Passeio pela Literatura - 1
Em 1857, publica-se o livro “Madame
Bovary”, que abre tão precocemente o Realismo na França, que seu autor, Gustave
Flaubert, foi acusado de imoral, subiu ao banco dos réus, sendo, depois de
famoso julgamento, absolvido pela Sexta Corte Correcional
do Tribunal do Sena, em Paris.
O livro inaugura o Realismo contando a história da traição matrimonial
da personagem burguesa Ema Bovary, cuja futilidade arrasta-a a tão abjetas situações que ela termina por se
suicidar, num enredo de degradação bem distante dos de superação do Romantismo.
Em
Portugal, a chegada do Realismo também foi custosa, e uma série de palestras e
debates, chamada Questão Coimbrã, marcou o país.
Entre
nós, a chegada do Realismo foi menos escandalosa, pois Machado fez uma ponte
entre o Romantismo tardio de Alencar (em “Senhora” e “Lucíola”, o autor já
esboça denunciar problemas sociais, como o casamento por interesse e a
prostituição devida a questões sociais, respectivamente) e o seu próprio (a
personagem Helena do romance homônimo, por exemplo, planeja ganhos possíveis
advindos das convenções sociais) e, devagar, foi fazendo a transposição, até
que, em 1881, publicou as “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Assim, nosso
Realismo começou muito tarde, e o terço final da obra de Machado foi
contaminado pelo Simbolismo e pelo Impressionismo, tendências do final do
século XIX: as três últimas obras de Machado, “Dom Casmurro”, “Esaú e Jacó” e
“Memorial de Aires” (as duas últimas tão
pouco citadas e compreendidas) são difíceis de caracterizar, o que termina por
torná-las mais difíceis de compreender.
Entre outras, as personagens realistas Anna Karenina, de Tolstoy, Ema
Bovary, de Flaubert, Luísa, de Eça de Queiroz, e Virgília, de Machado de Assis
− não há dúvida – traíram seus maridos, e esse comportamento desconstrói tanto
as mulheres quanto o casamento idealizado, típicos do Romantismo, tarefa a que
se prestou o Realismo. Não é o caso de Capitu: a quebra da nitidez do Impressionismo
confunde nossa avaliação, e “Dom Casmurro” é um livro que muito mal se encaixa
no formato realista. Afora o fato de que nele Machado não só focaliza a classe
dominante, mas ainda a desmascara, o livro “Dom Casmurro” em tudo foge da
descrição equilibrada do fato e da contemporaneidade da narração, que são os
traços mais fortes do Realismo.
Seu narrador, Bento, tenta, de forma sub-reptícia, convencer o leitor da
traição de sua esposa Capitu com seu melhor amigo Escobar. Mas a história não
convence de todo – nas entrelinhas, pode-se ler todo o machismo, todo o
autoritarismo, toda a violência que ele tenta disfarçar, com seu estilo erudito
de bom moço das elites brasileiras do fim do século XIX. Não só (mas
principalmente) mulheres sentem-se incomodadas com a falta de espaço para a
autodefesa de Capitu: ela está lá na história, porém o narrador não lhe abre
espaço, não lhe dá a palavra... A violência inaceitável desse gesto percorre
todo o enredo, e a dúvida se inicia a partir de uma constatação que não se pode
calar: por que ele quer nos convencer de que foi traído? Não seria mais
previsível, num país patriarcal como o Brasil, o narrador querer nos convencer
sobre a versão contrária, ou seja: a de que não foi traído? O esforço na
direção contrária da esperada, portanto, esconde e revela variados segredos, e
mesmo desejos, que não são claramente expostos, mas ficam latentes na falta de
nitidez e de contorno, típica do Impressionismo, não do Realismo. Além disso, o
narrador esperou tempo demais para escrever seu relato: se a traição ocorreu
por volta dos trinta anos, por que ele só foi contá-la aos sessenta e tantos?
Ele não colecionou mágoas demais nesse intervalo? As lembranças não foram se
esvaindo e, portanto, sendo substituídas por novas versões já distantes da
realidade?
A força desse não-dito faz do “Dom Casmurro” umas das mais profundas e
intrigantes obras de nossa literatura, além de que ilustra para nós, humanos,
nossa complexidade e a de nossa linguagem, que nos diferenciam e ferem todo
dia.
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home