Desastres (inclusive ecológicos), mobilidade e maracatu
Há alguns anos,
trabalhava comigo uma professora très
chique. Um dia, seu carro estava
na revisão, e um amigo comum ofereceu-lhe uma carona até em casa. Ela, educadamente,
recusou e, depois que nosso amigo afastou-se, ela me disse:
− Não gosto de chegar a minha casa assim, com
homens desconhecidos, pois não sei o que o porteiro do prédio poderá pensar.
Eu, francamente, nunca
tinha pensado nisso, nem imaginado que houvesse, no mundo, pessoas que
pensassem nisso. Mas há. E a minha amiga é uma delas.
Fiquei, a partir daí,
imaginando o que os vários porteiros do meu prédio costumam pensar sobre mim
e sempre me divirto com o que penso.
É que, por vários motivos,
sou única em muitos posicionamentos e práticas sociais, inclusive de
mobilidade, o que deve suscitar surpresas. No mínimo. Por exemplo, sou a única
pessoa que eu mesma conheço de minha classe e de minha idade que anda de ônibus
e a pé. Isso me traz, para ser franca, muitos problemas: como as calçadas
recifenses são intransitáveis, vivo caindo ou torcendo tornozelos; como sou a
única moradora que chega a pé ao prédio, sei de coisas que nenhuma outra sabe –
nos portões, por exemplo, uma pessoa com sombrinha não cabe, o que obriga o
usuário da entrada a incliná-la e, portanto, a se molhar e a se atrapalhar
todo, já que não se carrega só a sombrinha; com frequência há bolsas, sacolas
com compras ou pastas de trabalhos, além da sombrinha e do fato de que temos
que abrir o portão e fechá-lo; por último, já fui assaltada algumas vezes,
episódio que só é mencionável num texto como este, se não tiver tido nenhuma
consequência maior. Evidentemente, tenho muita compaixão pelas empregadas
domésticas, pois sei, perfeitamente, tudo o que elas sofrem para chegar ao
trabalho, e elas consideram com muita empatia essa expiação comum de
infortúnios, pois não só sempre sou considerada, na sua linguagem, popular, mas também ganho sorrisos e
cumprimentos sinceros e efusivos.
Como sou uma estudiosa da língua, imagino que a palavra popular, nesse contexto, é sinônima de simpática, ou diferente,
ou mesmo meio doida, talvez. Mas eu
fico muito honrada quando se referem assim a mim, o que acontece com muita
frequência.
Por outro lado, apesar
de todas essas dificuldades, acho que ganho uma certeza boa por dentro de que
faço a coisa certa – numa cidade engarrafada como o Recife, a gente tem que
fazer certos sacrifícios e andar menos de carro, o atual grande vilão das
metrópoles. Mas os habitantes do Recife estão a anos luz dessa compreensão
básica para uma cidade grande minimamente habitável. Aqui há atrasos de vários
tipos – horários (pois chega-se atrasado) e ideológico-automobilísticos (pois
há uma supervalorização cultural de automóveis grandes e até enormes, de que
não se abre mão de jeito nenhum, já que se é socialmente considerado a partir
do carro que se possui). E, como não se quer, em nenhuma hipótese, ser
confundido com os mais pobres, monta-se nos carros até para ir à farmácia da
esquina. Essa lógica antiga, vinda da distância entre a casa-grande e a
senzala, persiste aqui na cidade, apesar de todos os exemplos racionais, vindos
de outras, como Paris, Amsterdã, Tóquio ou Londres – que já resolveram seus
impasses urbanos por meio de um eficiente transporte coletivo –, apesar da
Revolução Francesa e de suas simpáticas teses e apesar dessas idéias meio
esquisitas de preservação ambiental.
O leitor deve já estar
achando que esquisitas são as minhas palavras: é que o ideário preservacionista
é de uma unanimidade surpreendente. Mas eu sou como Nelson Rodrigues, que
considera toda unanimidade uma burrice. Quando todo mundo tem a mesma ideia, eu
tendo a achar que há alguma coisa errada com ela e começo a procurar cabelo em
ovo, ou seja: cavo para procurar o erro na tal da concordância total que,
num mundo com tanta gente, é bem desconfiável. Na minha cabeça, num planeta
habitado por sete bilhões de pessoas, deveria haver sete bilhões de jeitos de
pensar e não apenas um, como acontece quando se considera a questão ambiental.
Nessa lógica, todos são a favor do meio ambiente e, principalmente, dos bichos
que, sorrateiramente, começaram a tomar o lugar das pessoas, tendo acesso a
tratamentos de saúde a que os mais desafortunados no país não têm ou até a
tratamentos estéticos e psicológicos, o que eleva o absurdo a uma potência
inaceitável. Desse modo, o tema tem assumido ares “veterinários” e não
políticos, como deve ser o que tem o nosso toque, o do ser humano.
Quando, nas minhas
andanças desastradas pelas calçadas do Recife, testemunho esgotos vazando, fico
pensando que nossos problemas ecológicos são decorrentes mais da falta de
acesso a direitos básicos, como rede sanitária, do que de buracos na camada de
ozônio, aquecimento global ou outras conversas desencontradas que aparecem na
mídia muito sensacionalista e alarmista, na minha opinião. O que estou dizendo
é que há, sim, uma ligação entre mobilidade urbana e posturas ecológicas; mas
não posturas infantilizadas e reducionistas, como as da maioria: urge rever
nossos comportamentos de consumo e de locomoção para que se possa criar cidades mais amenas e mais
inclusivas. Se há ainda pessoas sem acesso ao consumo e se é desejável que
todos tenham os mesmos bens, é claro que teremos de desperdiçar menos e andar a pé ou de ônibus ou de bicicleta. Todos. Igualmente. Ou seja: “a”
questão é de gente, não de bicho; é preciso, portanto, comprar menos, recusar, repensar, reciclar, recuperar, reutilizar... e outros erres ainda. E,
principalmente, é urgente quebrar, definitivamente, essa mentalidade colonial
que criou uma sociedade fraturada e violenta, de que ninguém se orgulha e que
todos gostariam que fosse diferente...
Pois bem: com todo esse
aperreio na cabeça, fui, coerentemente, a pé à padaria perto da minha casa
comprar sorvete para meu filho eterno e sua namorada. O dia estava radiante, e
o sol inclemente, tanto que tive de passar protetor solar. Quando cheguei a meu
destino, desabou uma chuva grossa. Paguei a mercadoria e fiquei esperando que o
aguaceiro passasse, mas ele continuava forte, como só aqui em Recife ele sabe
ser. Depois que esperei muito tempo, a moça do caixa me abordou:
− Dona Flávia, não sei se a senhora topa... É
que temos aqui essa sombrinha... Se a senhora quiser, a senhora vai com ela e
deixa lá na portaria, que o rapaz da entrega vai buscar depois da chuva...
A sombrinha, na
verdade, era um guarda-chuva enorme, desses que têm propaganda de sorvete e
carrega uma espécie de babado entre uma haste e outra. Eu considerei tudo: a
chuva, a pressa, a aparência... E resolvi encarar. Agradeci e saí, lépida,
fagueira e... seca... rua afora.
Quando cheguei ao
prédio, tive, é claro, de fazer a tal inevitável e competente ginástica logo no
primeiro portão, no do porteiro, que me olhou com a cara mais surpresa com que já me
encarou:
− Dona Flávia, o que é isso?
Eu
nada respondi e entrei pelo portão mais parecendo um pistilo, pois fechara a
sombrinha comigo mesma dentro para poder passar. Reabri-a. Alguns metros depois,
havia a travessia do segundo portão; eu pensei em passar pelo dos carros, mas
havia uma poça de água e fui forçada a usar o estreito. O sorvete, a carteira,
a enorme sombrinha, já de novo aberta, o portão que o amortecedor teimava em fechar, a chuva
formavam uma equação impossível, tudo ao mesmo tempo... O contorcionismo
malabarista falhou, surgiu um carro, dirigido por uma de minhas irmãs... que me
flagrou, já entalada, e, a essa altura, toda molhada, apesar da imensa sombrinha.
− Mulher de Deus! Que danado é isso? – exclamou,
morrendo rir.
Concordamos todas que
sou uma maluca sem conserto. Mas uma coisa eu sou também: coerente − sou ecológica, como se dever ser, ando a pé e
pego ônibus. Pago um mico, de vez em quando; em compensação tenho sempre
assunto para crônicas sobre desastres variados.
Quando entrei em casa,
minha empregada botou a cereja no bolo:
− Daqui de cima, da janela da cozinha, a senhora
parecia mais uma rainha de maracatu.
Moral da história: quando o assunto é "ecologia", o local e o global são indissociáveis.
8 Comments:
Teozinho já deve ter orgulho dessa multifacetada avó que tem: literária, meio doida, ecologicamente correta, popular e imortal!
Era bom Gilton dar uma lida nesse texto...
Faz-me rir... Gilton? Que nojo.
Gilton, o Félix (*icha má) da química pernambucana!
KKKKKKKKKKKKkkkkkkkkkkkkkkkkkk
Adogo.
Olá querida , queria poder entrar em contato com a senhora , será que dar ?
tchauuu ...
espero respostas ?
Inclusive eu tive uma idéia ... assim... um bloco...no próximo carnaval...
Boa ideia, Luis!!! Flávia.
Eu me considero um iconoclasta e muitos me acham rebelde. Por fugir das unanimidades é que evito filmes oscarizados. Se o calor fosse menor eu até usaria onibus e calcadas. Mas minha cegonha não tinha GPS e me depositou em Hellcife. Mas não perco o sonho de ser vizinho de uma foca, um dia. Siga firme assim. Nós precisamos de você assim.
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