sábado, outubro 31, 2009

O casamento do meu amigo

Passei estes dias pensando sobre casamentos e sobre como eles, inexplicavelmente, dão certo ou errado. Como diz Guimarães Rosa, “já vi de tudo nesta vida, até cavalo com soluço” – longos namoros que resultaram casamentos malogrados, ou noivados curtíssimos, que compõem uniões satisfatórias e vice-versa. Na verdade, meu meio século é pouco para a compreensão dessa equação com tantas incógnitas e variáveis.

O casamento foi a tarefa impossível de minha vida. A profissão e a maternidade, ouvindo meu coração, tenho levado adiante. Aqui, acolá, levo minhas quedas, perco, ignoro, me perco, mas a bússola do meu amor me mostra a direção a seguir: tolerância, diálogo (às vezes, silêncio), temperados com não desistir, tempo e lágrimas, me dão um saldo positivo, apesar dos terremotos. E olhe que minha maternagem inclui deficiências, um pesadelo do qual não se acorda. Mas, principalmente depois que desisti da perfeição, minha nave vai...

O casamento, não – precisei fazer tudo ao contrário para sobreviver: desisti, gritei, afastei. E ainda há um medo inexplicável na solidão que estendo, temerosa. Por tudo isso, fiquei meio cismada, mas, mesmo assim, ainda gosto de ver casamentos. Já testemunhei alguns que ficam bonitos até o fim. Uma atmosfera de respeito e ternura cerca o casal e os filhos a vida inteira.

Tolstoi, no início de “Ana Karenina”, escreveu uma frase famosa, algo em torno de que todas as famílias felizes são parecidas, mas as outras são infelizes cada qual à sua maneira. E o que acrescento é que isso tem como ponto de partida a relação do casal.

A cerimônia que uniu meu amigo Samarone e Sílvia foi singela; organizada pelos amigos, parecia mais um aniversário. Dizem as más línguas que oficiei a união. Mas apenas li um texto que escrevi lá mesmo na festa, sobre minha amizade ao noivo e sobre o meu desejo de que meu amigo e sua agora esposa fossem felizes para o sempre que nos é possível. Falei também de como meu amigo é parecido com perdão e delicadeza, mas parece que ouvi risinhos quando disse isso.

No entanto, reitero o que disse; Samarone é uma pessoa que é capaz de engolir um terremoto e, para poupar os amigos, fazer de conta que não está acontecendo nada. Depois escreve cada poema de lascar! É por isso, provavelmente, que vive dizendo que literatura salva.

Pois bem: quero aqui dizer que o casamento foi bonito, os noivos e os convidados estavam felizes e que é bom saber que, “como a última onda que o fim do mar sempre adia”, como diz João Cabral, estamos sempre renovando o amor, apesar de tudo.

Outro dia escrevi por aí, pernambucanamente, que vivo cortando cana prevendo o açúcar. É assim que quero a vida nova de meu amigo e sua mulher: neste tempo de desemprego, que eles tenham cana para cortar; neste tempo de violência, que caia sobre eles a doçura consequente de suas ações; neste tempo de intolerância, que eles sejam capazes de saber as razões do outro; neste tempo de desencontro, que eles saibam perdoar e seguir adiante (como só os amantes sabem fazer), nesta tarefa sem bula que é o casamento. E que eles, errando e acertando, como todos, consigam cumprir as promessas que se fizeram. Porque é bonito quando se consegue. Em suma, quero beleza na vida do meu amigo. Porque beleza é fundamental.

A Samarone e Sílvia

domingo, outubro 25, 2009

Carta para tia Gena

Tia Gena, minha bastante mãe procuradora:

Uma vez eu escrevi uma carta aberta para tia Beta (no arquivo ao lado, em agosto de 2006) e, quando você a leu, disse que ficaria feliz de receber uma daquela raça. Pois bem: esta aqui, sou eu tentando, depois de muitos anos, realizar o seu pedido.

A de tia Beta falava de como cada tia paterna tinha contribuído para a minha formação como pessoa. Nada mais justo que eu, então, continue o raciocínio, clarificando o que você me deu.

A primeira palavra que me vem é “harmonia”. Procurei-a, e outras do mesmo campo semântico, no dicionário e gostei de dois sentidos que achei: “conciliar” e “pôr em harmonia”. Havia outros, como “ordem” e “proporção”, que descartei porque não dariam a ideia exata de como a percebo. A palavra “ordem” tem dentro de si um decreto e uma falta de acordo que não têm nada a ver com você; em “proporção”, falta uma pitada de exagero, que é um dos seus temperos.

Quando papai morreu, herdei uma prateleira onde arrumei objetos que foram de minha avó, de minha mãe e seus e, enquanto fazia isso, fui devagar entendendo que tinha sido você que tinha me ensinado a fazer isso: em vitrines internas (se é que isso existe), você faz uma correspondência entre objetos e afetos e vai buscando uma harmonia.

Quem não a entende pode até pensar que você gosta de coisas. Mas não é isso: dentro de você, estão, compreendidas, as palavras cujas trajetórias cruzaram a sua. E a arrumação dos objetos traduz isso: às vezes, um longo e penoso trabalho de perdão molhado de lágrimas. Mas você consegue.

A segunda palavra que me veio foi “partilha” – assim que você pode, depois da sua própria ordenação interna, através de relatos articulados e nítidos, você vai ajudando quem está ao seu redor a compreender e compreender-se. Essa tinha que vir junto com outra, que é “compromisso”, talvez porque você está sempre próxima quando precisamos, e a sua palavra é sempre um farol com que se pode contar.

Quando procurei “compromisso” no dicionário, fiquei desolada; achei três explicações que não têm nada a ver com você: “obrigação mais ou menos solene”, “acordo de litigantes” e “dívida”. O que você me ensinou foi um compromisso diferente disso; o seu tem a ver com “agregação” e “resolução”.

Como já perdi a ordem (coisa que é a minha cara), a próxima palavra seria “irreverência”, mas não gostei do que o dicionário trouxe e já vou dizendo que a sua tem uma alegria leve e um quebra-gelo.

Uma vida é sempre uma tarefa difícil e sem bula. Não é todo mundo que tem a sorte de vir perto de você e de seus recursos visíveis e invisíveis. Fique certa de que estarei, o resto de minha vida, obrigada a essas lições e, como você me ensinou, com cada um, a seu tempo, a seu modo, como me for possível, tentarei reinventar essas palavras tão raras que você me deu, nesse seu dicionário exclusivo.