quarta-feira, março 20, 2024

PALESTRA PARA O SIMPÓSIO DE IMUNOLOGIA

              Caros senhores, boa noite. 

            Começo confessando que não sei explicar por que estou aqui com a responsabilidade de falar para vocês. A única explicação talvez seja o afeto inquebrantável que se cria, às vezes, entre mim e alguns dos meus alunos. Nesse contexto, o meu querido ex-aluno Mateus Rios deve ser perdoado, por achar que sou capaz de dizer a vocês alguma coisa que se aproveite.

  Confesso também que tive muita dificuldade de escolher um assunto sobre o qual pudesse falar e aí resolvi começar contando histórias de minha família, no melhor estilo Suassuna.

Meu pai, que se chamava Marcos e era pediatra, tinha duas histórias lindas: a primeira diz respeito a uma menina que entra na sua sala com uma roupa nova e papai elogiou:

Minha filha, que roupa bonita!

E a menina:

É nova! A calcinha também é nova, é igual à de mamãe. Mostra, mamãe, para ele ver...

Imaginem o clima...

De outra feita, uma mãe chega com uma bola de gude bem grande na mão (as crianças chamam essa bola de “cocão”).

Doutor Marcos, ela disse, eu trouxe essa bola de gude para o senhor ver. Meu filho engoliu uma bola de gude igualzinha a essa.

Meu pai pegou a bola na mão e perguntou ao menino:

− Meu filho, como você engoliu uma bola deste tamanho?

− Assim! Isso dizendo, o menino pegou a bola da mão de papai e engoliu (no caso, o segundo cocão).

Resultado: vários dias de pesquisa radiológica para acompanhar o trajeto das duas bolas no organismo do menino.

A terceira história é de tio Saulo, que era urologista: um paciente, muito falante e inquieto, ficou cheio de gases depois de uma cirurgia, e tio Saulo fez uma prescrição para amenizar seu quadro de dor. No dia seguinte, quando perguntou ao paciente como ele estava, tio Saulo ouviu:

− Doutor, que remédio abençoado!! Soltei três bufas de um metro e meio e fiquei bonzinho!!

É claro que vocês devem saber dezenas dessas histórias e se divertir com elas, não é?

Pois bem: terminei por escolher falar sobre as histórias que estão presentes neste contato comovente que acontece entre o médico e seu paciente, na hora em que é crucial um diálogo de verdade entre eles, na hora em que é necessária a expressão, ao mesmo tempo, franca, clara e sintética de uma queixa, na hora em que é preciso não só um esforço de escuta e interpretação do dito, mas também do não dito.

Neste tempo em que nada disso costuma acontecer, quando estamos, nas redes sociais, mais nos desentendendo do que dialogando, posso suspeitar de como tem sido difícil o exercício da profissão de vocês.

Uma vez alguém me disse que os seres humanos são feitos de células, e eu discordei, retrucando:

− Os seres humanos são feitos de histórias!

É assim que penso: nossa vida se fia de histórias – as que vivemos, as que contamos, as que nos contam, que se entrelaçam com as nossas e viram nossas, porque nos ajudam a contar as nossas, as que inventamos... Tudo isso junto nos precipita num processo de produção de pensamentos, saídas, soluções, fugas, reflexões, que transformam essa habilidade num ato final de triunfo da espécie.

É incontestável que estamos passando por uma crise muito forte nessa área, que nos dirige, na minha opinião, para uma rua sem saída: estamos tão “despedaçados”, tão partidos, que nossa expressão não está criando laços, mas nós cegos. As redes sociais e suas possibilidades viraram uma rinha de galos de briga na qual só queremos brigar (se diz, no contexto, “tretar”). E não vemos que existe quem lucra com isso: quanto mais cancelamos e tretamos, mais os milionários proprietários dessas plataformas ganham dinheiro e poder.

Entretanto é o compartilhamento de histórias que nos salva a toda hora: peço sempre neste ponto que se pense sobre o que teria sido de nós se não tivéssemos nossas histórias contadas em livros, peças teatrais e filmes durante o período da pandemia de que, aos poucos, estamos, felizmente, nos distanciando.

Fico imaginando aqui comigo como as histórias de seus pacientes precisam ser ouvidas, partilhadas... Com certeza, elas ajudam tanto as pessoas a se curarem, quanto auxiliam vocês a aprenderem mais para curarem mais; a discutirem entre si aprendizados, soluções, saídas; a, depois de errarem, conseguirem não repetir o erro; a contarem essas histórias sem citar os nomes envolvidos nas conversas com parentes, amigos, a fim de repensarem decisões, comportamentos e protocolos para elaborarem a própria prática médica ou a própria vida; e até mesmo acho que vocês se apropriam delas para ajudar outras pessoas a articularem suas compreensões...

Enfim, nesses tempos que passamos em labirintos, aí é que precisamos observar de novo essas narrativas, reexaminá-las para que possamos criar outros caminhos por onde ir...

Com essas narrativas, trocamos o real impossível pelo possível sonhado, inventado, procurado, encontrado, satisfeito... Por isso nossas histórias são uma ferramenta para entendermos os enigmas do mundo, da vida, do desejo; os mecanismos do medo e do afeto; as engrenagens da identificação e da diferenciação...

De fato, esse acervo é fruto de uma ação que alterou o mundo que nos cerca de forma contundente, o que permite acrescentar que nossas histórias afetam (e muito) a forma como sentimos e agimos historicamente. Essa coleção de experiências é como um rio que carrega nossos valores, frações de nossa identidade, sentidos... E nos humaniza.

Estas palavras são, portanto, uma espécie de prece: usando a razão e a sensibilidade, talvez possamos ir ajustando as trilhas da imaginação, para que possamos fazer um futuro “que fale a nossa língua”, como diz o escritor moçambicano Mia Couto.

Recentemente, ouvi o ministro Sílvio Almeida dizer algo que me ajudou muito a organizar as palavras para me fazer entender: “é preciso tirar o gozo do problema e colocá-lo na solução”. Simplesmente adorei isso: nossas palavras não devem servir apenas para nos esvaziar, mas também para sonharmos soluções.

A partilha dessas narrativas (ao contrário do que estamos fazendo nas redes sociais) deve ser feita assim, como disse o pedagogo Rubem Alves: devemos, nas nossas relações, não jogar voleibol, ou tênis ou tênis de mesa (esportes em que arremessamos ao outro uma bola o mais difícil possível), mas jogar tênis de praia (esporte em que, ao contrário dos outros, a cooperação é o objetivo).

Que esta prece nos ajude a lembrar o que somos: seres ferozmente sociais, os quais, apesar de gostarem de brigar, são interdependentes e narrativos, o que nos obriga a aperfeiçoar a escuta, o perdão e a generosidade.

E que esta partilha de histórias e experiências aqui em curso contribua para sermos atores do esforço que se deve efetivar sempre para um mundo e um país mais corrigido.