"Primeiras estórias"
"A gente
cresce sempre, sem saber para onde."
(João Guimarães Rosa)
O livro de contos
"Primeiras estórias", de João Guimarães Rosa, foi publicado em 1962,
seis anos depois do colosso "Grande sertão: veredas". Contém 21 histórias, arrumadas
em dois grupos, separados pela narrativa "O espelho", uma espécie de
"Grande sertão: veredas" condensado. O primeiro e o último conto têm
o mesmo personagem em distintos e cruciais tempos de sua vida. Aliás, isso
parece ser o miolo do livro – há sempre alguém num momento especial de
revelação ou de compreensão de verdades quase inenarráveis, de tão puras e
primitivas.
De fato, há sempre acontecimentos
inusitados ou comportamentos inexplicáveis narrados numa linguagem que tenta
ser tão, tão primordial que tem que ser utilizada uma outra língua portuguesa,
distinta daquela de que, cotidiana e tradicionalmente, se lança mão. Daí ser
Guimarães Rosa escritor em um idioma que parece ser só dele, cheio de
neologismos, arcaísmos, regionalismos, tudo misturado com palavras e estruturas
sintáticas trazidas de outras línguas (mas não só, pois há também recriação),
até porque ele tenta falar ou escrever sobre experiências tão fundantes, que
não seria possível descrevê-las com a língua portuguesa na sua gramática
tradicional. Nesse contexto, conteúdo e forma se completam para transportar o leitor
para "trás" da realidade, onde dorme um sentido cheio de mistério,
que existe, sem que conscientemente saibamos.
Acontece que há um episódio
que acorda esse mundo paralelo de seu sono enigmático ou mesmo metafísico e, é
claro, é preciso uma espécie de mágica ou de truque na linguagem para que ela
consiga descrever o acontecido e seus efeitos no mundo real.
O
contato com essas forças invisíveis e quase intraduzíveis é possível porque há
pessoas ou seres diferentes, como loucos de vários matizes, crianças especiais,
extraterrestres, apaixonados e sensíveis de toda sorte, que parecem viver
noutra dimensão, desenvolvendo-se, ontologicamente, fora do espelho das
convenções sociais e daquilo que se considera conveniente ou aceitável... Por
isso o espelho do meio do livro: ele está lá, mas esses seres raros estão fora
dele, revelando uma sabedoria particular ou exalando uma luz exclusiva, as
quais têm o poder de desvelar às pessoas normais esse mundo conhecido, mas
esquecido. Constroem eles uma espécie de ponte, no limite do impossível, e nos
trazem reflexões sobre amor, convivência, tolerância, utilidade, diversidade,
compaixão – “palavras” que, infelizmente, ainda não sabemos escrever... Mas o
livro as escorcha, e elas se realizam no estreito lugar que lhes é possível.
De fato, o que o autor nos diz,
através dessas narrativas, é que a vida e as leis escondidas que a regem não
são racionais e, portanto, não podem ser explicadas nem entendidas com o uso da
lógica, mas com o da intuição. E todo o livro é uma tentativa de transportar o
leitor para essa “intersecção”, esse lugar de percepção mais lúcida quando, em
contato com as reminiscências perdidas, possibilitadas pelos “escolhidos”,
pode-se redescobrir o cimento esquecido do amor, que une todos os homens e que
pode viabilizar a sua tão difícil convivência. Só nesse instante fugaz é
possível entender o sofrimento do outro, colocar-se no lugar dele, viver por
ele e não contra ele, aceitar suas idiossincrasias, vê-lo sem preconceitos...
Platão
não é coincidência: o autor sugere que esses seres especiais, embora não
“apropriados” do/ao espelho, têm serventia, pois refazem as ligações perdidas
entre os homens, por talvez guardarem melhor as lembranças desse mundo perfeito
no qual todos os homens viveram e do qual se afastaram, em virtude do
verdadeiro exílio que constitui a vida material.
Por isso a presença dessa língua
divergente, que é como uma linguagem essencial, que mistura todas as línguas, e
(quem sabe?) com a qual os homens se comunicavam antes do episódio da Torre de
Babel, cujos tijolos caíram sobre todos os homens e os incapacitaram de se
entenderem... As personagens não são como “todos”, são como elas mesmas; em
contrapartida, meio desligadas do mundo visível, podem materializar horizontes,
elaborar possibilidades ou ressignificar “o que podia ter sido e que não foi”,
pegando emprestadas as palavras sabidas de Manuel Bandeira.
“Primeiras
estórias” é um livro espiritual e otimista e corajoso que, de forma delicada e
respeitosa, fala de pessoas com deficiência, doenças emocionais, internamentos
psiquiátricos, déficit cognitivo e de fala, psicopatias, quando nenhuma dessas
palavras politicamente corretas existia...
Só que a beleza estonteante de
João Guimarães Rosa dá a toda essa discussão um alento que o politicamente
correto não dá: em vez de falar em inclusão ou acessibilidade de faz de conta,
ele descortina a utilidade metafísica “deles” e nos ensina que estão fora de
nossos espelhos, mas são “nossos”.