quinta-feira, dezembro 31, 2009

Essas coisas de ano novo de novo

Uma das melancolias do último dia do ano é a revisão e as contas de toda espécie que a gente faz. E, como este de 2009 foi um ano difícil e confuso, dá para imaginar o que ando pensando... Aí, numa estratégia de compensação, peguei um livro antigo de Rubem Braga, que anda bolando há anos na família (minha irmã Lívia diz que é dela, mas eu discordo), e estou me consolando com suas crônicas. O texto “A casa (em prosa)” foi gestado a partir dele e de suas considerações sobre as antigas fazendas de Minas e seus porões. Este, sobre as dificuldades de finais de ano, também. Eu poderia transcrever o texto de Braga, mas, lembrando uma entrevista de Bibi Ferreira, resolvi não fazê-lo: ela disse que nunca permitiu ser filmada atuando, porque prefere que alguém que a viu fale dela para outra pessoa com a emoção que sentiu. Essa entrevista me curou de uma agonia que eu tinha de ter de gravar minha avó falando. Na verdade, eu é que tenho que falar dela, através do amor que senti e ainda sinto. Isso tudo me justifica, inclusive, e até é bom ficar me lembrando dessas coisas felizes para não naufragar de vez nesta revisão melancólica.
Pois bem. A crônica se chama “Imigração” e foi escrita num distante janeiro de 1952. Nela, Rubem fala da reportagem de um jornalista chamado José Leal sobre a ilha das Flores, onde ficavam os imigrantes, assim que chegavam ao Brasil. Nela, o repórter (é assim que ele chama) discordou da política imigratória que não trazia agricultores e técnicos, ou seja, gente capaz de ser útil, mas músicos, bailarinas, cabeleireiras, vendedores, costureiras “para entulhar as grandes cidades”. Apesar de concordar com o conteúdo da reportagem, Braga pede licença para ficar imaginando ideias, enquanto apreciava as bonitas fotografias que a ilustravam. E termina por dizer que o destino é algo insensato, que “a humanidade não vive apenas de carne, alface e motores” e que imigrantes, sejam eles quais forem, trazem “o patrimônio de sua inquietude e de seu apetite de vida”. Confirma que muitos se perderão, sem futuro, nas grandes cidades. Mas adverte que é preciso de tudo para compor um mundo e que cada pessoa é uma interrogação de heranças e taras (eu acrescentaria possibilidades). Einstein, Chaplin, Portinari, Niemeyer, Lattes, Burle Marx, Villa-Lobos, Pancetti… são citados no texto como prova de que, dentro de algum desqualificado, “como sorte grande da fantástica loteria humana, pode vir a nossa redenção, a nossa glória”.
Não sei direito como vai ser o ano que se avizinha. Sei apenas que, como este, certamente trará chegadas, partidas, prazeres e dificuldades. Essa fantástica loteria humana continuará funcionando indefinidamente e nos dará forças para continuar remando, mesmo com as mãos feridas. É preciso manter funcionando, como disse Rubem Braga noutra crônica, nosso “mecanismo sentimental complexo e delicado” para que sejamos capazes de acolher os que chegam e nos desligar dos que partem. E, para que aprendamos mais, mesmo devagar, errando, sangrando e chorando, a dar as mãos, para suplantar as dificuldades e dividir os prazeres.

Para Brenda, Guilherme e Maria Afra.

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Do Brasil, com tolerância

Ocorre o mesmo com o documento oficial – sobre direitos humanos – que é apresentado hoje no Conselho de Direitos Humanos. Resumo ficcional do que temos, lenda em tinta rosa e glossário triunfalista que se afasta – anos-luz – do que vivemos. Obra de exímios literatos, ela deve ser lida como um texto romanceado de certos autores que evitam escrever o livro de bordo, real, do naufrágio.” (Yoani Sánchez)


Ganhei de presente o livro “De Cuba, com carinho”, de Yoani Sánchez. Ele reúne textos do blog da autora, “Geração Y”, e contém suas ideias acerca do dia a dia da ilha.

Yoani já ganhou prêmios internacionais e foi considerada uma das cem mulheres mais influentes do mundo, em virtude dos inquestionáveis e inumeráveis acessos ao seu blog. Seus textos são de uma simplicidade contundente e suas reivindicações, de uma obviedade desconcertante para quem mora fora de Cuba.

Mas o livro está na linha do tiro. Ao lado do de meu amigo Samarone, “Viagem ao crepúsculo”.

Em ambos, há referências à realidade esquizofrênica de Cuba, ou seja, à coexistência de duas Cubas – uma real, outra irreal (ou, usando Manuel Bandeira, “a que podia ter sido e que não foi”).

A Cuba real se escreve com rejeição, exclusão, intolerância, intransigência, limite, controle, clausura, confinamento, improdutividade, intimidação, desrespeito à privacidade, lei do mais forte, deterioração de valores éticos, ocultação, insegurança, carências de toda sorte (ou azares, eu diria), fome... Palavras que foram todas retiradas do texto da referida autora.

A Cuba ideal, qualquer pessoa de minha geração sabe qual é: saúde, educação, segurança e transporte de qualidade para todos, temperados com tudo de bom – fraternidade, liberdade e ética... Dito assim, parece uma sociedade gestada em Júpiter...

Na verdade, Cuba é o último baluarte do que chamo mundo bipolar, aquele no qual há apenas dois modos de pensar que se opõem: um certo, outro errado; um errado, outro certo. Ponto. Simples assim! Se você adora o “american way of life”, você odeia a “manera cubana de vivir” e vice-versa. Mas a verdade tem mais nuances, infeliz ou felizmente, é o que dizem os autores em questão: o comunismo é disfuncional, seus líderes levam ao precipício e à falta liberdade, essa palavra que ninguém define, mas que todo mundo sabe quando falta, de acordo com Cecília Meireles. Além disso, os seres humanos somos uma infinidade incontrolável de projetos, sonhos, aperreios e buscas que nos impulsionam para fora de todas as prisões (Cecília Meireles tem razão quando diz que há espaço e jeito dentro de qualquer presídio). Em outras palavras, a liberdade é irrenunciável e matá-la é matar o que nos faz humanos. Seis bilhões de pessoas não têm “uma só história, uma só ideia, uma só vontade, por todos os tempos”, como se pretende em Cuba, mas seis bilhões de histórias, seis bilhões de ideias, seis bilhões de vontades, seis bilhões de sujeitos... Se, assim, somos difíceis de governar, paciência... Problema dos governantes...

Desqualificar a palavra dos autores é estar engessado num jeito de pensar que, em 1989, ruiu com o Muro de Berlim; é não aceitar um mundo multipolar, como o chamo; é ter preguiça de pensar, pesquisar, estudar, para enxergar mais e melhor; é desconhecer que temos muitas fomes e muitas sedes e, portanto, simplificar nossas plurais idiossincrasias que fazem de nós esse colosso, esse fracasso ou esse perigo que somos; é não admitir que paradigmas se esgotam, como já ocorreu antes e voltará a acontecer mais tarde...

Pensar que os autores não deviam ter dito o que disseram é negar o direito inalienável da expressão, que, junto da liberdade e da pluralidade, faz de nós o que somos.

Neste momento em que precisamos tanto humanizar nossas relações, como fazê-lo, desumanizando o homem, ou seja, tirando dele o que o diferencia do animal?

Forjada na literatura, eu não sou assim; sou é curiosa, capaz de morrer lutando pelo direito de expressão, mesmo correndo o risco de alguém dizer uma opinião diferente da minha, o que não me ameaça, mas fortalece e engrandece.


P.S.: Republico abaixo outra resenha, complementar, sobre o mesmo assunto, digamos assim, e convido à leitura do texto “Aos nossos alunos – 2” (no arquivo ao lado, em novembro de 2009), que foi o discurso que proferi na formatura de meus alunos neste fim de ano.


A Lula Couto, que me deu o livro de presente.


Nosso século

Há pouco ganhei de presente um livro chamado “Cisnes selvagens”, da autora chinesa Jung Chang, e, devagar, pude desfrutar de uma descrição nua e crua da história da China ao longo do século XX. Essa leitura, ao lado do filme “Lanternas vermelhas”, do diretor chinês Zhang Yimou, a que tive o privilégio de assistir recentemente, por acaso, fizeram-me mergulhar longamente em mim mesma e no meu tempo. Sim, porque o livro ou o filme bons não são aqueles que a gente vê, mas os que ajudam a gente a se ver.

O “Cisnes selvagens” é um longo e ressentido relato de uma chinesa que, através da história de sua avó, de sua mãe e de sua própria, retrata o difícil século XX na China, numa perspectiva feminina. É, portanto, o livro uma espécie de reportagem biográfica que caiu fundo em mim também porque é obra de uma mulher. É claro que, geralmente, visões quebradas (como as de geração, gênero, raça, classe ou partido) não dão um resultado totalizante apropriado. Mas acompanhar o raciocínio da autora me fez mergulhar neste século que me coube e pensar sobre o que parece dar a ele uma aura de benefícios incalculáveis para as mulheres.

Quando a autora veio para o Ocidente (ela mora na Inglaterra e, hoje, é casada com um inglês), impressionou-se com a igualdade que prevalecia nas relações sociais e pensou que não havia diferença entre as pessoas. É que ela vinha de uma sociedade em que os estratos sociais equivaliam a direitos diferentes e ser filho ou ser de determinada classe eram impedimentos ou facilidades irrevogáveis na China.

Sua vivência na Inglaterra, mais tarde, mostrou-lhe que as pessoas eram diferentes, mas havia uma questão fundamental: o mais forte não tinha o direito de maltratar o mais fraco, nos países ocidentais, como acontecia na China. Sua avó, por exemplo, era concubina de um homem poderoso e, quando ele morreu, sua primeira esposa tinha o direito de mandar matar todas as outras, mas, felizmente, essa não era a sua vontade, e sua avó foi poupada.

É doloroso demais ter acesso a um relato tão claro sobre o malogro do jeito de pensar que norteou tão fortemente a minha geração: é que a Revolução Comunista não quebrou, mas apenas se serviu dessa lógica, e ser filho de proprietários de terra ou de comunistas de primeira hora fez da China um lugar horrível para as pessoas que, como a autora, eram crianças ou adolescentes durante a Revolução Cultural e depois dela.

Uma idéia está por trás de tudo – a de que os fins justificam os meios. E os fins foram adiados e adiados, e os meios foram adquirindo a face tenebrosa de genocídio... A bela utopia da igualdade foi afundando, presa à da liberdade e à da fraternidade... E quedamos todos sem contrapartida... Havia dois jeitos de pensar no século XX – um achava que era o certo e que o outro estava errado e precisava ser substituído...

E num mundo de quase sete bilhões de habitantes só há dois jeitos de pensar? E na China comunista ainda prevalecia a lógica da hierarquia? E a igualdade significa igual acesso à matéria ou sacrifica, necessariamente, a liberdade? É possível “passar uma régua” e fazer todos pensarem uniformemente? E há diferença entre o perigo de uniformização para padrões de consumo e o de uniformização para posições políticas, filosóficas e existenciais? E pensar certo é pensar numa só direção? E seremos felizes quando todos pensarmos de um só jeito e quando tivermos o mesmo ponto de partida e o mesmo ponto de chegada? E porventura todos desejam a mesma coisa? E o ponto de partida, dentro da diversidade humana, pode ser igual? E o ponto de chegada existe? E, depois de descobrirmos que a resposta a essas perguntas é “não”, o que faremos de nós?

Por seu turno, o “Lanternas vermelhas” me impele a outro raciocínio: acompanhamos a chegada de uma quarta esposa ao palácio de um poderoso senhor e a sua queda subseqüente pela lógica da hierarquia e da competição que, apesar de ser desfavorável a todas as mulheres da história, é a que predomina entre elas, pois não conseguem sair dela, já que ainda não estão prontas.

A espetacular revolução do século XX não foi a ruidosa Revolução Comunista, mas a silenciosa e desanunciada Revolução Feminina, que trouxe um novo papel para a mulher e, conseqüentemente, um novo homem, uma nova família, um novo filho, uma nova filha, um novo tempo... Pena que esse despertar, como todos, seja um processo penoso e custoso... Pena que o homem esteja impactado e, confuso, ainda não saiba ser partícipe dessa nova mulher que tão depressa apareceu diante de seus olhos... Ou não foi capaz de perder sua posição privilegiada, sem saber que há perdas necessárias... Pena que nem todas as mulheres conseguiram ainda acessar o roteiro da mudança, presas que permanecem dentro da lógica que as penaliza...

Como sempre, rumaremos em frente e negociaremos nossas vidas e nossos futuros como nos for possível, todos nós – homens e mulheres. Seres narrativos que somos, contaremos nossas histórias uns aos outros e seguiremos fazendo mudanças, assimilando perdas e aproveitando ganhos, desistindo de umas coisas e mantendo outras, tateando... O que não podemos de jeito nenhum é abrir mão uns dos outros e achar que ser feliz sozinho é suficiente.

quinta-feira, dezembro 03, 2009

A casa (em prosa)

Ontem
Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.

De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança.

Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.

Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.

(Carlos Drummond de Andrade)

Eu sabia que ler Rubem Braga terminaria por desentalar uma crônica que jazia inarticulada dentro de mim. Mas o caso desta vez era grave, eu nem sabia o assunto... Então, fui seguindo, paciente, pelos textos do meu surrado livro “Duzentas crônicas escolhidas”, deliciando-me com a compaixão, a simplicidade e a graça do autor...

Aí cheguei a um texto chamado “Receita de casa” e descobri meu tema: sem saber, eu queria falar de novo sobre casas e sobre memória.

Na verdade, três casas marcaram a minha vida, antes de me casar.

Sem fazer a lista pela importância, a primeira foi a de minha avó, em Taperoá, no sertão da Paraíba. Mal dividida como costumam ser as casas antigas, era fresca, clara e simples. Ela me ensinou que um lar pode ser nu e ser um lar. As mais calmas lembranças que tenho de minha infância, apesar de minha avó afobada, são dentro dessa casa. O tempo e a vida encarregaram-se de reformar essa casa. E ela perdeu-se... Resta linda na minha memória, principalmente quando me lembro das boiadas que passavam, em direção do matadouro, que Rubem Braga lista como questão irrenunciável, e do cedro perfumado que morava à sua esquerda.

A segunda casa foi a de minha mãe, a primeira em que vivi, até os 11 anos, no bairro da Boa Vista, que testemunhou minha infância também, mas sem as férias, que eu gastava em Taperoá.

A terceira foi o espaço de minha adolescência; foi de lá que saí quando casei, aos 22 anos, para começar minha própria família.

Nenhuma das três tinha porão, que Rubem Braga considera fundamental. De acordo com ele, porão deve ser como um cemitério que, “sob os pés da família, como se fosse no subconsciente”, guarda objetos descartados – grandes, como móveis quebrados, ou pequenos, como leques. Visitado por crianças trelosas e destemidas, pode mostrar que a avó já foi uma moça linda que frequentava bailes, o que restaurará a “dignidade corrompida das pessoas grandes” a seus olhos.

Na sua opinião, é conveniente que crianças sintam medo do porão. Elas não saberão a personalidade desse medo, dirão que é medo de escuro, de aranha, de jacaré embaixo da cama... Mas nosso Rubem diagnostica: é medo do Tempo, “esse bicho que tudo come, esse monstro” que terminará por consumir a infância. Apesar dos retratos (eu acrescento).

Isso não significa que minha família não tenha inconsciente, que todo mundo tem, de acordo com estudiosos do assunto. Só que essas coisas não precisam de porão para serem guardadas, Rubem Braga mesmo sabia melhor do que ninguém o que é uma metáfora.

Uma vez, achei os cadernos escolares de minha mãe quando menina, em algum lugar de que não me lembro, na casa de minha avó; eles estavam lá, ao alcance de minha mão, mesmo sem haver porão. Experimentei cobrir sua letra, como se escrevesse como ela e, às vezes, escrevia com a minha própria e apreciava a diferença, exercício que segui fazendo vida afora.

Na segunda casa, os aquários, eu acho, tornaram minhas metáforas aquáticas, tenho mania de mar, rio, navio, bússola, essas coisas das viagens náuticas que são ótimas para falar de “lifetime”, como diriam os ingleses.

A terceira é que tem gerado, pela descaracterização que sofreu, as reflexões presentes neste texto. O tempo, a vida e sua dinâmica me forçaram a um exercício de desapego. E testemunho a mudança inexorável... A casa, aos poucos, vira um buffet infantil colorido – castelos, pistas, pula-pula, bolas... Será, enfim, um lugar onde as pessoas serão felizes?

Nas casas sem porão, as “coisas” podem ser muito bem guardadas em armários, quartos ou baús. Quando meu tio avô Quincas morreu, pôde-se olhar por dentro de um baú por que muito zelava e que continha, digamos assim, um escondido segredo: aberto, revelou o vestido de noiva de sua esposa que falecera precocemente, há anos... Um vestido de noiva, todo mundo sabe, guarda um monte de sonho; tem uma pitada da mais verdadeira pureza, que é a que o amor renova todo dia; tem nossa força bonita de seguir a vida, achando que vai dar certo, apesar da verificação em contrário, muitas vezes. E, para ter essa história, minha família nem precisou de porão, só de baú, mesmo. Mas não era nele que estava o amor, o gesto de afeto e a lembrança. Era no meu tio-avô e agora em mim, pois nós é que somos guardiões de memórias que permanecem intactas, apesar do tempo que corre.

Na verdade, Rubem Braga, as lembranças ficam guardadas em nós, não em porões, e fazem de nós o que somos. São nosso bem, nosso mal, como diz Caetano Veloso...

Inutilmente, queremos guardá-las em retratos, mas existem incêndios e terremotos... Falamos delas, alguns de nós escrevemos sobre elas...

Nossas lembranças dissipam-se com nossa morte? Ou elas são a prova de que temos um destino outro? Por que fomos feitos com a habilidade de as guardar? Para perdê-las com a morte? Aonde nossas lembranças nos levam e onde elas ficam? Em que esconso e recôndito milagre?