domingo, novembro 20, 2016

Aos nossos alunos - 6



             Um dos temas a que recorrentemente voltei nas minhas aulas neste ano difícil que termina foi o da comunicação através de nossos vigorosos meios de comunicação – a televisão, o celular, a internet e, portanto, as redes sociais.
            Talvez não seja este o momento mais apropriado para continuar pensando ou tentando fazer pensar, mas não acredito que seja possível falar de verdade sem acrescentar algum conteúdo ao que já foi dito. E é “falar de verdade” que talvez seja o ofício da professora de literatura e pretensa escritora que sou.
            Sei que há agora bilhões de produtores de conteúdo, possíveis graças aos meios de comunicação mais formidáveis e baratos da história humana. Porém constato também que estamos morando na Babel mais absurda de todos os tempos: aquela resultante de um mundo cheio de gente com meios de comunicação virtual inimagináveis há 20 anos nas mãos. Mas onde faltam pessoas que consigam dialogar e se entender.
            Cada um de nós carrega um pouco de culpa dessa situação esdrúxula: jornalistas e professores, infantilmente, abriram mão de suas importantes funções sociais e passaram a dizer o que todos dizem ou o que todos querem ouvir. O senso comum triunfa, com suas simplificações, com suas frases feitas, com suas receitas prontas que não dão conta de nossas complexidades. Os professores de Redação, com o escudo do Enem, propõem textos prontos, e os alunos acatam o atalho, perdendo a oportunidade de se colocar, realmente, diante de questões cruciais de nossa sociedade. E o pior: são levados a pensar que estão vendo tudo melhor quando, infelizmente, escrevem ideias que lhes foram impostas. E não são capazes de ter as suas próprias, decorrentes de um processamento de dados múltiplos. O governo acha que tudo isso se resolve com uma suposta escola sem partido e não com informação mais plural e mais pluridirecional. E cada um de nós também é culpado quando não busca canais alternativos ou quando nem sequer escuta quem pensa diferente.
            O resultado disso tudo é apenas embate de particularismos que deságuam numa sociedade fraturada e incapaz de construir utopias coletivas, necessárias ao norteamento das ações cotidianas de cada um.
            Ao contrário do que se podia esperar, nas famosas redes sociais, continuamos violentos e preconceituosos e, nesses canais globais, escorre nosso ódio de cada dia em tal volume que alguns chegam a pensar que estamos piores do que sempre estivemos.
            Não estamos lendo nada; rotulando a tevê com mil defeitos, também não estamos assistindo a ela. Presos a outra tevê que cabe nas nossas mãos e pode ser portada em todo lugar, estamos subordinados à ditadura da futilidade mais avassaladora de toda a nossa história: publicidades, piadas, músicas de baixa qualidade, correntes de oração ameaçadoras, ou mesmo rápidas e curtas frases sem autores ou com errada autoria circulam tão rapidamente que nossa memória não retém; chegam em tal quantidade, que enchem nossos celulares a ponto de os travar e inutilizar. E, então, descartamos... Nada fica, nada permanece... Os meios de apagamento são também espetaculares – um click em “limpeza rápida” e tudo se apaga. Nada fica, nada permanece.
            Tudo parece fácil, rápido, possível, alcançável... Na verdade, o nome disso é superficialidade, falta de compromisso com as verdades internas e com o outro. Sem olhar nos olhos uns dos outros, sem dizer o que o outro precisa escutar e sem nos dispor a ouvir, estamos nos afastando...
            Zapeando de uma guerra a um concurso de beleza, de uma criança ferida a uma baleia encalhada, somos capazes de nos apiedar da baleia... E de acharmos que as guerras virtuais e higiênicas do mundo de hoje são uma boa prevenção contra a imigração que nos ameaça...
            Seguimos sem pensar, escolhemos atalhos, o canal que todos veem, quem tem mais seguidores, quem vende mais... Sem atentar para o fato de que escolhemos. E, quando analisamos, apenas dizemos: o capitalismo move e comanda... Nunca conseguimos ver as nossas próprias ações que o fortalecem... Estamos uma sociedade cheia de discursos, não de diálogos. Dizer que a tevê mente, esconde; constatar sua ligação com o poder; adorar o professor que diz apenas o que queremos ouvir; escolher o mesmo que a maioria escolhe é fugir – fugir da responsabilidade de ouvir, de pensar, de retrucar, de discordar, de ser humano.
            Esse apetite voraz por hedonismos de toda sorte está nos jogando num trajeto sem sentido que afogamos em bebida, drogas e outros desastres. E está nos colocando uns contra os outros.
            O nome disso não é democracia. É tirania. O nome disso não é comunicação. É barulho.
            Pensando em vocês, vem-me a palavra “responsabilidade”. Na minha responsabilidade e na de vocês. A minha consistiu em alertar vocês sobre esse engodo em que estamos metidos; a de vocês é de resistirem.
            Os jornalistas, os advogados e juízes, os médicos, os engenheiros, os professores, enfim os profissionais que vocês serão precisarão agir de modo mais crítico e humano. Vocês terão ainda, antes de atuarem, uns anos de preparação. Leiam. Leiam livros técnicos para aprenderem o “como” fazer. Mas leiam também literatura. Ela nos ensina a ver de outro ponto de vista, a nos identificar com o outro, a não só nos divertir, mas também vislumbrar um sentido e considerar o outro, a nos movermos juntos, apesar de nossas diferenças.
            Dessa riquíssima indústria cultural também faz parte uma herança que nos ensina o que já fomos. E todos nós temos responsabilidade em relação a esse legado: não iremos repeti-lo, é claro. Mas é preciso conhecê-lo para modificá-lo e tirar frutos dele. Esse insaciável apetite pelo novo está apenas nos fazendo consumir o que não tem qualidade. O resultado disso não é felicidade, é depressão mascarada de bem-estar. O nome disso é hipocrisia.
            Espero que cada um de vocês tenha ficado com, pelo menos, uma palavra minha. Espero que cada um de vocês possa multiplicar essa palavra. Espero que cada um de vocês possa ter uma palavra própria. E que essa corrente seja uma direção a seguir, a multiplicar... Nesse mundo onde a maioria das histórias não tem sentido nem depois, que nosso diálogo deste ano norteie e, quando nos encontrarmos mais tarde, possamos nos reconhecer, como o fazem aqueles que partilham e acertam a caminhar juntos, como aconteceu este ano.