sábado, abril 20, 2024

PALESTRA DO RIOMAR

PRIMEIRA PARTE: QUEM FOI MACHADO DE ASSIS?

         Machado de Assis não é só o maior escritor do Realismo brasileiro, estilo de época que ele inaugurou; é o nosso maior escritor do século XIX ou talvez de toda a nossa literatura, na opinião de muitas pessoas.         

         Apesar de sua famosa ironia, estudá-lo é, principalmente, aprender sobre a natureza humana e ganhar certa dose de generosidade para com ela, o que é de muita utilidade nestes tempos de tantas “inquisições” nas redes sociais.

         Na verdade, Machado é o mais intrigante autor de nossa literatura: sua trajetória biográfica, suas ideias e, consequentemente, suas obras são surpreendentemente singulares, e observá-las é um aprendizado precioso.

         Sua vida pode ser considerada um milagre. Nasceu pobre, filho de uma lavadeira e um pintor de paredes, e não se tem notícia de estudos regulares. Apesar disso, foi devagar escrevendo sua história difícil, aprendendo a ler aqui, aproveitando oportunidades minúsculas, lendo um livro acolá, quando foi caixeiro de livraria ou tipógrafo... Estudou latim e francês de favor... Enfim: recebeu ajuda...

         O que quero dizer é que Machado soube aproveitar as chances que apareceram; penso que é muito cômodo à classe dominante brasileira achar que sair sozinho da situação de pobreza é não só possível como fácil, basta querer.

         Infelizmente, essa ideia inaceitável está, fortemente, presente nas discussões atuais sobre meritocracia, na minha opinião. E não se aplicam à cabeça superdotada de Machado de Assis: para a maioria, a falta de educação de qualidade e de políticas públicas de acesso à cultura são cancelas intransponíveis.

         Apesar de não ter tido acesso a quase nada, Machado conseguiu galgar a “escada social” brasileira, que era, na época como hoje, inóspita.

        Mas não nos enganemos: a sua história não pode servir de exemplo para argumentos espúrios de “se ele conseguiu, todos que se esforçarem conseguem”, pois há, no Brasil, uma forte (apesar de meio invisível) lógica de exclusão que, arbitrariamente, impossibilita a maioria de construir inserção. E pior: usa as exceções para se validar.

       Pensar em saídas para isso é nossa mais urgente responsabilidade, não nos esqueçamos!

         Machado não teve que vencer apenas a origem: foi neto de escravos alforriados, o que quer dizer que era pardo, mas também era gago e sofria de epilepsia, doença que o afetou no meio da vida e que dividiu sua obra em duas partes – uma romântica, antes da doença; outra realista, depois dela.

         Numa sociedade como a nossa, marcada tão fortemente pela estratificação que já ouvi muitos referirem um “apartheid” (tomando emprestada a forte palavra da África do Sul), Machado foi capaz de suplantar o “destino” social que sua época tinha escrito para ele.

         Em suma: nada impediu Machado de ir ascendendo socialmente e de maneira admirável, sem quebrar valores éticos − nem a história que esta sociedade tinha reservado para ele, nem sua cor tanto tempo escamoteada, nem sua favela de origem, nem sua doença.

         Mas isso não aconteceu de repente, por sorte: sua consagração foi um mérito que foi sendo esculpido pelo amadurecimento, pelo trabalho, pela reflexão – a história de Machado é um exemplo de tenacidade e sua fama foi antes consequência de um fazer que lance espetacular de cartas ou dados; só seu terceiro livro de contos e seu quinto romance começam a destacá-lo no panorama da nossa literatura.

         Foi hábil observador de si próprio. Olhando-se como o fez, desconfiou da ciência de sua época e, ao contrário dos escritores europeus, relativizou as certezas do século XIX.

         Debruçado sobre sua própria história, questionou o mecanismo simplificador do Determinismo do seu tempo e, naperiferia do mundo, escreveu uma obra só explicável pelos parâmetros do século XX: a ciência do século XIX e sua visão reducionista estão na voz de dois personagens loucos de Machado, de cujas teorias simplistas sobre as questões humanas rimos.

         Na época, enunciavam-se teorias científicas materialistas para explicar tudo, ou mesmo se acreditava que a Ciência terminaria por explicar tudo.

         No entanto, na obra de Machado, era o maluco Quincas Borba que defendia a ideia de que as sociedades podiam ser explicadas por meio do Darwinismo, ou seja, de que não havia nada errado com o fato de que os mais aptos tivessem até privilégios, e os menos aptos não pudessem ter acesso a direitos básicos; e era o psiquiatra também maluco Simão Bacamarte que se achava capaz de diferenciar, perfeitamente, o são do louco, colocando cada qual em seu lugar numa tabela simplista.

         Logo no princípio de sua segunda obra realista, o delirante Quincas Borba explica ao amigo Rubião, verdadeiro personagem central da obra, sua ideia filosófica do “Humanitismo” que consiste em dizer que, para alguns almoçarem bem, outros devem ser os escravos que cuidam das galinhas a serem servidas no cardápio.

         Para melhor esclarecer sua absurda teoria, ele exemplifica com a famosa história dos dois exércitos que tiveram de guerrear, pois só havia batatas para um.

         O exército vencedor, diz o personagem na sua loucura, ficaria com as batatas e poderia não só subir a montanha, mas também chegar ao lugar onde havia batatas para todos. Se não houvesse a guerra e a eliminação de um dos exércitos, sequencia, todos morreriam. A famosa frase “Ao vencedor, as batatas” resume, então, sua filosofia darwinista e cínica que justifica a guerra e os meios injustos com os quais alguns pretendem e, infelizmente, conseguem atingir um fim.

         Ao contrário disso tudo, Machado foi um excluído que construiu seu próprio acesso às batatas e, acima de tudo, escolheu, sem se confundir, as batatas com as quais queria ficar, pois sabia que “só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima de suas glórias fofas e das suas ambições estéreis”.

         Enfim, também foi pertinente analista da história que se desenhava a sua volta, apesarde ter sido acusado do contrário. Só que sua avaliação foi discreta, porque ele preferiu as entrelinhas, o estudo das reações e da pluralidade das motivações dos seres humanos.

         A arena ideológica do seu tempo está presente na sua obra, mas diluída na discussão das contradições e dos absurdos da condição humana que eram seus verdadeiros temas.  

         Nas suas análises, Machado foi amadurecendo até chegar no nível que o destacou: a presença de personagens falíveis em situações extremas que os fazem cair nas engrenagens e armadilhas mercantilistas da sociedade. Essas encruzilhadas terminam por traduzir sua visão cética e pessimista do ser humano, a qual descamba para uma ironia niilista que hoje pode ser vista como politicamente incorreta. Mas é só triste, na minha opinião... Acho também que por aí chegou ao personagem pícaro, caminho pouco mencionado de sua obra. 

         Por tudo isso os temas do seu tempo ganham, na sua obra, matizes novos e originais.

Machado aprendeu a ler. Foi leitor de si mesmo, de seu mundo e de sua época e dos livros que o ajudaram a ver-se e a ver tudo a sua volta com clareza e originalidade.

         Saber de Machado de Assis e de sua obra, portanto, dá uma dor, mas desenvolve a compreensão do ser humano e de suas fraquezas derivadas das circunstâncias sempre adversas em que vive.


SEGUNDA PARTE: PRINCIPAIS OBRAS

1. “Dom Casmurro” (1899)

         Por ter sido tardio, o Realismo brasileiro foi “contaminado” pelo Simbolismo e pelo Impressionismo, tendências do final do século XIX.

         Na verdade, as obras de Machado de Assis não são facilmente classificáveis, o que termina por torná-las polêmicas, principalmente “Dom Casmurro” cujo tema é o da infidelidade feminina (muito comum na época). Mas que recebe, nas mãos de Machado, um tratamento originalíssimo.

         Todas as outras personagens realistas do período, semsombra de dúvidas, traíram seus maridos e, assim, desconstruíram tanto as mulheres quanto o casamento idealizado, típicos do Romantismo.

         Não é o caso de Capitu: a quebra da nitidez do Impressionismo confunde nossa avaliação, e “Dom Casmurro” é um livro que muito mal se encaixa no formato realista. Afora o fato de que nele Machado não só focaliza a classe dominante, mas ainda a desmascara, o livro “Dom Casmurro” em tudo foge da descrição equilibrada e isenta dofato e da contemporaneidade, com narração onisciente, que são os traços mais fortes do Realismo.

         Seu narrador em primeira pessoa, Bento Santiago, tenta, de forma sub-reptícia, convencer o leitor da traição de sua esposa Capitu com seu melhor amigo Escobar.

         Mas a história não convence de todo – nas entrelinhas, pode-se ler não só todo o machismo, todo o autoritarismo (travestidos de vitimismo), mas também toda a violência que ele tenta disfarçar com seu estilo erudito de bom moço das elites brasileiras do fim do século XIX.

         Os leitores sentem-se incomodados com a falta de espaço para a autodefesa de Capitu: ela está lá na história, porém o narrador não lhe abre espaço, não lhe dá a palavra...

         A violência inaceitável desse gesto percorre todo o enredo, e a dúvida se inicia a partir de uma constatação que não se pode calar: por que ele quer nos convencer de que foi traído? Não seria mais previsível, num país patriarcal como o nosso, o narrador querer nos convencer sobre a versão contrária, ou seja: a de que não foi traído?

         O esforço na direção contrária da esperada, portanto, esconde e revela variados segredos, e mesmo desejos, que não são claramente expostos, mas ficam latentes na falta de nitidez e de contorno, típica do Impressionismo, não do Realismo, o que dá margem a várias leituras, inclusive a de que Bento queria, na verdade, esconder sua homossexualidade.

         Além disso, o narrador esperou tempo demais para escrever seu relato: se a traição ocorreu por volta dos trinta anos, por que ele só foi contá-la aos sessenta e tantos? Ele não colecionou mágoas demais nesse intervalo? O fato não foi se apagando e, portanto, sendo substituído por uma nova versão já distante da realidade?

         A força desse não-dito faz do “Dom Casmurro” umas das mais profundas e intrigantes obras de nossa literatura, além de que ilustra para nós, seres humanos, nossa complexidade e a de nossa linguagem, que nos diferenciam e ferem todo dia. 


2. “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881)

         A chegada tardia do Realismo aqui no Brasil causou muitos problemas na caracterização do Realismo entre nós, que se desenvolveu, por assim dizer, na madrugada do século XX, ou seja, num tempo ambivalente entre as certezas científicas positivistas do século XIX e a quebra delas no século XX.

         Isso está traduzido na obra de Machado de forma magistral.

         Vários temas compõem a tessitura narrativa de "Memórias póstumas de Brás Cubas", que, aliás, mais parece um romance modernista: fatos apresentados em quadros, às vezes, visuais e fora da ordem cronológica quebram completamente a narração cronológica, típica do Realismo.

         O primeiro tema brota mesmo do Realismo − é a infidelidade feminina que quebra de uma vez dois pilares românticos: a idealização da mulher e do casamento. Grandes livros do período trabalham o desmantelamento da felicidade conjugal: "Madame Bovary", "Anna Karenina", "O primo Basílio"...

         No nosso caso, o triângulo é formado por Brás Cubas, Virgília e Lobo Neves, e sua causa fica no que Eça chama de "episódio interessante" para quebrar a desocupação e o tédio geral que grassa entre as personagens, principalmente as femininas.

         Diferentemente das personagens europeias, Virgília não morre e seu erro fica, digamos assim, sem o devido “castigo”, o que diz muito sobre Machado e sua obra que desmascaram as idealizações com as quais o Romantismo via o ser humano.

         O segundo está num ponto de vista triste de Machado de Assis, também uma pancada forte no Romantismo e seus heróis extraordinários, capazes de transformar o mundo: Brás Cubas, o herói do romance, é um homem falhado, e o último capítulo do livro, "Das negativas", dá conta disso: “(...) Não alcancei a celebridade do emplastro, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento (...) Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."

         Nada em sua vida brilha ou se destaca: foi um estudante medíocre; não exerceu com entusiasmo nenhum cargo, nem profissão alguma; não conseguiu levar adiante a empresa do emplastro, um remédio que aliviaria "a nossa melancólica humanidade"; não constituiu família, nem, de fato, ajudou ninguém. Mesmo o emplastro, que consumiu parte de suas posses e parece ser fruto de desprendimento, foi efeito, na verdade, de sua "paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas": como o livro é escrito na primeira pessoa, nós, os leitores, sabemos das intenções pouco nobres do narrador – ele o queria inventar pelo “prazer da nomeada”, ou seja, no ato da compra, o consumidor do medicamento seria obrigado a dizer o seu nome.

         Seus amores também foram ordinários: amou (se é que se pode usar esse verbo) Marcela e foi por ela assaltado; Eugênia, que rejeitou, por ser coxa; Virgília, com quem teve um caso que foi, sem explicação, minguando, e Eulália, morta numa epidemia, além de todas as europeias que usou, depois que terminou os estudos, se é que se pode chamar de estudos a sua trajetória universitária em Portugal.    

         Sua vida deu chabu. Ele mesmo confessa que colheu "de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação", ou seja, ele preferiu a aparência e não a essência.

         Que herói...

         Brás Cubas, enfim, é prisioneiro do gozo, do poder, da glória, e sua vida transcorre num espaço onde prevalecem as injustiças, os instintos agressivos, temperados pela mentira, pelas conveniências e pelo dinheiro.

         Mas não só ele é assim; o romance é um desfile de poucas virtudes e muitas falhas, e o oprimido não é melhor que o opressor: Prudêncio, o escravo de Brás Cubas, também escraviza, na primeira oportunidade e Dona Plácida acomoda-se, mediante certa quantia, à situação de que discordava por achar imoral – tomar conta da casa onde Brás Cubas e Virgília se encontravam.

         Enfim, nada escapa à ironia de Machado: sentimentos, crenças, condutas, tudo é olhado com amargura; tudo aponta o absurdo da condição humana e as máscaras de suas ordenações sociais.

         O terceiro tema é a loucura, recorrente na obra machadiana: aparece, também, por exemplo, nas obras “Quincas Borba” e “O alienista”.         

         Quincas Borba, amigo de infância de Brás Cubas, traz às páginas do romance uma teoria dogmática que nada mais é do que uma caricatura da atmosfera científica da época. Seu Humanitismo (e seu "formidável rigor") provam que a inveja é uma virtude; a guerra, uma operação conveniente; a dor, uma ilusão; a violência, a miséria, a fome e as doenças, apenas equívocos do entendimento. E que o homem, portanto, pode ser feliz.

         Nada escapa à chacota corrosiva de Machado nas “Memórias póstumas de Brás Cubas”, nem mesmo a fé que a mentalidade de seu tempo tinha no progresso da ciência e no triunfo da lógica. Nenhum consolo brota da leitura do livro, cujo pessimismo torna inalterável o absurdo cortejo dos séculos e dos homens.

         É um livro só aparentemente engraçado; carrega uma tristeza sem remédio e, ao contrário do que diz, transmite a nossa miséria.

 

3. “Quincas Borba” (1891)

         Uma espécie de continuação de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba” é menos experimentalista e famoso, mas é mais profundo e sutil. E ainda mais triste. Da trilogia mais importante de Machado, é o menos palatável – na dificuldade que impõe ao leitor para decifrá-lo e na mensagem.

         Caso se possa pensar numa imagem que um livro evoca, uma sala de espelhos é o que aparece à mente quando tentamos sintetizá-lo. Seu enredo mais claro é a história de Rubião, herdeiro de Quincas Borba, o mesmo filósofo louco que era amigo de Brás Cubas nas “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Mas há um contexto mais amplo que o texto “Quincas Borba” refere – o da nossa sociedade estruturada por relações de trocas de todos os matizes, principalmente os materialistas.

         De início, Rubião aparece cuidando do filósofo doente, já meio enredado na sua loucura e na sua teoria, que o confundem e paralisam.

         Quando morre, o “filósofo” deixa para Rubião não só toda a sua fortuna – que Rubião não consegue quantificar racionalmente −, mas ainda seu cachorro, que também se chama Quincas Borba (espécie de âncora do passado e da loucura) e que persegue Rubião no seu trajeto de decadência até a morte, disfarçado de ascensão social e econômica.

         Uma das chaves para entender o “Quincas Borba” é essa ascensão rápida demais a que foi empurrado o personagem. Porque não foi construindo, nem compreendendo os próprios percursos para o novo espaço que adentrava, Rubião tornou-se presa fácil das armadilhas do mercado e das relações de interesse que se organizam no tecido social dominante a que ele foi alçado e no qual não foi criado.

         Rico, Rubião muda-se de Diamantina para o Rio de Janeiro e, ainda no trem, encontra Sofia e Palha, que vão introduzi-lo nas engrenagens mercantilistas da sociedade, as quais, por sua vez, o esmagarão devagar à nossa vista.

         O leitor, quando se olha no espelho, vê Rubião – um homem bom e cego, à beira do abismo – e parece adivinhar o perigo que ele corre ao lado do casal (meio serpente, meio sereia), que duplica a sociedade com seus apelos insistentes e suas exigências inescapáveis de status e aparências.

         A inocência de Rubião – que é sua verdadeira riqueza e o vetor que o precipita no abismo, ao mesmo tempo – atrai uma corja inumerável de parasitas que refletem a sociedade, vista no seu lado mais negativo, que, por sua vez, num espelho de lente, se reflete, aumentada no casal Sofia e Palha. Esse jogo de imagens refletidas umas nas outras é como um labirinto de enganos que prendem, enlouquecem e matam Rubião com seus brilhos falsos e suas figuras invertidas.

         Mascarados pelo status e pela riqueza, Sofia e Palha vão subindo, na escada social, à proporção que quebram ética, valores, vínculos... Sabem de cor todos os fios do tecido com que costuram sua ascensão, usam Rubião e o descartam com facilidade, quando já não havia o que tirar dele. Blindados pelo conhecimento das regras que garantem a invulnerabilidade e a vitória no jogo, consomem, mas não são consumidos pelo sistema e terminam encastelados no topo da pirâmide de onde observam a demência do personagem central, com escárnio. Nesse jogo mortal, dentro do labirinto, só Rubião não conhecia as regras...

         O propalado adultério de Sofia, que se adivinha sem se realizar, nada mais é do que uma estratégia de ataque: ela é cúmplice do roubo de Palha, favorece o desequilíbrio da vítima, fere-a, apressa sua confusão mental e golpeia-a mortalmente, soprando-a, com a cara limpa e o discurso correto dos inocentes...

         O marido a usa, ela o usa e os dois usam o desejo recalcado de Rubião para ganharem o jogo dentro da sala de espelhos que brilham e invertem valores.

         As pressões desse jogo de martírios são poderosas: elas não só potencializam os germes de loucura internos de Rubião, desde a herança ambivalente de Quincas Borba, mas também maltratam o leitor, fazendo-o antever a pilhagem, testemunhar o crime, sem poder ajudar a vítima.

         No final do jogo, na sala de espelhos, não há vencedores: Sofia, Palha e companhia “sobem para baixo”, Rubião morre e o leitor se entende partícipe.

         Machado precisa ser ouvido neste tempo de fake news;de escaladas sociais desonestas e ostentatórias; de prisões em expressões, ideias e comportamentos “americanalhados” (como diria Alberto da Cunha Melo); de comunicação sem conteúdo; de tretas e cancelamentos nas redes sociais; de falta de criticidade; de preguiça mental panfletária e de simplificação.