sábado, julho 15, 2006

O avesso do avesso

A rua larga fervilhava. Verduras, frutas, raízes expostas, arrumadas e orvalhadas à espera de fregueses. Uma multidão anônima e barulhenta fazia a propaganda alternativa dos produtos. O descascador de laranjas, em especial, chamou minha atenção: uma engenhoca manuseada com prática tirava a casca como uma longa fita amarela que restava no chão, enrolada. Cestos, sacolas, sacos, barracos, lona, armações... Tudo era uma gambiarra de lixo.
A cor e a vida, no entanto, saravam o lixo, como num calidoscópio.
No fim da rua, o Forte das Cinco Pontas me espreitava, imponente, de cima de seus séculos.
A loja participava. De frente para a rua, à minha esquerda, vidrilhos, lantejoulas, miçangas, laçarotes de goma, plumas, paetês... À minha direita, na vitrine, um vestido de noiva mofado, mas bordado, exibia sua contradição.
Aí o tempo parou. Como quem se aproxima em câmera lenta, as putas chegavam devagar. Sem som, eu guardei no coração a estupefação dos feirantes, as unhas verdes, a saia de napa vermelha, a meia de rede roxa, o espalhafato das blusas e dos colares descombinados, o cabelo amarelo, o rebolado provocante... Eu compactuava com aquela alegria adversativa...
Mas o calidoscópio se quebrou: as putas pararam e fixaram, através da parede intransponível de vidro, o vestido de noiva. Como numa tela invertida, suas faces, refletidas no vidro, traduziam seu desejo impossível.
Nesse dia eu descobri o Brasil: retalho do mundo. O Forte das Cinco Pontas me espreita, irreversível.
Do outro lado do vidro, amputada do sonho, uma multidão teimosa insiste em escrever uma história num alfabeto que desconheço... E terminará, numa última e magnífica contradição, por concretizar meu desejo de justiça.

4 Comments:

At 12:54 AM, Anonymous Anônimo said...

ah eu lembro dessa historia que vc falou ano passado na sua aula
muito bom....

 
At 11:20 PM, Anonymous Anônimo said...

Você é tão sensível, Flávia... :)
Fiquei emocionada hoje na sala.

muitos abraços

 
At 1:25 PM, Anonymous Anônimo said...

Emocionante esse texto, mais ainda com você contando. eu que nunca choro, vi cair uma lagrima durante sua aula.
muito bom o texto

 
At 12:14 PM, Anonymous Anônimo said...

Li todo o texto em silêncio, mas pensando, maravilhada, como seria o mesmo lido por vc Flávia? Lindo! Susi

 

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