domingo, maio 30, 2010

"O visitante", de Richard Jenkins

Quando minha tia Germana (como já sabemos, Assessora para Assuntos Teológicos e Filosóficos deste blog) me apresentou Platão, eu tomei um susto bom. E comecei a me entender: eu não sabia de todo e fui compreendendo devagar – tenho um mundo das essências no horizonte e penso que a vida é uma tarefa difícil na sua direção.
Tudo – desde amor e maternagem até democracia e globalização – eu compreendo dentro dessa equação. Um dia, um aluno meu me perguntou o que, na minha opinião, significava “democracia” e, quando eu terminei de falar, ele tinha lágrimas nos olhos. Porque eu não me eximi de sonhar e falei fixando o meu horizonte querido.
É claro que ele, instalado no meu ser como órgão vital, me trouxe alguns problemas: tenho uma dificuldade básica de adaptação ao presente e vivo morta de cansada de correr para alcançá-lo. Mas ele também me trouxe uma bússola e uma força incancelável para continuar quando tudo parece perdido.
Isso tudo, junto com a maturidade, me deu uma sensação constante que um verso de Bandeira traduz (“A vida que podia ter sido e que não foi.”) e com a qual tive que aprender a viver.
É aqui que entra o filme “O visitante” a que assisti e do qual gostei muito. Ele me trouxe a história de Walter, um americano, viúvo, professor numa universidade, na qual ele não vê sentido nenhum. Ele faz esforços para disfarçar, mas, na verdade, sua vida inteira não significa nada para ele, como termina por confessar, a certa altura do filme.
Embrulhado numa enrascada autoral, Walter é forçado a ir de sua cidade para Nova York apresentar um trabalho sobre “globalização” cuja exposição, só de raspão, testemunhamos. E, ao chegar a um apartamento de sua propriedade que pouco usa, encontra lá dois “hóspedes” – Tarek, sírio, e Zainab, senegalesa.
Há um segundo longo de sustos, medos, agressões, um diálogo difícil, e concluímos que um tal de Ivan, um esperto qualquer, alugou o apartamento a eles. É óbvio, então, que eles têm que desocupar o apartamento, e o fazem, mas esquecem um retrato, e Walter vai atrás deles, entregá-lo. Em virtude do desamparo de ambos, resolve convidá-los a passar pelo menos uma noite com ele, a qual se estende para “alguns dias”, tensos, mais por causa de Zainab, é verdade; Tarek é mais conciliador.
O casal tem poucas coisas (a mudança é lacônica...) e, entre elas, está um tambor. Um dia, Walter chega a casa, começa a experimentá-lo e é flagrado por Tarek, que se senta e, pacientemente, começa a ensiná-lo a tocar o instrumento. Advém daí uma amizade simples entre os dois, principalmente; Zainab é mais arisca.
Então, vem o ponto de mutação: numa cena rápida no metrô, Walter passa, mas Tarek “se entala” na catraca, por causa do tambor, e a pula, mesmo tendo pago a passagem – a de Walter, inclusive; é preso, apesar de tudo. E se descortina a outra parte da sua história: ele e Zainab são imigrantes ilegais.
Ajudar Tarek, então, começa a se tornar o sentido da vida de Walter, principalmente depois que entra nela a mãe de Tarek, Mouna, viúva de alguém cuja prisão e consequente morte tinham sido determinadas por “alguma coisa que tinha escrito no jornal”. A vinda da mãe e do filho para os Estados Unidos teria sido depois disso.
Mas a globalização, como até agora conseguimos fazer, separa todos, irremediavelmente. Sim, porque conseguimos globalizar ciência, técnica, objetos, capital... no entanto, não acertamos a globalizar pessoas, que carregam consigo culturas, histórias, cores e outras diferenças que nossos defeitos não permitem tolerar. Zainab desaparece “na casa de um primo”; Tarek é deportado; Mouna o segue, pois sua pátria é seu filho, despede-se de Walter chamando-o de “habibti”, o que parte o coração da gente.
Walter “visitou” meu horizonte, um lugar onde nosso sentido é o outro; onde conseguimos nos conectar com a essência que nos iguala, não com a circunstância, que nos diferencia; onde a pátria é o amor, e não o ódio. Um lugar cuja língua é o afeto liberto das diferenças... E não pôde permanecer nele: fronteiras, leis, procedimentos e arrogâncias o separaram implacavelmente de Tarek, de Zainab e de Mouna. E de um sentido para sua vida?
A última cena diz que não, numa metáfora: Walter toca tambor no metrô. Ou seja: estrangeiro em seu país, ele vai pautar sua vida pela experiência de igualdade e de afeto que teve com estrangeiros. Que eram mais iguais do que seus iguais.
Isso tudo é uma direção, eu completo, que terminará por nos levar, devagar, ao meu horizonte bonito. E há novos e inimagináveis horizontes ainda mais bonitos. Não sei pensar diferente... E tem gente que pensa como eu.

15 Comments:

At 2:05 PM, Anonymous Inaura said...

Querida Flávia,
Adorei o seu texto,eu também sonho com um mundo idealizado por PLATÃO,
e tantos outros ,onde as¨pessoass
são mais importantes que as couve -flores como diz Peter Walsh no romance Mrs Dalloway.
Por globalização entendemos um mundo sem fonteiras,por democracia
entendemos direitos iguais para todos.Mas cada vez vemos um mundo dividido em que poderosos ditam leis e regras,menosprezendo as culturas e crenças dos diferentes
povos.
Continuo sonhando e torcendo para que um dia a humanidade cresça e
atinja o ideal Platônico onde pre
valecerão o amor e a igualdade,onde
um homem possa confiar no outro como um menino confia em outro menino.
Obrigada por tentar passar isto para seus alunos.
Beijos

 
At 2:05 PM, Anonymous Inaura said...

Querida Flávia,
Adorei o seu texto,eu também sonho com um mundo idealizado por PLATÃO,
e tantos outros ,onde as¨pessoass
são mais importantes que as couve -flores como diz Peter Walsh no romance Mrs Dalloway.
Por globalização entendemos um mundo sem fonteiras,por democracia
entendemos direitos iguais para todos.Mas cada vez vemos um mundo dividido em que poderosos ditam leis e regras,menosprezendo as culturas e crenças dos diferentes
povos.
Continuo sonhando e torcendo para que um dia a humanidade cresça e
atinja o ideal Platônico onde pre
valecerão o amor e a igualdade,onde
um homem possa confiar no outro como um menino confia em outro menino.
Obrigada por tentar passar isto para seus alunos.
Beijos

 
At 7:40 PM, Anonymous Anônimo said...

Oi Flávia, estou alegre por encontrar nas minhas buscas diárias um belo texto para fechar o meu sonhado domingo, e abrir a semana do corre-corre. Comecei a assistir este filme esta semana e não terminei porque foi me dando um angústia quase que advinhando o enredo da ilegalidade, eu tenho uns desses medos deve ser "pantim"), em não conseguir ver as injustiças, as lutas desiguais...sinto por todos que estão nesta condição de ilegal, pelos nossos que apesar de estarmos no mesmo país e vivem na condição de ilegal por não termos uma saúde pública decente, e tantas mazelas...mas ainda acredito em um mundo melhor para todos.
bjs e uma boa semana
Dora

 
At 9:01 PM, Blogger Unknown said...

Flávia, eu vi esse filme assim que cheguei aqui, na Espanha. No começo, eu fiquei sem entender porque eu tinha me identificado com a historia... aos poucos fui digerindo a trama e acho que só agora compreendo de verdade:

"Ou seja: estrangeiro em seu país, ele vai pautar sua vida pela experiência de igualdade e de afeto que teve com estrangeiros. Que eram mais iguais do que seus iguais."

Dentre as várias sensações que a narrativa levantou em mim, acredito que foi exatamente essa que fixou... pelo meu momento. Só hoje eu acredito que todas as pessoas do mundo sorriem no mesmo idioma.

Eu teria uma porção de coisas mais a dizer ou comentar com vc sobre esse filme, mas o seu texto já fez isso de uma forma tão bonita que só me resta achar massa e ficar com vontade de escrever assim um dia!

Um beijo,

Amanda

 
At 10:57 PM, Anonymous Paula Maia said...

Flávia, reli seu texto depois de assistir ao filme ... como sempre digo, vc e Lenine conseguem transformar em palavras escritas de forma deliciosa de se ouvir, ou ler, sentimentos q acredito q vem de dentro da minha alma e se conflita com o corre -corre do meu dia a dia... as vezes nao me sinto " uma estrangeira no meu País " , e sim , uma E.T. no planeta Terra!!!!
É maravilhoso saber q nao estou só...

Sem Dó
Barão Vermelho
Eu sei que você viu na TV
O assassinato de crianças de rua
Mas será que você viu na TV
As manchetes dos jornais do dia?

A moral de países irmãos
Que nos acusam de selvagens
Com suas competentes organizações

Será que você viu na TV
Os nossos sonhos destruídos?
Juros altos, vistos negados
Portas fechadas para a civilização

Que moral tem esses nossos irmãos
Que nos acusam de selvagens
Com suas competentes organizações

Será que eles se preocupam com a gente?
Será que eles realmente se preocupam?
Julgar e condenar parece fácil
Será que eles realmente se preocupam?

Ou será que somos
Um espetáculo a mais
Nos seus telejornais
Num museu de horrores
A confirmar o seu lugar de civilizado
No primeiro mundo
Aquele que destrói
Sem deixar vestígio
Onde o único sinal
É a riqueza cada vez maior

Não sei se você viu na TV
As consciências de perfume francês
Ou se ao mudar de canal
Assistiu as imagens da guerra civil
No continente paira o humanismo
Pessoas também morrem todo dia

Assassinadas
Sem dó
Por credo, nacionalidade e cor

Ou será que somos
Um espetáculo a mais
Nos seus telejornais
Num museu de horrores
A confirmar o seu lugar de civilizado
No primeiro mundo
Aquele que destrói
Sem deixar vestígio
Onde o único sinal
É a riqueza cada vez maior

Não sei se você viu na TV
O assassinato de crianças de rua
Ou se ao mudar de canal
Assistiu as imagens da guerra civil
No continente paira o humanismo
Pessoas também morrem todo dia

Assassinadas
Sem dó
Por credo, nacionalidade e cor (4x)

Será que eles se preocupam com a gente?
Será que eles realmente se preocupam?
Julgar e condenar parece fácil
Será que eles realmente se preocupam?


Um beijo grande
Obrigada por tudo

 
At 11:10 PM, Anonymous Paula Maia said...

Correção!!!

Flávia, reli seu texto depois de assistir ao filme ... como sempre digo, vc e Lenine conseguem transformar em palavras escritas de forma deliciosa de se ouvir, ou ler, sentimentos q acredito q vem de dentro da minha alma e se tornam um eterno conflito com o corre -corre do meu dia a dia... as vezes nao me sinto " uma estrangeira no meu País " , e sim , uma E.T. no planeta Terra!!!!
É maravilhoso saber q nao estou só...

Sem Dó
Barão Vermelho

Eu sei que você viu na TV
O assassinato de crianças de rua
Mas será que você viu na TV
As manchetes dos jornais do dia?

A moral de países irmãos
Que nos acusam de selvagens
Com suas competentes organizações

Será que você viu na TV
Os nossos sonhos destruídos?
Juros altos, vistos negados
Portas fechadas para a civilização

Que moral tem esses nossos irmãos
Que nos acusam de selvagens
Com suas competentes organizações

Será que eles se preocupam com a gente?
Será que eles realmente se preocupam?
Julgar e condenar parece fácil
Será que eles realmente se preocupam?

Ou será que somos
Um espetáculo a mais
Nos seus telejornais
Num museu de horrores
A confirmar o seu lugar de civilizado
No primeiro mundo
Aquele que destrói
Sem deixar vestígio
Onde o único sinal
É a riqueza cada vez maior

Não sei se você viu na TV
As consciências de perfume francês
Ou se ao mudar de canal
Assistiu as imagens da guerra civil
No continente paira o humanismo
Pessoas também morrem todo dia

Assassinadas
Sem dó
Por credo, nacionalidade e cor

Ou será que somos
Um espetáculo a mais
Nos seus telejornais
Num museu de horrores
A confirmar o seu lugar de civilizado
No primeiro mundo
Aquele que destrói
Sem deixar vestígio
Onde o único sinal
É a riqueza cada vez maior

Não sei se você viu na TV
O assassinato de crianças de rua
Ou se ao mudar de canal
Assistiu as imagens da guerra civil
No continente paira o humanismo
Pessoas também morrem todo dia

Assassinadas
Sem dó
Por credo, nacionalidade e cor (4x)

Será que eles se preocupam com a gente?
Será que eles realmente se preocupam?
Julgar e condenar parece fácil
Será que eles realmente se preocupam?

Impressionante, né???? pessoas morrem, são marginalizadas, discriminadas... todos os dias, Por quê? Por credo, nacionalidade e cor...

Que bom q no filme essas diferenças "fizeram TODA A DIFERENÇA " P A VIDA do Walter....Deveriam existir mais pessoas asssim!

Um beijo grande
Obrigada por tudo

10:57 PM

 
At 9:50 PM, Anonymous Débora Possídio said...

Professora:
Muito bom o texto, a visão da senhora a respeito do filme.
Qdo fala em não se eximir de sonhar, lembro das vezes que em sala de aula a senhora falava que nós éramos adolescentes e que não deixássemos, com o passar do tempo, à medida que ficássemos adultos, de sonhar. Pq a maioria das pessoas com o amadurecer e as dificuldades da vida desistem de sonhar.
Guardo isso comigo e tento frequentemente seguir seu conselho, não é uma tarefa fácil, mas a senhora tem razão!
Um abraço!

Sua ex-aluna: Débora Possídio.

 
At 12:24 AM, Blogger Diego Garcia said...

Flavinha, que saudade!!! Falei com Debby no nive dela recentemente, mas morro de saudades de vocês duas ^^ Passei no vestibular! \o/ começarei Letras dia 11 de agosto! espero poder ser que nem você quando eu crescer. um beijo enorme e parabéns pelo blog, cada dia melhor!

 
At 12:14 AM, Anonymous Raul said...

Lembrei meus anos de faculdade quando me deparei com esse texto. Ele me recorda um autor, alemão que trata desses Horizontes Interpretativos, chamado Hans Georg Gadamer ele tb leu Platão =D

 
At 10:04 PM, Anonymous Anônimo said...

Olá Flávia, eu queria saber quais são os hoários de seu curso lá no GAME, pois estou querendo mudar de horário.
Obrigado

 
At 11:28 AM, Blogger Samarone Lima said...

Também adorei este filme.
Acabei de ler um texto soeu, de 31 de janeiro. Guardei uma frase para minha coleção:
"Porque só eu sei o que sonhei e do esforço que fiz para não me afastar demais do que sonhei, para não me perder".
Lindo isso.
Beijos,
sama, seu criado.

 
At 12:53 AM, Anonymous Anônimo said...

Adorei esse texto, Flávia.
Érica.

 
At 11:38 PM, Blogger Montarroyos said...

Como diria John Lennon, "Talvez você diga que eu sou um sonhador. Mas não sou o único".

 
At 10:25 PM, Anonymous Anônimo said...

Flavia, voce é uma ótima escritora . Adoro suas aulas . voce é tudo *-* .

 
At 1:13 AM, Blogger RAQUEL VASCONCELOS said...

SER
O MEU SER É SER
QUANDO NÓS PASSA A SER UM
E QUANDO UM EXISTE.
NÓS É UM TODO INTEGRADO.
SER NÓS E UM EM UM SÓ
É QUESTÃO DE VIDA OU MORTE
OU EXISTÊNCIA DE UM
E NÓS SOLIDÃO... SOIDÃO... SOFRIDÃO...
QUEM QUER SER UM
SEM SÊ-LO NÓS,
NÃO É SER
É PADECER DE UMA ALMA INEXISTENTE
ENTÃO SE SER NÓS, EM UM, BASTA?
SEREMOS NÓS
NA MAIS COMPLETA INDEFINIÇÃO.

RAQUEL ARAÚJO DE VASCONCELOS

 

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