adoções dela, que nunca fez questão de acessórios desimportantes como cor e idade.
Na verdade, nós todos da família temos a instalação trocada e costumamos pensar diferente da maioria, que se há de fazer?...
Três semanas, uma viagem, um encontro com o juiz e com a conselheira tutelar, um rio de lágrimas e um milhão de palavras depois, eles chegaram, assustados.
O menino mais novo ganhou um nome, Caio. Tem um ano e sete meses, balbucia algumas onomatopéias e tem cílios de girafa. Sua costela quebrada ficou facilmente para trás; a nova rotina de cama com lençóis limpos, banhos e comida quente na hora certa deram a ele uma beleza rápida e sua agressividade inicial foi mágica e rapidamente substituída pelo carinho. Hoje mesmo, enquanto trocava sua fralda, Lívia ganhou um abracinho gostoso. Afora coisas inescapáveis de toda criança, que encantam, irritam e cansam ao mesmo tempo e que todos nós conhecemos, segue seu novo caminho, no seu lugar de mais novo.
Seus pais, pensando alto e aprendendo, disseram-se entre si:
– Vixe! O mais velho chegou dessa idade, tão pequeno, não é? Parecia tão grande... A gente errou aí...
Mas eu lhes disse que o filho mais velho é assim, está tudo certo. Minha avó mesma já dizia que tio Saulo apanhou mais, sendo o mais santo. Vai ouvir a vida inteira algo como: “Logo você, o mais velho, que devia ajudar, dar o exemplo...”
E é assim que o mais velho, que hoje tem seis anos e se chama Mateus, está seguindo seu caminho, agora, com a novidade da chegada dos irmãos.
– Eles vão ser meus irmãos para sempre?
– Sim, minha irmã respondeu.
E ele botou uma cara híbrida entre bom e ruim, exatamente começando a saber um irmão, com tudo de duro e caroável, como diz Bandeira, que isso tem. Deu uma regredida, tem batido nos irmãos e mais tem apanhado deles, mas, certamente, logo entenderá que coração é de elástico.
Vitória foi a que mais tempo ficou exposta às intempéries, mas sua beleza já está raiando, como uma aurora certa depois da noite. Devagar, seu pavor noturno e sua ânsia pelos nossos braços estão sendo substituídos pelo brinquedo, que é o supérfluo mais necessário que conheço para crianças.
Já nos munimos de um verdadeiro arsenal para enfeitar seu fuá e já recebemos treinamento intensivo da nossa cabeleireira para lidar com esses novos fios, tão diferentes dos nossos. Mas saímos vencedoras: depois de vinte piranhas, cinco faixas, um diadema, incontáveis tererês, dois pentes e muitos cremes, ela saiu linda ontem para um aniversário.
A fartura geral da festa ainda a assustou. Mas ela saiu por cima e ninguém notou.
Cá para nós, ela abana fogão, dá banho “tcheco” nas bonecas, encanta-se com a água da piscina e pergunta o tempo todo: “Tem pra Tatá?” (“Tatá” é como ela chama o irmão mais novo, tentando dizer “Cacá”), como se o fantasma da falta ainda rondasse as suas vidas. Certamente, isso passará logo e será motivo de riso, mais tarde. Por enquanto, me dá vontade de chorar.
Lívia tem se queixado de que ela está tão deslumbrada com a tecnologia, que é ecologicamente incorreta: passa o dia todo dando descarga, acendendo a luz, ligando e aumentando a tevê... Eu a defendi, com o argumento de que ela tem créditos de carbono, pelos três anos que viveu na pindaíba do sertão.
Ser tia adotiva é uma riqueza sem medida. Tenho revisitado meus partos, meus filhos crianças que já perdi; tenho lembrado suas histórias, suas perguntinhas inocentes e difíceis, às vezes; tenho revivido as dificuldades e as perdas e, por outro lado, tenho o saldo dos saberes e dos ganhos que acumulei.
As dificuldades do processo nos aproximaram, como sempre acontece entre nós, e meu cunhado, o pai dessas crianças, que brinca dizendo que, quando Deus não dá irmã, o diabo manda cunhada, exausto, depois do primeiro fim de semana, terminou por exclamar:
– Nunca mais vou falar mal de minhas cunhadas!
A facilidade com que os meninos aderiram ao “papai” (e ao “mamãe”) confirma seus muitos acertos e poucos enganos. Seu exercício da função paterna nesse contexto superpovoado é bonito de ver.
Esses sobrinhos novos restauram minha vida, recarregam minha capacidade de amar, estendem minhas possibilidades de ser amada, confirmam minha certeza no diálogo e me encorajam para lutar pela idéia de que passado não é gaiola, mas chave.
Minha irmã, que esperava há anos uma menina, ficou, incialmente, confusa:
– Não quero ser a personagem de “A escolha de Sofia”, foi o que primeiro exclamou sobre a situação.
Logo depois, no entanto (ou portanto), enunciou:
– Vou adotar os dois, a menina se chama Vitória, o menino não tem nome.
A aula que dei logo depois desse parto, foi em lágrimas e sem pé nem cabeça.
Aí eu, a diretora do Departamento de Digitação e Marketing deste blog (minha irmã Débora) e a parturiente (minha irmã Lívia) corremos ao centro da cidade para compras emergenciais: cuequinhas, calcinhas, fraldas descartáveis, shorts, blusas, vestidos, camisetas, camisolas, pijamas e companhia ilimitada...
Lívia tem uma memória prodigiosa e sabia de cor os erros e os acertos de sua primeira adoção repentina. Diz ela que errou na quantidade de roupas e de cobranças e, com esse raciocínio, comprou uma montanha de roupas cuidadosamente combinadas e botou o pé na embreagem das expectativas. Pelo que entendi, adoção é uma coisa de repente, não há aqueles nove meses básicos para a gente se acostumar e ir comprando devagar as coisas de um tamanho que todo mundo sabe qual é. Principalmente as adoções dela, que nunca fez questão de acessórios desimportantes como cor e idade.
Na verdade, nós todos da família temos a instalação trocada e costumamos pensar diferente da maioria, que se há de fazer?...
Três semanas, uma viagem, um encontro com o juiz e com a conselheira tutelar, um rio de lágrimas e um milhão de palavras depois, eles chegaram, assustados.
O menino mais novo ganhou um nome, Caio. Tem um ano e sete meses, balbucia algumas onomatopéias e tem cílios de girafa. Sua costela quebrada ficou facilmente para trás; a nova rotina de cama com lençóis limpos, banhos e comida quente na hora certa deram a ele uma beleza rápida e sua agressividade inicial foi mágica e rapidamente substituída pelo carinho. Hoje mesmo, enquanto trocava sua fralda, Lívia ganhou um abracinho gostoso. Afora coisas inescapáveis de toda criança, que encantam, irritam e cansam ao mesmo tempo e que todos nós conhecemos, segue seu novo caminho, no seu lugar de mais novo.
Seus pais, pensando alto e aprendendo, disseram-se entre si:
– Vixe! O mais velho chegou dessa idade, tão pequeno, não é? Parecia tão grande... A gente errou aí...
Mas eu lhes disse que o filho mais velho é assim, está tudo certo. Minha avó mesma já dizia que tio Saulo apanhou mais, sendo o mais santo. Vai ouvir a vida inteira algo como: “Logo você, o mais velho, que devia ajudar, dar o exemplo...”
E é assim que o mais velho, que hoje tem seis anos e se chama Mateus, está seguindo seu caminho, agora, com a novidade da chegada dos irmãos.
– Eles vão ser meus irmãos para sempre?
– Sim, minha irmã respondeu.
E ele botou uma cara híbrida entre bom e ruim, exatamente começando a saber um irmão, com tudo de duro e caroável, como diz Bandeira, que isso tem. Deu uma regredida, tem batido nos irmãos e mais tem apanhado deles, mas, certamente, logo entenderá que coração é de elástico.
Vitória foi a que mais tempo ficou exposta às intempéries, mas sua beleza já está raiando, como uma aurora certa depois da noite. Devagar, seu pavor noturno e sua ânsia pelos nossos braços estão sendo substituídos pelo brinquedo, que é o supérfluo mais necessário que conheço para crianças.
Já nos munimos de um verdadeiro arsenal para enfeitar seu fuá e já recebemos treinamento intensivo da nossa cabeleireira para lidar com esses novos fios, tão diferentes dos nossos. Mas saímos vencedoras: depois de vinte piranhas, cinco faixas, um diadema, incontáveis tererês, dois pentes e muitos cremes, ela saiu linda ontem para um aniversário.
A fartura geral da festa ainda a assustou. Mas ela saiu por cima e ninguém notou.
Cá para nós, ela abana fogão, dá banho “tcheco” nas bonecas, encanta-se com a água da piscina e pergunta o tempo todo: “Tem pra Tatá?” (“Tatá” é como ela chama o irmão mais novo, tentando dizer “Cacá”), como se o fantasma da falta ainda rondasse as suas vidas. Certamente, isso passará logo e será motivo de riso, mais tarde. Por enquanto, me dá vontade de chorar.
Lívia tem se queixado de que ela está tão deslumbrada com a tecnologia, que é ecologicamente incorreta: passa o dia todo dando descarga, acendendo a luz, ligando e aumentando a tevê... Eu a defendi, com o argumento de que ela tem créditos de carbono, pelos três anos que viveu na pindaíba do sertão.
Ser tia adotiva é uma riqueza sem medida. Tenho revisitado meus partos, meus filhos crianças que já perdi; tenho lembrado suas histórias, suas perguntinhas inocentes e difíceis, às vezes; tenho revivido as dificuldades e as perdas e, por outro lado, tenho o saldo dos saberes e dos ganhos que acumulei.
As dificuldades do processo nos aproximaram, como sempre acontece entre nós, e meu cunhado, o pai dessas crianças, que brinca dizendo que, quando Deus não dá irmã, o diabo manda cunhada, exausto, depois do primeiro fim de semana, terminou por exclamar:
– Nunca mais vou falar mal de minhas cunhadas!
A facilidade com que os meninos aderiram ao “papai” (e ao “mamãe”) confirma seus muitos acertos e poucos enganos. Seu exercício da função paterna nesse contexto superpovoado é bonito de ver.
Esses sobrinhos novos restauram minha vida, recarregam minha capacidade de amar, estendem minhas possibilidades de ser amada, confirmam minha certeza no diálogo e me encorajam para lutar pela idéia de que passado não é gaiola, mas chave.