sábado, janeiro 20, 2024

SAUDAÇÃO AO 123º ANIVERSÁRIO da ALP

Prezados companheiros:

Embora eu tenha falado para a maioria de vocês há pouco tempo, por ocasião de minha posse, é da tradição desta Casa que, nas comemorações de seu aniversário, o último acadêmico que tenha tomado posse faça uma breve saudação inicial. Correndo o risco de ser repetitiva e pedindo generosidade, já que ainda permaneço no mesmo contexto pessoal e social que gerou aquelas palavras, estou aqui cumprindo este rito.

      Esta Academia Pernambucana de Letras e seu pertinente irmão mais velho, que sempre a protegeu e até por muito tempo a abrigou, o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, nasceram na Praça da Concórdia – ele, em 1887, e ela, em 1901 (está, portanto, esta Casa fazendo, neste ano de 2024, cento e vinte e três anos). Depois de muito peregrinar, desde a década de 70, a APL mora nesta sua sede, que é quase uma unanimidade – muitos admiram a bela casa doada por governadores que está sob nossa responsabilidade.

Mas há aqueles que questionam a existência de Academias de Letras e a própria Literatura nos dias atuais. A esses é preciso responder com responsabilidade e respeito. Primeiro, é preciso atentar para o fato de que a Escola está começando a cortar relações com a Literatura, o que terminará, ao que parece, por tirar a História da Literatura (a matéria que leciono) das salas do Ensino Médio.

É urgente que se esclareça que não é a Literatura que está ameaçada, ao contrário: bienais, feiras literárias, concursos literários concorridíssimos, como o nosso mais recente, fãs clubes e seguidores de escritores, resenhas no Youtube, adaptações de livros para o cinema, ofertas de graduações e pós-graduações de escrita criativa em diversos estados brasileiros comprovam que, mais do que nunca, há canais abertos para a apreciação e a produção do texto literário. O que está em xeque é o ensino da Literatura.

A relação da Escola com a Literatura sempre foi bem ambígua: elas se dão bem, exceto quando a segunda convida a imaginação a pensar ordenações fora dos limites estabelecidos. E isso não é raro, diga-se de passagem. Quando comecei a ensinar, o convite à leitura do livro “O cortiço”, de Aluísio de Azevedo, por exemplo, promovia um verdadeiro pandemônio entre os pais e avós dos meus alunos. Somada a outras questões contextuais nacionais e globais, como a crença de que a simplificação traria maior compreensão, e a infantilização de adultos, o tal “jardim de infância” global, como o chama Amós Oz, essa ambiguidade tomou, recentemente, uma proporção tão forte, que se constata um afastamento invisível e sistemático entre a Literatura e a Escola e seus currículos.

Como acho que a população brasileira não tem consciência do que está acontecendo, tenho exaustivamente denunciado e analisado causas e efeitos dessa política (não creio que inconsciente por parte de gestores) de verdadeiro apagamento das contribuições que a Literatura (e todas as Ciências Humanas que lhe são atreladas) podem trazer para o tecido social brasileiro.

O ENEM, por exemplo, nivela por baixo, é coerente com as habilidades e as competências que ele mesmo estabelece como importantes – apesar de, às vezes, nem linguísticas elas serem –, mas nem de longe é cooperativo com o verdadeiro ensino de Língua Portuguesa, além de que, na seleção randômica de textos para a confecção das questões sobre as habilidades, apresenta mais memes, tirinhas e textos injuntivos do que literários – dentre as 45 questões que apresenta todo ano a nossos alunos, apenas 4 ou 5 partem de textos literários, o mesmo número das questões de Língua Estrangeira. Isso significa que a Literatura é estrangeira em nosso país? Algo que parece escrito noutra língua e de que, para facilitar o aprendizado, aos poucos, devemos nos afastar?

Mas, como numa cebola e suas camadas, há uma causa originária para tudo isso: a Universidade começou a questionar o ensino da História da Literatura, afirmando que os alunos estudavam Literatura, mas não acessavam o texto literário, ou seja: com certa razão, a Faculdade de Letras chamava a atenção para o fato de que se estudava um discurso sobre a literatura e não a literatura. De fato, o texto literário, às vezes, na escola, tinha se transformado num mero pretexto para o estudo da biografia dos autores, do contexto histórico e da gramática normativa, embora isso se deva, talvez, mais à falta de conhecimento de como fazer e de reflexão sobre para que fazer, o que não confirma a ausência total dessas ferramentas na análise das obras.

O texto literário tem suas especificidades, é verdade. E uma delas é a rede complexa de informações que tem de ser acessada para a sua compreensão: o contexto em que a obra foi escrita e alguns pontos da biografia de seu autor, por exemplo, são informações cruciais para se entender a obra, até porque um dos objetivos da Literatura é elaborar tanto a realidade circundante quanto a subjetiva. Nesse sentido, o conhecimento do contexto histórico e de alguns pontos da biografia do autor são informações necessárias para o entendimento do texto literário. A questão é de "cubagem".

Frutos de tudo isso, a quase morte da Crítica Literária (cuja ação ofertava chaves de interpretação, sendo um GPS do leitor), o julgamento sumário e o cancelamento de textos e seus autores são o mais novo campo de atuação dessa verdadeira censura que, inclusive, propõe reescrever textos errados para que se tornem certos.

Ora, o produtor de textos que pensa diferente de nós, num tempo diferente do nosso, pensa diferente de nós e não errado, e a circulação de ideias plurais e diferentes entre si é uma riqueza e não uma inadequação apagável. Além disso, a habilidade de contextualização faz parte das ferramentas irrenunciáveis do jogo da literatura. E da vida. E dos urgentes esforços de afeto que precisamos conjugar. E do amadurecimento de ideias que circulam entre nós.

Em seguida, é preciso atentar para o fato de que a Literatura, como todas as outras artes, não se justifica apenas pela utilidade. No entanto, a reflexão sobre ela, como assinala o crítico português Jacinto Prado Coelho, já muito nos ensinou: ela mobiliza aprendizados sobre o idioma, disponibiliza um cardápio de experiências de vida, não só traz lições de sensibilidade e gosto, mas também cria capacidades de ver, fantasiar, sonhar e criticar. Isso tudo não a confunde, evidentemente, com a Pedagogia, pois o escritor se faz, se altera, vê, mostra e recria o mundo, trabalhando a linguagem por ou de dentro e dando a ela marcas estéticas, o que pluraliza os entendimentos e as interpretações. E, portanto, a criação de novas realidades subjetivas e objetivas.

O leitor, consequentemente, experiencia a seu modo esse conjunto de ações e, paulatinamente, se constrói, tendo com a obra uma relação íntima, apenas mediada por professores e críticos, mas intransferível, na medida em que enxerga, de certo modo, a realidade que o cerca e a reconfigura também de forma autoral, pessoal e única.

Vozes poderosas demais defendem o ensino apenas das Ciências da Natureza e da Matemática que, dizem elas, produzem riquezas e pagam boletos. Infelizmente, essas ideias começam a reverberar nos currículos escolares. A diminuição em curso da carga horária de Sociologia, Geografia e Filosofia, por exemplo, mostra como é forte a ideia de que é uma espécie de perda de tempo ou mesmo um perigo estudar as Ciências Humanas. Pois elas fazem circular ideias demais, e só duas, contrárias entre si, devem existir.

Mas a construção processual e o fortalecimento cotidiano de uma democracia, na minha opinião, se devem, de início, a uma “atmosfera social” de reconhecimento de todos como merecedores de direitos iguais, embora sejam respeitadas as idiossincrasias de cada um. É desnecessário lembrar que não é na aula de Ciências da Natureza e de Matemática que pautas como essas têm espaço para serem discutidas e elaboradas. Em outras palavras, o desleixo com as Humanas, o enfraquecimento consequente dos movimentos sociais e a simplificação do currículo e, portanto, da escola de nossos jovens desestabilizaram profundamente o país. Não só: afastaram-no da busca por uma distribuição de rendas menos escandalosa. Nesse contexto, governar se tornou uma agenda apenas econômica que negligencia questões políticas e sociais.

A circulação de pretensos poemas com verbos no Modo Imperativo sequenciados – estratégia usada pelos textos da propaganda – e o sucesso de livros de autoajuda comprovam como a população ficou refém de receitas prontas, que só enriquecem quem as produz, como o próprio nome escancara (e ninguém percebe).

Esse ninho gerou e, junto com as redes sociais, fortaleceu as“fake news” que, na minha opinião, não são notícias falsas mas “slogans”, ou seja, a invenção de fatos que fortalecem apenas os dois modos circulantes de pensar e apagam milhares de outras possibilidades. Até Jeff Bezos, CEO da Amazon, já percebeu isso quando afirmou que “as redes sociais são máquinas de destruição de nuances” que ameaçam a democracia, filha da multipolaridade, e não da bipolaridade, eu completaria.

Evidentemente, se nem a Escola, nem a Universidade querem relações com a Literatura, aumentou e muito o papel das Academias de Letras no sentido de que elas têm de tomar para si a responsabilidade da guarda do acervo literário e, portanto, cultural do país. E, numa sociedade como a nossa, em que as diversidades são tantas, onde elas seriam elaboradas, acolhidas e respeitadas?

Contra a crítica de que as academias não se concentram mais apenas nas letras artísticas, é imperioso argumentar que as Ciências Humanas também estão na linha do tiro e merecem a trincheira das Academias, por vários motivos: porque também se utilizam da palavra, mas ainda ajudam a ver o mundo e a interpretá-lo de várias perspectivas.

Além disso, caso se pergunte sobre o que se ensina quando se ensina literatura, ver-se-á a ligação estrutural da Literatura com todas as Ciências Humanas, pois a resposta, provavelmente, será “gramática, filosofia, sociologia, antropologia, geografia, história etc.”. Não canso de dizer que a Literatura é o cimento que cola as Humanas.

O prisma que se forma a partir de todas essas Ciências Humanas trabalhando juntas nos ajudará a sair dessa polarização cega e bruta que nos assaltou recentemente. Neste tempo simplista e cheio de ódios e tretas, esta Academia não deve desistir de guardar, vigiar, debruçar-se sobre esse complexo acervo, não no sentido de paralisá-lo, mas no de estudar, melhorar, defender, inventariar, enfatizar e recriar... Sem nunca esquecer que nasceu na Concórdia, que é irmã da democracia, ou seja, também é filha da multipolaridade e não da bipolaridade. E sem nunca se deixar seduzir por completo pelas discussões identitárias atualmente em curso, que, infelizmente, em detrimento da literariedade, distorcem os rumos próprios da literatura por meio de pautas e “slogans” que lhes convêm, mas que, sobretudo, mutilam a polissemia e a gratuidade, o verdadeiro DNA da Literatura.

Erico Verissimo talvez me ajude a concluir este texto – num livro de memórias chamado “Solo de clarineta”, ele contou uma história, como costumam fazer os escritores: quando ele era ainda um rapaz, um médico pediu-lhe para segurar uma lâmpada, enquanto dava pontos num homem que a polícia tinha ferido. Quando ficou adulto e se tornou escritor, essa metáfora serviu-lhe para saber qual a sua função, ou seja, um escritor (eu diria os que lidam com a palavra) é alguém que segura uma lâmpada, para iluminar a realidade de seu mundo, evitando que prevaleça a escuridão, propícia aos facínoras e ditadores. Finaliza dizendo que, se não tivermos lâmpadas elétricas, devemos acender tocos de vela ou riscar fósforos, repetidamente, como um sinal de que não desertamos.

Pois bem: nós, desta Casa, devemos continuar pelejando, mesmo com as mãos queimadas, que a integridade da palavra é a garantia da nossa integridade. E, se alguém pensa que isso não merece cuidado, é porque precisa ouvir outras palavras, mais outras, mais outras... que mais clarifiquem, mais clarifiquem, mais clarifiquem...