terça-feira, fevereiro 20, 2024

A MORTE DA CRÔNICA

Abri o meu celular hoje e li, meio atrasada, uma notícia muito triste, datada de 5 de agosto: a morte da crônica, anunciada pelo escritor Julian Fucks. Essa notícia me entristeceu muito, pois ela se soma à sensação esquisita que comecei a sentir de que o mundo da gente morre antes da gente, ou seja, tudo aquilo que somos e pensamos fica de repente anacrônico e começamos a não mais nos reconhecer como alguém que tem algo pertinente a acrescentar. Esta crônica nasceu das reflexões a que fui empurrada pela azeda notícia.

         A crônica é um gênero textual considerado menor, mas ele é fundamental. Nasceu no século XIX e se desenvolveu no XX de forma admirável, em virtude da simpatia que este tem pelas coisas do dia a dia; aqui no Brasil, isso se deu de forma tão especial, que já vi algumas pessoas dizerem que o gênero é brasileiro, o que não é verdade. Mas bem que poderia ser – no seu lugar de origem (o jornal), os cronistas brasileiros desenvolveram, como em nenhum outro país, um olhar diferente, terno, singular e escreveram numa linguagem criativa e poética, fazendo da crônica um gênero tão amado e lido, que foi responsável pela iniciação de milhares de leitores.

         Quando o jornal morreu, é lógico que a crônica ficou ameaçada: ela foi internada na UTI dos blogs, situados dentro do computador. Sobreviveu por um tempo, mas ficou enfraquecida, pois perdeu a matéria de que é feita. Sabe, aquele ato de pegar o livro e reler o texto quando nos apetece começou a desaparecer, pois somos raptados pelas mais incríveis urgências quando nos aproximamos do computador e suas estratégias capciosas de nos seduzir. E somos condenados a nunca achar aquilo que procuramos no verdadeiro labirinto que é o universo virtual.

         A questão é que a crônica (como o próprio nome diz) não é aguda, é crônica... Ela fala de coisas incuráveis com as quais temos de conviver, feito a nossa vida, que não é um caminho esbaforido para um espetáculo de fogos de artifício, mas uma dor mais ou menos cortante que precisamos levar adiante. Quase sem recompensa.

A crônica é um gênero tímido, desprovido de ambições; o cronista é uma pessoa que nunca ganha prêmios, que é produtor de textos de fala baixa, os quais são considerados menos importantes. Porém sua força é exatamente esta: ela nos permite falar de acontecimentos repetitivos e mínimos que pertencem a pessoas como todos nós. Melhor: talvez ela seja uma espécie de medicina paliativa que ajuda a gente a ir levando a vida enquanto a morte não chega... 

O problema da crônica é que ela é decorrente de um tipo de vida que não existe mais – uma vida mais simples, sem tantos afazeres e sem esses imperativos de produtividade que nos armadilharam recentemente; uma vida que dava espaço para o devaneio e permitia que a gente não fizesse nada. Nesses intervalos, era possível pensar na vida de forma livre, recompondo-a com soluções e saídas só nossas. Ou não: apenas podíamos chorar baixinho sem ninguém saber.

Agora me deparo com choros e lutos espetaculosos e com a publicação de perdões obrigatórios escritos por terceiros nas redes sociais – já não somos mais capazes de errar e nos arrepender ou de construir devagar os nossos perdões numa luta interna e silenciosa, enfrentando nossos abismos, pois patrocinadores exigem que isso seja feito depressa e escandalosamente no meio da rua. 

Coitada! A crônica não sabe seduzir algoritmos; não sabe sobreviver neste mundo alucinado, cheio de assuntos sérios e urgentes, de opiniões polêmicas e radicais, de relatos histriônicos, de receitas prontas saídas do forno de bolhas que não sabem dialogar, cheias de pessoas que desistiram de se entender e que só sabem falar com quem é igual...

Observem como a crônica não sabe falar (com sua fala mansa) do hoje; só temos lido crônicas e cronistas do passado. O presente só sabe existir na extravagante presença da treta, da polêmica, dos “likes” e da monetarização que, pelo que entendi, de vez em quando assusta pela suspensão arbitrária...

É um susto atrás do outro...

No entanto, diz Julian Fucks, “tudo aquilo que definha encontra sua estranha maneira de permanecer”...

Então: quero chamar a atenção, nesta crônica meio triste e escrita na língua típica do gênero, para o fato de que podemos, sim, viver a vida de uma forma mais simples e preenchê-la com o propósito do entendimento possível de que somos capazes.

Nunca seremos perfeitos nisso, é verdade. Mas conseguiremos melhorar se não desistirmos de nossos esforços de escutar e falar na língua mansa e figurada que a crônica nos ensina, em vez de nos subordinar às regras dos donos dessas plataformas, que projetam um mundo em que o entendimento é impossível e vence a ideia de que as armas e as balas têm permissão de impedir as palavras e o diálogo, que é filho da multipolaridade e não da bipolaridade. Como sempre, alguém deve estar ganhando muito com a ideia de que há no mundo inteiro só dois jeitos de pensar.

Embora eu saiba que as palavras também ferem, acredito que metáforas revelam cuidado com as palavras e respeito por quem ouve. Também enriquecem a comunicação, multiplicando as possibilidades de interpretação. Portanto, desejo que as crônicas não morram, apesar de estarem doentes, pois elas são muito lidas. Sua língua dá leveza à comunicação e permite a gente escutar sem pressa uma opinião (como esta que estou emitindo), sem que a nossa raiva venha à flor de nossa pele.

Para isso, precisamos nos esforçar para aprender cada dia mais a nossa língua e suas virtualidades infinitas, sem cair nas arapucas da simplificação, a fim de acordar deste pesadelo que nos prende no horror de um mundo em que a generosidade e a compreensão são impossíveis.

 

A Julian Fucks, evidentemente.