"A bagaceira", de José Américo de Almeida
"A chamada geração regionalista dos anos 30 representa a culminação desse processo de descobrimento da realidade brasileira." (A. Medina et alli.)
"Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã." (José Américo de Almeida)
“A bagaceira” é o portal do Regionalismo de 30, o primeiro livro dessa tendência recorrente que, desde a sua formação, a literatura brasileira insiste em visitar e revisitar – o Regionalismo.
A crítica, na pessoa de Otto Maria Carpeaux e M. Cavalcanti Proença, e seus pares, na de João Guimarães Rosa, entre outros, são unânimes em apontar “A bagaceira” como o livro que abriu os caminhos do romance moderno brasileiro.
É evidente que o preço do pioneirismo é alto e que os seguidores terão o privilégio de ajustar, recriar e aperfeiçoar, alcançando maior êxito. Mas, ainda assim, “A bagaceira” merece uma referência cuidadosa.
Primeiramente, é preciso registrar a forma, que justapõe, entre os capítulos, pequenas cenas “quebradas”, à maneira do cinema. Isso desconstrói a linearidade narrativa, típica da tradição, e coloca, realmente, o livro na galeria modernista.
Além dessa modernidade na composição, há o traço linguístico ou estilístico propriamente dito: o autor tem duas línguas – a do narrador (culta e mesmo erudita, às vezes) e a dos personagens, a qual obedece a imposições temáticas (quando o uso da linguagem regional é não só presente mas também intencional) e sociais (quando sua variação marca posições diferentes na escala social). É marca modernista, é bom repetir, o acolhimento da pluralidade linguística, quebrando a erudição monolítica, típica da tradição literária.
Por seu turno, o conteúdo é também modernista, no sentido de que a obra faz parte do esforço do período de revisitar o Brasil como tema central, agora não mais edênico (como no Romantismo), mas problemático (como vinha sendo estudado e mostrado desde o Pré-modernismo). Essa perspectiva denunciante, não tão presente no Primeiro Tempo Modernista, acentua-se na prosa dos anos 30 e mesmo a caracteriza, por necessidades próprias do período, ou seja, o fato de a Primeira República ter ficado focada na região Sudeste criou uma ignorância do Nordeste, suprimida por esse traço regionalista marcadamente nordestino.
O enredo se desenrola num engenho de açúcar da zona da mata (brejo, como é dito no livro) onde se contrastam duas realidades políticas e culturais.
A do sertão é trabalhada por meio de retirantes que, fugindo da seca de 1898, chegam ao engenho Marzagão. Sua situação é tal que a fuga não os liberta; apenas os coloca numa engrenagem trágica recorrente – “o que tem de acontecer tem muita força”. Esse núcleo é represntado por Valentim Pedreira, proprietário sertanejo, e seus filhos Soledade (biológica) e Pirunga (adotivo), que, entre a multidão fétida que se retirava, recebem, sem sabermos por que, permissão do dono do engenho para “poisar” (“Arranche aquela gente”, ele disse, apontando, entre tantos, somente os três).
A realidade do brejo é representada por Dagoberto Marçau, proprietário do engenho; seu filho Lúcio; Manuel Broca, o capataz; e as sequelas da escravidão – não mais o escravo, mas uma “escória de mestiçagem”, como diz o autor, a qual restou da Abolição incompleta que escrevemos.
O enredo se dá num choque entre esses dois “brasis”: o sertanejo é lacônico, vencido pela seca (não humilde), solidário, ligado à terra, livre; o brejeiro é falador, humilhado pela escravidão, egoísta, subjugado pelo feitor – elo importante da corrente interminável que prende tudo dentro dessa lógica primitiva de propriedade e de autoridade.
E é exatamente essa lógica bruta que triunfa e sufoca a do sertão: Dagoberto violenta Soledade, materializando o código breve que tudo permeia: “o que está na terra é da terra e reverte ao dono da terra”. E isso derruba todos, de várias maneiras – Soledade, Valentim, Pirunga e mesmo Dagoberto e Manuel Broca, o feitor.
Esse enredo de várias degradações só é atenuado, timidamente, na descrição final do engenho Marzagão: Lúcio, projeção de José Américo, depois da morte do pai, adotara métodos mais modernos no gerenciamento do engenho, o que parece ter melhorado a vida daqueles brejeiros.
Mas, diz o narrador no último quadro, a felicidade gerada suprimira a alegria, e a seca de 1915 reproduzia os mesmos quadros... Ou seja: a estrutura política e, consequentemente, agrária do brejo, ou a terra de Canaã, como é dito no livro, continua a transformar gente em bagaço e os poderes públicos continuam indiferentes à seca.
Que pena...
2 Comments:
Passando por aqui só pra te dar um abraço apertado, daqueles que me fazem sentir uma paz tão desejada...
Beijo!
Babi
lindo texto =)
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