PALESTRA PARA O SIMPÓSIO DE IMUNOLOGIA
Caros senhores, boa noite.
Começo confessando que não sei explicar por que estou aqui com a responsabilidade de falar para vocês. A única explicação talvez seja o afeto inquebrantável que se cria, às vezes, entre mim e alguns dos meus alunos. Nesse contexto, o meu querido ex-aluno Mateus Rios deve ser perdoado, por achar que sou capaz de dizer a vocês alguma coisa que se aproveite.
Confesso também que tive muita dificuldade de escolher
um assunto sobre o qual pudesse falar e aí resolvi começar contando histórias
de minha família, no melhor estilo Suassuna.
Meu pai, que se chamava Marcos e era pediatra, tinha
duas histórias lindas: a primeira diz respeito a uma menina que entra na sua
sala com uma roupa nova e papai elogiou:
− Minha filha, que roupa bonita!
E a menina:
− É nova! A calcinha também é nova, é igual à
de mamãe. Mostra, mamãe, para ele ver...
Imaginem o clima...
De outra feita, uma mãe chega com uma bola de gude bem
grande na mão (as crianças chamam essa bola de “cocão”).
− Doutor Marcos, ela disse, eu trouxe essa bola
de gude para o senhor ver. Meu filho engoliu uma bola de gude igualzinha a
essa.
Meu pai pegou a bola na mão e perguntou ao menino:
−
Meu filho, como você engoliu uma bola deste tamanho?
−
Assim! Isso dizendo, o menino pegou a bola da mão de papai e engoliu (no caso,
o segundo cocão).
Resultado:
vários dias de pesquisa radiológica para acompanhar o trajeto das duas bolas no
organismo do menino.
A
terceira história é de tio Saulo, que era urologista: um paciente, muito
falante e inquieto, ficou cheio de gases depois de uma cirurgia, e tio Saulo
fez uma prescrição para amenizar seu quadro de dor. No dia seguinte, quando
perguntou ao paciente como ele estava, tio Saulo ouviu:
−
Doutor, que remédio abençoado!! Soltei três bufas de um metro e meio e fiquei
bonzinho!!
É
claro que vocês devem saber dezenas dessas histórias e se divertir com elas,
não é?
Pois
bem: terminei por escolher falar sobre as histórias que estão presentes
neste contato comovente que acontece entre o médico e seu paciente, na hora em
que é crucial um diálogo de verdade entre eles, na hora em que é necessária a
expressão, ao mesmo tempo, franca, clara e sintética de uma queixa, na hora em
que é preciso não só um esforço de escuta e interpretação do dito, mas também
do não dito.
Neste
tempo em que nada disso costuma acontecer, quando estamos, nas redes sociais,
mais nos desentendendo do que dialogando, posso suspeitar de como tem sido
difícil o exercício da profissão de vocês.
Uma
vez alguém me disse que os seres humanos são feitos de células, e eu discordei,
retrucando:
−
Os seres humanos são feitos de histórias!
É
assim que penso: nossa vida se fia de histórias – as que vivemos, as que
contamos, as que nos contam, que se entrelaçam com as nossas e viram nossas,
porque nos ajudam a contar as nossas, as que inventamos... Tudo isso junto nos
precipita num processo de produção de pensamentos, saídas, soluções, fugas,
reflexões, que transformam essa habilidade num ato final de triunfo da espécie.
É
incontestável que estamos passando por uma crise muito forte nessa área, que nos
dirige, na minha opinião, para uma rua sem saída: estamos tão “despedaçados”,
tão partidos, que nossa expressão não está criando laços, mas nós cegos. As
redes sociais e suas possibilidades viraram uma rinha de galos de briga na qual
só queremos brigar (se diz, no contexto, “tretar”). E não vemos que existe quem
lucra com isso: quanto mais cancelamos e tretamos, mais os milionários
proprietários dessas plataformas ganham dinheiro e poder.
Entretanto
é o compartilhamento de histórias que nos salva a toda hora: peço sempre neste
ponto que se pense sobre o que teria sido de nós se não tivéssemos nossas
histórias contadas em livros, peças teatrais e filmes durante o período da
pandemia de que, aos poucos, estamos, felizmente, nos distanciando.
Fico
imaginando aqui comigo como as histórias de seus pacientes precisam ser
ouvidas, partilhadas... Com certeza, elas ajudam tanto as pessoas a se curarem,
quanto auxiliam vocês a aprenderem mais para curarem mais; a discutirem entre
si aprendizados, soluções, saídas; a, depois de errarem, conseguirem não
repetir o erro; a contarem essas histórias sem citar os nomes envolvidos nas
conversas com parentes, amigos, a fim de repensarem decisões, comportamentos e
protocolos para elaborarem a própria prática médica ou a própria vida; e até
mesmo acho que vocês se apropriam delas para ajudar outras pessoas a
articularem suas compreensões...
Enfim,
nesses tempos que passamos em labirintos, aí é que precisamos observar de novo
essas narrativas, reexaminá-las para que possamos criar outros caminhos por
onde ir...
Com
essas narrativas, trocamos o real impossível pelo possível sonhado, inventado,
procurado, encontrado, satisfeito... Por isso nossas histórias são uma
ferramenta para entendermos os enigmas do mundo, da vida, do desejo; os
mecanismos do medo e do afeto; as engrenagens da identificação e da
diferenciação...
De
fato, esse acervo é fruto de uma ação que alterou o mundo que nos cerca de
forma contundente, o que permite acrescentar que nossas histórias afetam (e
muito) a forma como sentimos e agimos historicamente. Essa coleção de experiências
é como um rio que carrega nossos valores, frações de nossa identidade,
sentidos... E nos humaniza.
Estas
palavras são, portanto, uma espécie de prece: usando a razão e a sensibilidade,
talvez possamos ir ajustando as trilhas da imaginação, para que possamos fazer
um futuro “que fale a nossa língua”, como diz o escritor moçambicano Mia Couto.
Recentemente,
ouvi o ministro Sílvio Almeida dizer algo que me ajudou muito a organizar as
palavras para me fazer entender: “é preciso tirar o gozo do problema e
colocá-lo na solução”. Simplesmente adorei isso: nossas palavras não devem
servir apenas para nos esvaziar, mas também para sonharmos soluções.
A
partilha dessas narrativas (ao contrário do que estamos fazendo nas redes
sociais) deve ser feita assim, como disse o pedagogo Rubem Alves: devemos, nas
nossas relações, não jogar voleibol, ou tênis ou tênis de mesa (esportes em que
arremessamos ao outro uma bola o mais difícil possível), mas jogar tênis de
praia (esporte em que, ao contrário dos outros, a cooperação é o objetivo).
Que
esta prece nos ajude a lembrar o que somos: seres ferozmente sociais, os quais,
apesar de gostarem de brigar, são interdependentes e narrativos, o que nos
obriga a aperfeiçoar a escuta, o perdão e a generosidade.
E
que esta partilha de histórias e experiências aqui em curso contribua para
sermos atores do esforço que se deve efetivar sempre para um mundo e um país
mais corrigido.
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