"A confissão da leoa", de Mia Couto
Li,
pela primeira vez, Mia Couto, que considero um milagre político: ele tornou-se
um escritor de sucesso mundial, apesar de ser usuário da língua portuguesa e de
ser africano.
Esse parágrafo impactante não tem nada a ver com
a relação de verdadeiro amor pelo português e pela África que tenho desde
menina.
Meu pai me contava uma história meio
sem fim, como a das mil e uma noites, sobre um menino chamado Serafim que,
clandestino num navio, chegou à África e viveu aventuras mirabolantes, na
companhia do cozinheiro do navio, seu amigo inseparável. Essa ligação, ao mesmo
tempo afetiva e narrativa, com o continente fez o esboço de uma tatuagem, hoje
nítida, que trago no coração.
A língua portuguesa, por sua vez, foi a
ferramenta que me coube para que eu fosse o que sou – uma professora de língua
e literatura e uma escritora, ainda que mal publicada.
Quando cresci, outros escritores e diretores de
cinema me contaram mais sobre a África. Mas eu gostei de saber dela por um
africano. Mia Couto é de Moçambique e falou de minha amada África com minha
amada língua portuguesa, acrescida de variações lindas e criativas. Mas o
bonito de tudo foi o que ele disse: que os africanos são seres como nós outros.
A história de “A confissão da leoa” é contada
por dois narradores em primeira pessoa – uma aldeã africana e um caçador. Seus
relatos são alternados e nos dão dois pontos de vista complementares sobre o
ataque de três leões a pessoas numa remota região da África. O caçador sai da
capital intentando salvar os habitantes da aldeia, na companhia de um político
e sua esposa, de um escritor, meio sem serventia, a princípio, e, depois de
visitar o irmão e a cunhada num hospício, adentrar com todos os outros o país
para o que ele planeja que será sua última caçada.
Só que, ao chegar à aldeia, o caçador
depara-se com uma população morta, não no sentido literal, mas metafórico: as
pessoas, em especial as mulheres, encontram-se subjugadas por tradições
culturais e opressões políticas, sociais e econômicas que as afogam
inapelavelmente.
Na verdade, elas são como espelhos em que
podemos nos mirar e nos reconhecer de várias formas – nas ordenações
patriarcais que tanto dificultam a vida de mulheres em todo o mundo; nas
injunções culturais que limitam nossas buscas por melhores condições de vida;
nas opressões históricas e políticas que, global e localmente, forjaram e
forjam desigualdades e explorações inaceitáveis mundo afora e mundo adentro.
Sim, porque toda a história nos faz visitar
aquilo que nos faz humanos: nossos fantasmas escuros de indizíveis dos quais
gostaríamos de fugir, mas que escritores como Mia nos fazem encarar; nosso
tutano cheio de falhas que se refletem em organizações sociais e políticas
espúrias e desconcertantes; nossas incompreensões internas que obnubilam nossa
compreensão possível do outro.
O relato, lá longe pontilhado de realismo
mágico ou mesmo temperado com mitos antigos, vai desconstruindo o “problema de
fora” da África e vai, metaforicamente, descortinando o “problema de dentro”: é
que, antes dos leões, há questões cruciais na aldeia – estupro, incesto,
exclusão, discriminação, violência, covardia, conivência, assassinato, loucura,
opressão...
É uma história difícil para quem já viveu o
processo colonial e se acostumou a responsabilizar os de “fora” pelas mazelas
gerais, sem o enfrentamento corajoso das questões de “dentro”.
A aldeia Kulumani, portanto, é uma metonímia:
um pedacinho do mundo que o simboliza. E a proeza de Mia é equalizar o “fora” e
o “dentro” de forma que visualizamos que “todos” são parecidos e perdem-se em
conflitos de natureza vária os quais estão além de nossa capacidade de
compreensão e explicação.
Uma mulher para quem “toda saída é uma
emboscada”; um povo que escolheu “a segurança da obediência”; um homem que só
sabia existir na doença emocional; outro homem que deseja a mulher do irmão; um
pai que não acertou a deixar a filha “ser pessoa, livre e feliz”... são todas
histórias que se reconhecem porque são de todos nós, em todos os séculos.
A saída, infere-se, é a palavra dita, buscada,
escrita, sonhada, ouvida, porque ela é nossa “única roupa”; aquilo que salva,
porque onde ela existe não há sangue; porque cada palavra ou cada letra é uma
cor nova com que se olha o mundo; uma arma contra a opressão; só com ela
pode-se lutar contra as “costas da razão”, elaborando-as e ressignificando-as
para, devagar, chegarmos ao “ovo do tempo” quando, enfim, seremos todos
conciliados e perdoados.
Mia Couto me faz lembrar João Guimarães Rosa:
ambos forçam a linguagem além dos limites conhecidos a fim de inaugurarem novas
intuições e percepções e compreensões...
Amei saber que “escutar já é falar”...
Então: “escutando” Mia e Rosa e lutando com
palavras para falar deles ou com eles, refaço a trança que fui, sou, serei na
linguagem que me justifica e ajuda a ir levando a vida, que não deixa de ser “a
espera do que pode ser vivido”.
Obrigada, Mia Couto.