terça-feira, julho 09, 2013

Desastres (inclusive ecológicos), mobilidade e maracatu

            Há alguns anos, trabalhava comigo uma professora très chique. Um dia, seu carro estava na revisão, e um amigo comum ofereceu-lhe uma carona até em casa. Ela, educadamente, recusou e, depois que nosso amigo afastou-se, ela me disse:
            − Não gosto de chegar a minha casa assim, com homens desconhecidos, pois não sei o que o porteiro do prédio poderá pensar.
            Eu, francamente, nunca tinha pensado nisso, nem imaginado que houvesse, no mundo, pessoas que pensassem nisso. Mas há. E a minha amiga é uma delas.
            Fiquei, a partir daí, imaginando o que os vários porteiros do meu prédio costumam pensar sobre mim e sempre me divirto com o que penso.
            É que, por vários motivos, sou única em muitos posicionamentos e práticas sociais, inclusive de mobilidade, o que deve suscitar surpresas. No mínimo. Por exemplo, sou a única pessoa que eu mesma conheço de minha classe e de minha idade que anda de ônibus e a pé. Isso me traz, para ser franca, muitos problemas: como as calçadas recifenses são intransitáveis, vivo caindo ou torcendo tornozelos; como sou a única moradora que chega a pé ao prédio, sei de coisas que nenhuma outra sabe – nos portões, por exemplo, uma pessoa com sombrinha não cabe, o que obriga o usuário da entrada a incliná-la e, portanto, a se molhar e a se atrapalhar todo, já que não se carrega só a sombrinha; com frequência há bolsas, sacolas com compras ou pastas de trabalhos, além da sombrinha e do fato de que temos que abrir o portão e fechá-lo; por último, já fui assaltada algumas vezes, episódio que só é mencionável num texto como este, se não tiver tido nenhuma consequência maior. Evidentemente, tenho muita compaixão pelas empregadas domésticas, pois sei, perfeitamente, tudo o que elas sofrem para chegar ao trabalho, e elas consideram com muita empatia essa expiação comum de infortúnios, pois não só sempre sou considerada, na sua linguagem, popular, mas também ganho sorrisos e cumprimentos sinceros e efusivos. Como sou uma estudiosa da língua, imagino que a palavra popular, nesse contexto, é sinônima de simpática, ou diferente, ou mesmo meio doida, talvez. Mas eu fico muito honrada quando se referem assim a mim, o que acontece com muita frequência.
            Por outro lado, apesar de todas essas dificuldades, acho que ganho uma certeza boa por dentro de que faço a coisa certa – numa cidade engarrafada como o Recife, a gente tem que fazer certos sacrifícios e andar menos de carro, o atual grande vilão das metrópoles. Mas os habitantes do Recife estão a anos luz dessa compreensão básica para uma cidade grande minimamente habitável. Aqui há atrasos de vários tipos – horários (pois chega-se atrasado) e ideológico-automobilísticos (pois há uma supervalorização cultural de automóveis grandes e até enormes, de que não se abre mão de jeito nenhum, já que se é socialmente considerado a partir do carro que se possui). E, como não se quer, em nenhuma hipótese, ser confundido com os mais pobres, monta-se nos carros até para ir à farmácia da esquina. Essa lógica antiga, vinda da distância entre a casa-grande e a senzala, persiste aqui na cidade, apesar de todos os exemplos racionais, vindos de outras, como Paris, Amsterdã, Tóquio ou Londres – que já resolveram seus impasses urbanos por meio de um eficiente transporte coletivo –, apesar da Revolução Francesa e de suas simpáticas teses e apesar dessas idéias meio esquisitas de preservação ambiental.
           O leitor deve já estar achando que esquisitas são as minhas palavras: é que o ideário preservacionista é de uma unanimidade surpreendente. Mas eu sou como Nelson Rodrigues, que considera toda unanimidade uma burrice. Quando todo mundo tem a mesma ideia, eu tendo a achar que há alguma coisa errada com ela e começo a procurar cabelo em ovo, ou seja: cavo para procurar o erro na tal da concordância total que, num mundo com tanta gente, é bem desconfiável. Na minha cabeça, num planeta habitado por sete bilhões de pessoas, deveria haver sete bilhões de jeitos de pensar e não apenas um, como acontece quando se considera a questão ambiental. Nessa lógica, todos são a favor do meio ambiente e, principalmente, dos bichos que, sorrateiramente, começaram a tomar o lugar das pessoas, tendo acesso a tratamentos de saúde a que os mais desafortunados no país não têm ou até a tratamentos estéticos e psicológicos, o que eleva o absurdo a uma potência inaceitável. Desse modo, o tema tem assumido ares “veterinários” e não políticos, como deve ser o que tem o nosso toque, o do ser humano.
          Quando, nas minhas andanças desastradas pelas calçadas do Recife, testemunho esgotos vazando, fico pensando que nossos problemas ecológicos são decorrentes mais da falta de acesso a direitos básicos, como rede sanitária, do que de buracos na camada de ozônio, aquecimento global ou outras conversas desencontradas que aparecem na mídia muito sensacionalista e alarmista, na minha opinião. O que estou dizendo é que há, sim, uma ligação entre mobilidade urbana e posturas ecológicas; mas não posturas infantilizadas e reducionistas, como as da maioria: urge rever nossos comportamentos de consumo e de locomoção para que se  possa criar cidades mais amenas e mais inclusivas. Se há ainda pessoas sem acesso ao consumo e se é desejável que todos tenham os mesmos bens, é claro que teremos de desperdiçar menos e andar a pé ou de ônibus ou de bicicleta. Todos. Igualmente. Ou seja: “a” questão é de gente, não de bicho; é preciso, portanto, comprar menos, recusar, repensar, reciclar, recuperar, reutilizar... e outros erres ainda. E, principalmente, é urgente quebrar, definitivamente, essa mentalidade colonial que criou uma sociedade fraturada e violenta, de que ninguém se orgulha e que todos gostariam que fosse diferente...
            Pois bem: com todo esse aperreio na cabeça, fui, coerentemente, a pé à padaria perto da minha casa comprar sorvete para meu filho eterno e sua namorada. O dia estava radiante, e o sol inclemente, tanto que tive de passar protetor solar. Quando cheguei a meu destino, desabou uma chuva grossa. Paguei a mercadoria e fiquei esperando que o aguaceiro passasse, mas ele continuava forte, como só aqui em Recife ele sabe ser. Depois que esperei muito tempo, a moça do caixa me abordou:
             − Dona Flávia, não sei se a senhora topa... É que temos aqui essa sombrinha... Se a senhora quiser, a senhora vai com ela e deixa lá na portaria, que o rapaz da entrega vai buscar depois da chuva...
            A sombrinha, na verdade, era um guarda-chuva enorme, desses que têm propaganda de sorvete e carrega uma espécie de babado entre uma haste e outra. Eu considerei tudo: a chuva, a pressa, a aparência... E resolvi encarar. Agradeci e saí, lépida, fagueira e... seca... rua afora.
          Quando cheguei ao prédio, tive, é claro, de fazer a tal inevitável e competente ginástica logo no primeiro portão, no do porteiro, que me olhou com a cara mais surpresa com que já me encarou:
            − Dona Flávia, o que é isso?
          Eu nada respondi e entrei pelo portão mais parecendo um pistilo, pois fechara a sombrinha comigo mesma dentro para poder passar. Reabri-a. Alguns metros depois, havia a travessia do segundo portão; eu pensei em passar pelo dos carros, mas havia uma poça de água e fui forçada a usar o estreito. O sorvete, a carteira, a enorme sombrinha, já de novo aberta, o portão que o amortecedor teimava em fechar, a chuva formavam uma equação impossível, tudo ao mesmo tempo... O contorcionismo malabarista falhou, surgiu um carro, dirigido por uma de minhas irmãs... que me flagrou, já entalada, e, a essa altura, toda molhada, apesar da imensa sombrinha.
            − Mulher de Deus! Que danado é isso? – exclamou, morrendo rir.
            Concordamos todas que sou uma maluca sem conserto. Mas uma coisa eu sou também: coerente − sou ecológica, como se dever ser, ando a pé e pego ônibus. Pago um mico, de vez em quando; em compensação tenho sempre assunto para crônicas sobre desastres variados.
            Quando entrei em casa, minha empregada botou a cereja no bolo:
            − Daqui de cima, da janela da cozinha, a senhora parecia mais uma rainha de maracatu.
           
            Moral da história: quando o assunto é "ecologia", o local e o global são indissociáveis.