quinta-feira, abril 30, 2009

Consuelo

Sou a campeã das histórias fabulosas da minha família, na atual geração. O episódio vitorioso, "Trança e Coque", está aí ao lado, no arquivo, em julho de 2007. Isso, inclusive, é genético, não sei se histórias estranhas acontecem conosco ou se temos um jeito especial de contá-las e, aumentando-as com detalhes hilários e nem sempre verossimilhantes, admito, temos a fama de bons contadores de histórias. Um dos tios de meu pai assumia isso numa boa e costumava dizer:

– Quem manda a verdade ser sem graça?

Mas, no fundo, acho que temos um sentido especial para a atração de duas coisas: o “episódio metonímico”, que acontece com todo mundo e com que todos se identificam, e as pessoas meio loucas que vivem por aí e se aproximam dos incautos.

Quando contamos histórias dentro dessa equação, fazemos o maior sucesso. Um amigo disse outro dia que somos uma “família narrativa”. Adorei isso!

Pois bem: vocês sabem que sou duplamente sócia de minha irmã Débora – neste blog, no qual ela é a diretora do Departamento de Digitação e Marketing, cargo essencial e necessário à periodicidade e à organização geral, e num curso de português para o vestibular, em que ela é tudo, porque sou muito atrapalhada e, se não fosse ela, como ela mesma diz o tempo todo, “essa empresa não iria para frente”. Basta dizer que, no último feriadão da Semana Santa, minha tia Eugênia telefonou, perguntando se eu queria viajar com ela e eu, sem nem me lembrar da aula, disse-lhe que sim, que adoraria ir com ela. A felicidade foi que na quinta-feira, “en passant”, eu disse a Debe:

− Amanhã, vou viajar com tia Gena.

− Você está louca? E a nossa aula?

Tive que ligar e dizer que não podia viajar, e a pobre da Debe passou uma semana se queixando de que o curso fica nas costas dela, que a empresa assim não não vai para frente etc. etc. etc...

A coitada organiza tudo, faz todas as compras, fica toda nervosa e eu, meio zonza, só agradeço e dou minhas aulas.

Um dia lhe confessei que gostaria de ajudar mais nas complicações empresariais e familiares, e ela exclamou:

− E tua vida é refresco, mulher?

Na semana passada, aperreada para terminar logo de preparar minhas fichas para o dia seguinte, derrubei a caixa de grampos, que se espalharam pela sala inteira. Apanhei tudo bem direitinho, mas eles cresceram e se multiplicaram quando se partiram e não couberam na caixinha de volta, apesar de minhas tentativas. Quando cheguei em casa, telefonei logo para Debe:

− Debe, tenho um crime para confessar: derrubei a caixa de grampos, novinhos em folha, que você comprou e não consegui botar de volta... Você me perdoa?

− Se não fosse eu, o que seria dessa empresa, meu Deus, ela exclamou, rindo. E, no dia seguinte, quando cheguei ao curso, estava tudo arrumado e perfeito, como ela gosta.

Débora tem um senso de humor ácido, franco e muito engraçado e sai com cada tirada... Foi dela o diagnóstico de que minha casa é uma “mundiça sem remédio” (no arquivo ao lado, em abril de 2008, "Chá de rolha - 10"), descrição competente e irretocável, vale a pena frisar.

Há algumas semanas, no nosso curso, sistematicamente, começamos a receber ligações de um homem procurando Consuelo. Nossa empresa recém-nascida não tem secretária e, toda vez que o telefone toca, uma de nós ou meu filho Daniel, que nos dá uma mão com as cópias das apostilas, tinha que largar o que estava fazendo para dizer:

− Aqui não há nenhuma Consuelo, foi engano.

Nossos alunos já estavam achando graça quando o telefone tocava e eu dizia, antes de sair da sala:

− Coitado! O bichinho ainda não encontrou Consuelo...

Aí, quarta-feira, aproveitando que era Débora que estava na sala, expliquei melhor:

− Senhor, por favor, já dissemos várias vezes, aqui é um curso de português; há pelo menos dois anos, esse telefone não é mais de Consuelo...

− Desculpe − do outro lado, o homem respondeu.

Desliguei o telefone. Daí a pouco, o telefone volta a tocar:

− Alô! – eu disse, já irritada.

− Desculpe, eu liguei antes, acho que há algum problema no dial do meu aparelho; sem querer, liguei de novo, desculpe, não sou do mal, desculpe...

− Tudo bem, respondi e desliguei de novo.

Aí o telefone tocou de novo. Eu nunca pensei que seria o órfão de Consuelo novamente, achei que fosse outra pauta...

− Alô?!

− Por favor, não desligue! É que sofro de depressão, Consuelo costumava me escutar... Meu nome é Genilson, não sou do mal, como já disse; sou, inclusive, militar reformado...

− Meu senhor, eu sinto muito...

− Como é seu nome?

− ... Flávia... − respondi, com um fio de voz, hesitante.

− Flávia, veja bem, observe, tudo isso é uma conjunção cósmica, você não acha? Será que você não poderia substituir Consuelo? Você não acha que é coincidência demais? Eu telefonar assim, quase sem querer, e você atender? Poderíamos conversar... Quem sabe, até eu poderia estudar português aí... Sofro de depressão...

− Escute, respondi, tentando ser ríspida, aqui é um lugar de trabalho... Não é possível... Até logo... Desculpe... Acho que a conjunção cósmica errou.

Desliguei.

Passou bem depressa pela minha cabeça um verso que escrevi: a mão que suplica do poço carrega uma arma?

Todo mundo que soube da história ficou com pena de Genilson e horrorizado porque eu disse que a tal conjunção estava errada. Acho que muitos acreditam que conjunção, quando é cósmica, é certa, mesmo que o observador seja deprimido e desorientado.

Na verdade, tive medo.

Pensei nas cidades grandes, onde tantas pessoas estão juntas e, ao mesmo tempo, tão sós e infelizes... Em como é difícil ser gente, num mundo hostil e desumanizado, onde é mais seguro ter medo... Nos nossos meios de comunicação tão maravilhosos, mas que não nos ajudam a vencer a nossa babel e a nossa solidão... Naquele homem doente, que não sabe pedir ajuda... ou que pede ajuda a quem tem medo de ajudá-lo... ou que, de propósito, pede ajuda à pessoa errada, porque lá dentro a sua dor é o que ele tem, sem querer perder...


A Consuelo, que ajudou Genilson, antes de se cansar e vender o telefone.