sábado, agosto 20, 2016

Passeio pela Literatura - 1



            Em 1857, publica-se o livro “Madame Bovary”, que abre tão precocemente o Realismo na França, que seu autor, Gustave Flaubert, foi acusado de imoral, subiu ao banco dos réus, sendo, depois de famoso julgamento, absolvido pela Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena, em Paris.
O livro inaugura o Realismo contando a história da traição matrimonial da personagem burguesa Ema Bovary, cuja futilidade arrasta-a a tão abjetas situações que ela termina por se suicidar, num enredo de degradação bem distante dos de superação do Romantismo.
                          Em Portugal, a chegada do Realismo também foi custosa, e uma série de palestras e debates, chamada Questão Coimbrã, marcou o país.
                          Entre nós, a chegada do Realismo foi menos escandalosa, pois Machado fez uma ponte entre o Romantismo tardio de Alencar (em “Senhora” e “Lucíola”, o autor já esboça denunciar problemas sociais, como o casamento por interesse e a prostituição devida a questões sociais, respectivamente) e o seu próprio (a personagem Helena do romance homônimo, por exemplo, planeja ganhos possíveis advindos das convenções sociais) e, devagar, foi fazendo a transposição, até que, em 1881, publicou as “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Assim, nosso Realismo começou muito tarde, e o terço final da obra de Machado foi contaminado pelo Simbolismo e pelo Impressionismo, tendências do final do século XIX: as três últimas obras de Machado, “Dom Casmurro”, “Esaú e Jacó” e “Memorial de Aires” (as duas últimas  tão pouco citadas e compreendidas) são difíceis de caracterizar, o que termina por torná-las mais difíceis de compreender.
Entre outras, as personagens realistas Anna Karenina, de Tolstoy, Ema Bovary, de Flaubert, Luísa, de Eça de Queiroz, e Virgília, de Machado de Assis − não há dúvida – traíram seus maridos, e esse comportamento desconstrói tanto as mulheres quanto o casamento idealizado, típicos do Romantismo, tarefa a que se prestou o Realismo. Não é o caso de Capitu: a quebra da nitidez do Impressionismo confunde nossa avaliação, e “Dom Casmurro” é um livro que muito mal se encaixa no formato realista. Afora o fato de que nele Machado não só focaliza a classe dominante, mas ainda a desmascara, o livro “Dom Casmurro” em tudo foge da descrição equilibrada do fato e da contemporaneidade da narração, que são os traços mais fortes do Realismo.
Seu narrador, Bento, tenta, de forma sub-reptícia, convencer o leitor da traição de sua esposa Capitu com seu melhor amigo Escobar. Mas a história não convence de todo – nas entrelinhas, pode-se ler todo o machismo, todo o autoritarismo, toda a violência que ele tenta disfarçar, com seu estilo erudito de bom moço das elites brasileiras do fim do século XIX. Não só (mas principalmente) mulheres sentem-se incomodadas com a falta de espaço para a autodefesa de Capitu: ela está lá na história, porém o narrador não lhe abre espaço, não lhe dá a palavra... A violência inaceitável desse gesto percorre todo o enredo, e a dúvida se inicia a partir de uma constatação que não se pode calar: por que ele quer nos convencer de que foi traído? Não seria mais previsível, num país patriarcal como o Brasil, o narrador querer nos convencer sobre a versão contrária, ou seja: a de que não foi traído? O esforço na direção contrária da esperada, portanto, esconde e revela variados segredos, e mesmo desejos, que não são claramente expostos, mas ficam latentes na falta de nitidez e de contorno, típica do Impressionismo, não do Realismo. Além disso, o narrador esperou tempo demais para escrever seu relato: se a traição ocorreu por volta dos trinta anos, por que ele só foi contá-la aos sessenta e tantos? Ele não colecionou mágoas demais nesse intervalo? As lembranças não foram se esvaindo e, portanto, sendo substituídas por novas versões já distantes da realidade?
A força desse não-dito faz do “Dom Casmurro” umas das mais profundas e intrigantes obras de nossa literatura, além de que ilustra para nós, humanos, nossa complexidade e a de nossa linguagem, que nos diferenciam e ferem todo dia.