A MORTE DA CRÔNICA
Abri o meu celular hoje e li, meio atrasada, uma
notícia muito triste, datada de 5 de agosto: a morte da crônica, anunciada pelo
escritor Julian Fucks. Essa notícia me entristeceu muito, pois ela se soma à
sensação esquisita que comecei a sentir de que o mundo da gente morre antes da
gente, ou seja, tudo aquilo que somos e pensamos fica de repente anacrônico e
começamos a não mais nos reconhecer como alguém que tem algo pertinente a
acrescentar. Esta crônica nasceu das reflexões a que fui empurrada pela azeda
notícia.
A crônica é um gênero
textual considerado menor, mas ele é fundamental. Nasceu no século XIX e se
desenvolveu no XX de forma admirável, em virtude da simpatia que este tem pelas
coisas do dia a dia; aqui no Brasil, isso se deu de forma tão especial, que já
vi algumas pessoas dizerem que o gênero é brasileiro, o que não é verdade. Mas
bem que poderia ser – no seu lugar de origem (o jornal), os cronistas
brasileiros desenvolveram, como em nenhum outro país, um olhar diferente,
terno, singular e escreveram numa linguagem criativa e poética, fazendo da
crônica um gênero tão amado e lido, que foi responsável pela iniciação de
milhares de leitores.
Quando o jornal morreu, é
lógico que a crônica ficou ameaçada: ela foi internada na UTI dos blogs,
situados dentro do computador. Sobreviveu por um tempo, mas ficou enfraquecida,
pois perdeu a matéria de que é feita. Sabe, aquele ato de pegar o livro e reler
o texto quando nos apetece começou a desaparecer, pois somos raptados pelas
mais incríveis urgências quando nos aproximamos do computador e suas
estratégias capciosas de nos seduzir. E somos condenados a nunca achar aquilo
que procuramos no verdadeiro labirinto que é o universo virtual.
A questão é que a crônica
(como o próprio nome diz) não é aguda, é crônica... Ela fala de coisas
incuráveis com as quais temos de conviver, feito a nossa vida, que não é um
caminho esbaforido para um espetáculo de fogos de artifício, mas uma dor mais
ou menos cortante que precisamos levar adiante. Quase sem recompensa.
A crônica é um gênero tímido, desprovido de ambições;
o cronista é uma pessoa que nunca ganha prêmios, que é produtor de textos de
fala baixa, os quais são considerados menos importantes. Porém sua força é
exatamente esta: ela nos permite falar de acontecimentos repetitivos e mínimos
que pertencem a pessoas como todos nós. Melhor: talvez ela seja uma espécie de
medicina paliativa que ajuda a gente a ir levando a vida enquanto a morte não
chega...
O problema da crônica é que ela é decorrente de um
tipo de vida que não existe mais – uma vida mais simples, sem tantos afazeres e
sem esses imperativos de produtividade que nos armadilharam recentemente; uma
vida que dava espaço para o devaneio e permitia que a gente não fizesse nada.
Nesses intervalos, era possível pensar na vida de forma livre, recompondo-a com
soluções e saídas só nossas. Ou não: apenas podíamos chorar baixinho sem
ninguém saber.
Agora me deparo com choros e lutos espetaculosos e com
a publicação de perdões obrigatórios escritos por terceiros nas redes sociais –
já não somos mais capazes de errar e nos arrepender ou de construir devagar os
nossos perdões numa luta interna e silenciosa, enfrentando nossos abismos, pois
patrocinadores exigem que isso seja feito depressa e escandalosamente no meio
da rua.
Coitada! A crônica não sabe seduzir algoritmos; não sabe sobreviver neste mundo alucinado, cheio de assuntos sérios e urgentes, de opiniões polêmicas e radicais, de relatos histriônicos, de receitas prontas saídas do forno de bolhas que não sabem dialogar, cheias de pessoas que desistiram de se entender e que só sabem falar com quem é igual...
Observem como a crônica não sabe falar (com sua fala mansa) do hoje; só temos lido crônicas e cronistas do passado. O presente só sabe existir na extravagante presença da treta, da polêmica, dos “likes” e da monetarização que, pelo que entendi, de vez em quando assusta pela suspensão arbitrária...
É um susto atrás do outro...
No entanto, diz Julian Fucks, “tudo aquilo que definha
encontra sua estranha maneira de permanecer”...
Então: quero chamar a atenção, nesta crônica meio triste
e escrita na língua típica do gênero, para o fato de que podemos, sim, viver a
vida de uma forma mais simples e preenchê-la com o propósito do entendimento
possível de que somos capazes.
Nunca seremos perfeitos nisso, é verdade. Mas
conseguiremos melhorar se não desistirmos de nossos esforços de escutar e falar
na língua mansa e figurada que a crônica nos ensina, em vez de nos subordinar
às regras dos donos dessas plataformas, que projetam um mundo em que o
entendimento é impossível e vence a ideia de que as armas e as balas têm
permissão de impedir as palavras e o diálogo, que é filho da multipolaridade e
não da bipolaridade. Como sempre, alguém deve estar ganhando muito com a ideia
de que há no mundo inteiro só dois jeitos de pensar.
Embora eu saiba que as palavras também ferem, acredito
que metáforas revelam cuidado com as palavras e respeito por quem ouve. Também
enriquecem a comunicação, multiplicando as possibilidades de interpretação. Portanto,
desejo que as crônicas não morram, apesar de estarem doentes, pois elas são
muito lidas. Sua língua dá leveza à comunicação e permite a gente escutar sem
pressa uma opinião (como esta que estou emitindo), sem que a nossa raiva venha
à flor de nossa pele.
Para isso, precisamos nos esforçar para aprender cada
dia mais a nossa língua e suas virtualidades infinitas, sem cair nas arapucas
da simplificação, a fim de acordar deste pesadelo que nos prende no horror de
um mundo em que a generosidade e a compreensão são impossíveis.
A Julian Fucks, evidentemente.
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