domingo, outubro 25, 2009

Carta para tia Gena

Tia Gena, minha bastante mãe procuradora:

Uma vez eu escrevi uma carta aberta para tia Beta (no arquivo ao lado, em agosto de 2006) e, quando você a leu, disse que ficaria feliz de receber uma daquela raça. Pois bem: esta aqui, sou eu tentando, depois de muitos anos, realizar o seu pedido.

A de tia Beta falava de como cada tia paterna tinha contribuído para a minha formação como pessoa. Nada mais justo que eu, então, continue o raciocínio, clarificando o que você me deu.

A primeira palavra que me vem é “harmonia”. Procurei-a, e outras do mesmo campo semântico, no dicionário e gostei de dois sentidos que achei: “conciliar” e “pôr em harmonia”. Havia outros, como “ordem” e “proporção”, que descartei porque não dariam a ideia exata de como a percebo. A palavra “ordem” tem dentro de si um decreto e uma falta de acordo que não têm nada a ver com você; em “proporção”, falta uma pitada de exagero, que é um dos seus temperos.

Quando papai morreu, herdei uma prateleira onde arrumei objetos que foram de minha avó, de minha mãe e seus e, enquanto fazia isso, fui devagar entendendo que tinha sido você que tinha me ensinado a fazer isso: em vitrines internas (se é que isso existe), você faz uma correspondência entre objetos e afetos e vai buscando uma harmonia.

Quem não a entende pode até pensar que você gosta de coisas. Mas não é isso: dentro de você, estão, compreendidas, as palavras cujas trajetórias cruzaram a sua. E a arrumação dos objetos traduz isso: às vezes, um longo e penoso trabalho de perdão molhado de lágrimas. Mas você consegue.

A segunda palavra que me veio foi “partilha” – assim que você pode, depois da sua própria ordenação interna, através de relatos articulados e nítidos, você vai ajudando quem está ao seu redor a compreender e compreender-se. Essa tinha que vir junto com outra, que é “compromisso”, talvez porque você está sempre próxima quando precisamos, e a sua palavra é sempre um farol com que se pode contar.

Quando procurei “compromisso” no dicionário, fiquei desolada; achei três explicações que não têm nada a ver com você: “obrigação mais ou menos solene”, “acordo de litigantes” e “dívida”. O que você me ensinou foi um compromisso diferente disso; o seu tem a ver com “agregação” e “resolução”.

Como já perdi a ordem (coisa que é a minha cara), a próxima palavra seria “irreverência”, mas não gostei do que o dicionário trouxe e já vou dizendo que a sua tem uma alegria leve e um quebra-gelo.

Uma vida é sempre uma tarefa difícil e sem bula. Não é todo mundo que tem a sorte de vir perto de você e de seus recursos visíveis e invisíveis. Fique certa de que estarei, o resto de minha vida, obrigada a essas lições e, como você me ensinou, com cada um, a seu tempo, a seu modo, como me for possível, tentarei reinventar essas palavras tão raras que você me deu, nesse seu dicionário exclusivo.

1 Comments:

At 4:05 PM, Anonymous Anônimo said...

Eu conheci as Betas, as Genas, as Flávias e as Ritinhas desta família setaneja. Era menino.

Sou fã delas ainda hoje.

Luis Manoel Siqueira

 

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