sábado, junho 06, 2015

Apresentando Raimundo Carrero - IV

        É depois de Guimarães Rosa e Ariano Suassuna que está a obra do pernambucano Raimundo Carrero – nesse “locus” que não é mineiro nem pernambucano, nem paraibano. Mas tudo isso e mais coisas além.
Contudo, não se pode dizer que Carrero é um escritor regionalista, como ainda se pode afirmar sobre Rosa e Suassuna. Ele localiza suas histórias em lugar nenhum. Com o homem dentro, sem livre arbítrio, carregado por um destino implacável, totalmente diferente do de Guimarães Rosa, cujo personagem escreve (ou fala) e se escreve ou reescreve e reconstrói sua história ao longo do livro. O personagem Riobaldo é autor de sua narrativa e de sua vida − fez conscientemente suas escolhas, experimentou, pensou, refez caminhos e, na narração de sua vida, entende, explica, pensa, opina... Ariano também – na sua obra, no fim, Deus justifica e ordena tudo, perdoa tudo; a ontologia esperançosa dos seres humanos é sua redenção... Em Ariano, tudo tem um sentido espiritual: os seres humanos encontram sua verdadeira natureza depois da Morte.
       Carrero não tem a visão otimista de Guimarães Rosa, nem a aflita mas esperançosa visão de Ariano Suassuna: ele nos descortina o pior do ser humano – traições, estupros, assassinatos, loucura, exercício espúrio do poder, inversão de valores – em comportamentos incompreensíveis e inexplicáveis. Todos esses temas estão presentes em Guimarães Rosa e Ariano Suassuna, é verdade. Ou em qualquer grande escritor. Mas, em Carrero, não há sentido, nem perdão, nem redenção, nem esperança, nem explicação. Só “o escuro, escuros”, usando palavras de João Guimarães Rosa.
Carrero não nos dá o alento de uma explicação, de um sentido; seus curtos romances terminam sem fim, seus personagens não se entendem, nem se explicam. São mamulengos de seus instintos animalescos e de forças inconscientes e ininteligíveis. São presas dramáticas do destino. Sua “acomodação” num enredo sem referências de tempo e lugar, numa ambiência fantasmagórica parecida com as tragédias gregas antigas, obriga-os a agirem sem entender suas próprias ações. E isso tudo nos carrega para “trás” dos poucos acontecimentos, onde estão localizadas as forças animalescas e brutais, próprias daquela natureza que todos sabemos que temos, mas que decidimos esconder no curso de nosso processo civilizatório.
      Como num jogo de cartas em que nada se pode prevenir, os seus poucos personagens são empurrados para experienciar o Mal que existe em si mesmos e para materializar as mais sórdidas ações, que nunca surpreendem os outros personagens, pois de cada um ou de todos se esperam brutalidades e violências.
A linguagem lacônica e claudicante, cheia de pontos finais, nos obriga a parar o tempo todo e a respirar curto, como depois de correr, o que expande o paroxismo do conteúdo. De leve, reconhece-se certo teor regional nessa linguagem que, provavelmente, se perde nas traduções. E nem vale a pena mencionar, de tão apagado.
Enfim, Raimundo Carrero não está só − é herdeiro de uma linha que quebra o beletrismo de nossa tradição literária; Lima Barreto, Augusto dos Anjos, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos ou mesmo João Cabral de Melo Neto são companhias mencionáveis, em virtude de suas obras quebrarem o conceito de “lírico” e “belo”, construindo, a seu modo, um novo conceito de belo ou mesmo de necessário. Como eles, Carrero quebra expectativas e conceitos, tematizando as profundezas humanas num tempo que quer apagá-las. Felizmente, ele escreveu: para não esquecermos.