Meu novo normal - 2
Quando
começa, todo ano traz um minuto de bem-estar, por causa do pingo de esperança
que a gente derrama sobre ele. Embora alguns de nós já tenhamos encarado muitos
inícios e por isso saibamos de cor que todo ano constitui uma tarefa difícil e
sem bula, não custa nada esperar que o novo venha com gosto de chá de rolha e
fazer um esforço para não estragar a fé inocente dos mais jovens. Mas o ano de
22 nasceu tão aloprado, que resolvi escrever esta crônica. Talvez desabafando
eu consiga respirar...
Minha
família é meio chocha com essas reuniões familiares no natal e réveillon, e eu
sempre fico um pouco só desde que meus filhos se casaram... No natal de 2021,
um gosto amargo foi logo desinstalado pela família de uma de minhas noras, a
qual sentia a mesma espécie de saudade por que eu estava passando: eles me
chamaram, e nós passamos não só o natal, mas também o ano novo juntos,
ruminando o fato de nossos filhos estarem morando em São Paulo e, portanto,
longe de nós. Choramos, rimos, bebemos, nos consolamos e saímos vivos desse
sentimento ao mesmo tempo triste e orgulhoso que é a partida dos filhos. Meu
ex-aluno e agora amigo inseparável Gael também me consolou nesse natal
proparoxítono.
Mas, logo depois,
ficou tudo triste: o pai de meus filhos foi hospitalizado e, na sequência,
faleceu. Eles vieram de São Paulo de madrugada feito dois bichinhos feridos, e
eu revi o filme de minha vida, experimentando um luto ambíguo e inexplicável.
Nem sei se pude dar a eles o consolo de que precisavam; calados, partiram no
dia seguinte ao enterro.
Uma amiga me relatou
que achou bonito, quando eles, no final, se apropriaram do caixão em que estava
o corpo e o ergueram com dificuldade à altura necessária, dando ao pai sua
penúltima casa. Chorei muito quando ela me contou, pois a cena, sem ela saber,
foi uma metonímia perfeita do esforço de afeto e de perdão que sempre foi
necessário entre nós, pois nunca fomos uma família feliz. Só alegre, ainda que
eu tenha feito das tripas coração.
Em
seguida entrei no redemoinho da pejotização — cartório, papéis, escaneamentos,
xérox, certidões, assinaturas, números, banco, empresa, conta pj, senhas, MEI,
CEI, SIMPLES... Não só: canal de Youtube, streamings, logo, vinheta... É
estranho me sentir analfabeta, apesar de toda a minha competência linguística.
E ter de depressa, meio cega, caminhar nesse novo mundo que surge tentando me
excluir... Na última sexta-feira, minha professora de pilates me mandou embora:
“Vá pra casa, Flávia, você não tem condições de fazer a aula hoje”. E eu vim
para casa, tentando não sucumbir.
Confesso que tenho
muita raiva e muito medo desse novo normal apressado e violento que ainda não é
“sustância” entendível e falável para mim.
Aí
dois episódios me salvaram: um no sábado passado e outro hoje.
No
sábado, eu recitei poemas ao lado do CLUBE DA BOSSA, formado por Eduardo Farias,
Jorge Percílio e Patrícia Luna, no Café Artisano; lançar meu livro novo e ouvir
de Pedro Gabriel que o contrário de "morte" não é vida, mas "palavra" me deu uma
primeira ressurreição. Esse projeto é uma doidice deliciosa: entre duas
músicas, eu recito um poema... E me certifico de que ainda há espaço no mundo
para as coisas de que gosto e que fazem sentido para mim.
Confesso
que, quando acordei hoje na segunda-feira, pensei: “De volta ao inferno da
pejotização”! E fui meio vencida ao terceiro banco para tentar abrir uma conta
pessoa jurídica. Cheguei... Esperei... Estava mais triste que um passarinho
molhado... Aí um rapaz me chamou e me sentei na cadeira na frente dele.
Conversa vai, conversa vem... O mundo da pejotização foi se transformando...
Ele me contou a sua vida e o milagre que era o fato de estar ali... Quando eu
disse que era professora e escritora, ele disse que gostava de poesia, me
mostrou um vídeo que viralizara nas redes sociais em que ele recitava um poema
para sua mãe, que falecera precocemente... Me falou rapidamente de sua vida nas
ruas, da adoção... Disse que gostava de ler... Também me mostrou sua
companheira grávida fazendo exercícios na academia... Disse que ela era influencer...
Confessou que, se o bebê fosse mulher, receberia o mesmo nome de sua mãe... Eu
mostrei fotos de meus filhos e netos... Tinha coragem de dizer “não sei”, ele
entendia... Pegava o meu celular, pedia licença e executava as ações
necessárias à abertura da conta... Ele me deu o número do telefone particular dele, para
que eu compartilhasse poemas...
Saí
do banco uma nova mulher; o sentido de minha vida tinha reaparecido: as
palavras (o oposto da morte) com que sempre arranjo um sentido nessa coisa
absurda que é a vida estavam meio escondidas, mas marcavam presença naquele
lugar, graças àquele jovem bonito que, delicadamente, conseguiu falar a minha
língua, apesar de ela ser tão rara. Ele, sem saber, me ajudou a ver que, apesar
dos fatos desfavoráveis que acontecem — epidemias, isolamentos, pejotizações,
alfabetos noutras línguas que nos atropelam, governos —, milagres que não
estamos enxergando também acontecem... E que, se eu resistir, o novo normal vai
começar a entrar nos meus trilhos, como aconteceu naquele intervalo mágico em
que duas pessoas tão diferentes, com vidas tão diferentes, dentro de um banco,
foram capazes não só de estarem juntas (uma traduzindo para a outra uma nova
língua), como de se abraçarem pelas palavras.
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