quarta-feira, junho 30, 2010

A literatura e sua influência no pensamento contemporâneo

Há algumas semanas, fui convidada pelo Centro de Estudos Freudianos do Recife para compor uma mesa redonda cujos componentes falariam sobre “a literatura e sua influência no pensamento contemporâneo”.
Confesso que não foi fácil sair de minha rotina de falar para adolescentes do ensino médio para expor para psicanalistas estudiosíssimos ideias que, mesmo pouco, fossem proveitosas. E passei uma quinzena estudando muito e me aperreando muito. Mas terminei por conseguir arrumar o que queria falar, com o auxílio da história, que é como sei arrumar minhas ideias.
Inicialmente, falei de um tempo meio indeterminado, quando ainda não havia o romance, gênero cujo percurso escolhi avaliar. Nesse tempo, a tradição situava o que era esperado de cada indivíduo do grupo, desde o nascimento até a morte; a religião produzia sentidos para a vida e para a morte e explicitava rituais; os mitos não só explicavam por que as coisas são como são, mas também “sustentavam” as interdições, necessárias para a manutenção e mesmo a consolidação dos laços sociais; a família e os antepassados (e/ou contadores de histórias) detinham um saber que “perpetuava” o sentido de algumas experiências de que o grupo se apropriava como referência – chefes, reis, santos e guerreiros tinham suas vidas exaustivamente contadas e recontadas, e isso tudo orientava escolhas morais, determinava valores, estabelecia caminhos.
É claro que levanto aqui conceitos que parecem imutáveis, como numa vitrine, mas eles traziam desvios, tanto que, mesmo lentas, mudanças ocorreram. Para que essa “equação” se completasse, vários termos são necessários: o tempo passa muito devagar, as comunidades são pequenas e exercitam a oralidade, as identidades são fortalecidas e legitimadas no dia a dia e os homens se pensam como partes integrantes de um todo.
A Idade Moderna, então, começa a “quebrar” essa lógica – a ampliação do processo de urbanização, as Grandes Navegações, os descobrimentos e seus relatos plásticos e escritos, a Imprensa e a Reforma Protestante fraturaram aquela visão monolítica, e novos paradigmas instauraram-se: o fortalecimento do Capitalismo comercial e a consolidação dos Estados nacionais faziam par com o Absolutismo, em que Deus fortalecia o Rei que, por seu turno, tinha o “direito divino” de governar.
O romance, como gênero, nasce no começo do século XVII, com o “Dom Quixote”, de Cervantes, em circunstâncias muito especiais, mas, realmente, só se desenvolve no final do século XVIII, quando o Iluminismo se contrapõe ao Absolutismo por meio das ideias de progresso e razão e da afirmação do homem como sujeito que observa a realidade.
Durante toda a Idade Moderna, observa-se, assim, uma crise crescente nas relações dos indivíduos embrionários com a tradição, que, até então, amparava suas escolhas de vida e sua visão de mundo.
Aí começa o século XIX, período que Eric J. Hobsbawm, sabiamente, localiza entre 1789 (ano da Revolução Francesa) e 1914 (começo da Primeira Guerra Mundial) e que, sem dúvida, é o século de ouro do romance.
É que o sujeito ocidental, efetivamente, se desliga da tradição (que fala por ele), e se constata uma compulsão de falar, escrever, narrar, para elaborar uma nova ordem – a burguesa industrial. E a literatura se constituiu como contraponto necessário que elucidava novos costumes, novas relações sociais, novos comportamentos, novos valores; que criava identificações e que apresentava ideias, teorias, discussões, argumentos, contra-argumentos, exemplos, experiências.
Balsac, Vítor Hugo, Stendhal, Charles Dickens, Jane Austen, Tolstoy, Dostoievsky, Flaubert, Eça de Queiroz, lá na Europa, e José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Aluísio Azevedo, aqui no Brasil, entre outros, construíram uma tradição narrativa em que um narrador onisciente, linear, cronologicamente ordenado, isento, objetivo e predominantemente masculino entrou no lugar da “voz da tradição”, digamos assim, e trouxe o necessário: aconselhamento, sentido, explicação...
Aí as guerras mundiais do século XX instauraram o malogro da razão e, consequentemente, da ciência e do progresso material. Desde 1914 até 1989 (ano da queda do muro de Berlim), instala-se o antitradicionalismo, ou seja, as novas gerações desfazem o que foi feito pelas anteriores. E a quebra da tradição romanesca aparece como consequência: a fratura da lógica, da perspectiva, da linearidade narrativa, da cronologia e mesmo do narrador; o aparecimento do monólogo interior, ou seja, da narração não episódica; a transgressão do código da língua; a retração do descritivo; a quebra das fronteiras entre realidade e imaginação e o narrador que ocupa um lugar de exceção são traços novos que revelam outra nova ordem, ainda mais complexa, cheia de conflitos e encruzilhadas.
A literatura parece não fazer parte desse novo século que substituiu a palavra – o DNA do século XIX – pela imagem – o DNA do século XX –, mas os roteiros submersos dos filmes e das propagandas e os inúmeros escritores que, apesar das dificuldades, deixaram suas narrativas desconcertantes e desconcertadas apenas nos mostram que continuamos seres narrativos e que nossos relatos são influência de nosso tempo, ao passo que o influenciam, como uma cobra que morde o rabo.
Talvez o declínio da função paterna, constatado nos consultórios, tenha esmagado o narrador tradicional, mas o fato é que, sem ele, continuamos a contar histórias.
Virginia Woolf, James Joyce, Durrel, Pasternak, Saramago, João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos recontam, revelam, tropeçam, perguntam, refazem, inquietam, mas falam do esgarçamento da hierarquia, da responsabilidade de quem não “sofre” um destino, da falta de segurança, de certeza, de sentido, da relatividade, do medo do tempo em que nos coube viver, nós, sujeitos do século XX.
Este tempo tem incoerências, é verdade – ele autoriza a diferença e, portanto, torna desnecessário o relato da experiência do outro, o que é um ônus – mas ele também traz bônus, ainda pouco visíveis, muito amedrontadores, consequentemente.
O que não podemos fazer é nos agarrar nostalgicamente à ordem antiga, defendendo-a como melhor, e ignorando as infelicidades nítidas que nos acometiam.
Como sempre aconteceu, nossos filhos enfrentarão novos desafios, num mundo diferente do nosso, que teimamos em impor a eles, que, felizmente, não o aprendem de todo.
E la nave và...
E, como já disse, o passado não é gaiola, mas chave.
Sim, é bom ler, que bons escritores nos dão ferramentas bonitas para não só entender o mundo mas também para saber das pessoas e suas pluralidades.