domingo, novembro 16, 2008

Uma história sobre tudo - 1

Há cinco semanas, começaram os rumores sobre eles: eram irmãos biológicos, não podiam ser separados, não deviam ser separados. Se há idéias claras no mundo, essa é uma, todos concordam, pelo visto.
Minha irmã, que esperava há anos uma menina, ficou, incialmente, confusa:
– Não quero ser a personagem de “A escolha de Sofia”, foi o que primeiro exclamou sobre a situação.
Logo depois, no entanto (ou portanto), enunciou:
– Vou adotar os dois, a menina se chama Vitória, o menino não tem nome.
A aula que dei logo depois desse parto, foi em lágrimas e sem pé nem cabeça.
Aí eu, a diretora do Departamento de Digitação e Marketing deste blog (minha irmã Débora) e a parturiente (minha irmã Lívia) corremos ao centro da cidade para compras emergenciais: cuequinhas, calcinhas, fraldas descartáveis, shorts, blusas, vestidos, camisetas, camisolas, pijamas e companhia ilimitada...
Lívia tem uma memória prodigiosa e sabia de cor os erros e os acertos de sua primeira adoção repentina. Diz ela que errou na quantidade de roupas e de cobranças e, com esse raciocínio, comprou uma montanha de roupas cuidadosamente combinadas e botou o pé na embreagem das expectativas. Pelo que entendi, adoção é uma coisa de repente, não há aqueles nove meses básicos para a gente se acostumar e ir comprando devagar as coisas de um tamanho que todo mundo sabe qual é. Principalmente as adoções dela, que nunca fez questão de acessórios desimportantes como cor e idade.
Na verdade, nós todos da família temos a instalação trocada e costumamos pensar diferente da maioria, que se há de fazer?...
Três semanas, uma viagem, um encontro com o juiz e com a conselheira tutelar, um rio de lágrimas e um milhão de palavras depois, eles chegaram, assustados.
O menino mais novo ganhou um nome, Caio. Tem um ano e sete meses, balbucia algumas onomatopéias e tem cílios de girafa. Sua costela quebrada ficou facilmente para trás; a nova rotina de cama com lençóis limpos, banhos e comida quente na hora certa deram a ele uma beleza rápida e sua agressividade inicial foi mágica e rapidamente substituída pelo carinho. Hoje mesmo, enquanto trocava sua fralda, Lívia ganhou um abracinho gostoso. Afora coisas inescapáveis de toda criança, que encantam, irritam e cansam ao mesmo tempo e que todos nós conhecemos, segue seu novo caminho, no seu lugar de mais novo.
Seus pais, pensando alto e aprendendo, disseram-se entre si:
– Vixe! O mais velho chegou dessa idade, tão pequeno, não é? Parecia tão grande... A gente errou aí...
Mas eu lhes disse que o filho mais velho é assim, está tudo certo. Minha avó mesma já dizia que tio Saulo apanhou mais, sendo o mais santo. Vai ouvir a vida inteira algo como: “Logo você, o mais velho, que devia ajudar, dar o exemplo...”
E é assim que o mais velho, que hoje tem seis anos e se chama Mateus, está seguindo seu caminho, agora, com a novidade da chegada dos irmãos.
– Eles vão ser meus irmãos para sempre?
– Sim, minha irmã respondeu.
E ele botou uma cara híbrida entre bom e ruim, exatamente começando a saber um irmão, com tudo de duro e caroável, como diz Bandeira, que isso tem. Deu uma regredida, tem batido nos irmãos e mais tem apanhado deles, mas, certamente, logo entenderá que coração é de elástico.
Vitória foi a que mais tempo ficou exposta às intempéries, mas sua beleza já está raiando, como uma aurora certa depois da noite. Devagar, seu pavor noturno e sua ânsia pelos nossos braços estão sendo substituídos pelo brinquedo, que é o supérfluo mais necessário que conheço para crianças.
Já nos munimos de um verdadeiro arsenal para enfeitar seu fuá e já recebemos treinamento intensivo da nossa cabeleireira para lidar com esses novos fios, tão diferentes dos nossos. Mas saímos vencedoras: depois de vinte piranhas, cinco faixas, um diadema, incontáveis tererês, dois pentes e muitos cremes, ela saiu linda ontem para um aniversário.
A fartura geral da festa ainda a assustou. Mas ela saiu por cima e ninguém notou.
Cá para nós, ela abana fogão, dá banho “tcheco” nas bonecas, encanta-se com a água da piscina e pergunta o tempo todo: “Tem pra Tatá?” (“Tatá” é como ela chama o irmão mais novo, tentando dizer “Cacá”), como se o fantasma da falta ainda rondasse as suas vidas. Certamente, isso passará logo e será motivo de riso, mais tarde. Por enquanto, me dá vontade de chorar.
Lívia tem se queixado de que ela está tão deslumbrada com a tecnologia, que é ecologicamente incorreta: passa o dia todo dando descarga, acendendo a luz, ligando e aumentando a tevê... Eu a defendi, com o argumento de que ela tem créditos de carbono, pelos três anos que viveu na pindaíba do sertão.
Ser tia adotiva é uma riqueza sem medida. Tenho revisitado meus partos, meus filhos crianças que já perdi; tenho lembrado suas histórias, suas perguntinhas inocentes e difíceis, às vezes; tenho revivido as dificuldades e as perdas e, por outro lado, tenho o saldo dos saberes e dos ganhos que acumulei.
As dificuldades do processo nos aproximaram, como sempre acontece entre nós, e meu cunhado, o pai dessas crianças, que brinca dizendo que, quando Deus não dá irmã, o diabo manda cunhada, exausto, depois do primeiro fim de semana, terminou por exclamar:
– Nunca mais vou falar mal de minhas cunhadas!
A facilidade com que os meninos aderiram ao “papai” (e ao “mamãe”) confirma seus muitos acertos e poucos enganos. Seu exercício da função paterna nesse contexto superpovoado é bonito de ver.
Esses sobrinhos novos restauram minha vida, recarregam minha capacidade de amar, estendem minhas possibilidades de ser amada, confirmam minha certeza no diálogo e me encorajam para lutar pela idéia de que passado não é gaiola, mas chave.

O Pré-modernismo e Lima Barreto

O Pré-modernismo não é propriamente um estilo de época, mas um período de transição, mais um ponto de partida do que um conjunto de características observáveis. No dizer de Tristão de Ataíde, foi uma inquietação que borbulhou no silêncio.
Está entre o crepúsculo do século XIX e a madrugada do século XX: seu início é a publicação de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, em 1902, e seu fim, a Semana de Arte Moderna de 1922.
Nesse período, a literatura retoma o Brasil como tema central – só que não mais visto de forma idealizada, mas crítica – e inaugura-se a tendência de quebra da tradição artística que não se completa, como no Modernismo.
Seus três prosadores são dos mais marcantes em nossa inteligência – Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e Lima Barreto.
Euclides da Cunha escreveu “Os Sertões” sobre o episódio da Guerra de Canudos. E mais nunca o Brasil pensou o Brasil como antes. Seu testemunho, na confluência do jornalismo, da sociologia, da antropologia e da literatura, marcou indelevelmente nosso jeito de ver e avaliar a nós mesmos.
Monteiro Lobato, no artigo “Urupês”, fez o mesmo: por meio da descrição de Jeca Tatu, uma metonímia de uma quantidade significativa de brasileiros excluídos, abriu polêmica e consciências.
Lima Barreto é o equivalente urbano dos dois anteriores: escolheu escrever sobre temas tabus no Brasil – a favela nascente e a discriminação racial e social, naquele tempo como hoje, feridas abertas que não sabemos sarar, apesar de querermos.
Em “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, Lima Barreto projeta-se no personagem Isaías e descortina os caminhos e descaminhos do preconceito nos desvãos de nossa sociedade. Como o autor, Isaías é mulato, pobre e foi paulatinamente sendo destruído pelas dificuldades visíveis e invisíveis impostas a ele, apesar de sua inteligência e seu esforço.
Ao lado de “Triste fim de Policarpo Quaresma”, que repensa o nacionalismo ufanista romântico, “Recordações do escrivão Isaías Caminha” é das mais importantes obras de Lima Barreto, apesar de ser pouco conhecida e citada. Talvez seu tema e sua franqueza expliquem desde sua dificuldade de publicação até o atual silêncio que o cerca: o Brasil gosta do tema da miscigenação, mas evita o da discriminação contra o negro e se envergonha dos resquícios de pobreza e exclusão que o cercam. Lima Barreto põe o dedo nessa ferida que insiste em não sarar no país.
No “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, políticos, jornalistas, diretores de jornais, militares e poderosos de toda sorte são acusados de injustos e incapazes; de estar onde não merecem; de não cuidarem da coisa pública, mas apenas de seus interesses pessoais; de não se importarem com os desvalidos; de viverem de fachada... O governo, a imprensa, tudo é contra o povo, vive dele, sem dele cuidar...
A obra de Lima Barreto é um grito de revolta contra a discriminação, o oportunismo, o parasitismo estatal... temas que até hoje merecem atenção no país e que, infelizmente, o vitimaram e o destruíram. Felizmente, depois que deixou registrada sua lucidez feroz.