Sobre abismos
“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só
a fazer outras maiores perguntas.” (João Guimarães Rosa)
De repente, me pego pensando sobre as palavras. Já disse por aí que fico com elas no coração um tempo, olho seu significado no dicionário, vou avaliando-as como quem observa um diamante, seus ladinhos tantos... E, na escrita, guardo o que vou descobrindo.
Esses dias, duas palavras me povoaram – destino e escolha.
Os gregos antigos já disseram foi muito sobre a primeira, eles que nem sequer tinham uma palavra que significasse “livre arbítrio”. Seus oráculos traduzem, nas suas narrativas, seus medos, sua reverência, sua subordinação a essa ideia infeliz de que nada, em nosso destino, pode ser mudado.
É claro que sei ser a nossa circunstância uma espécie de destino ingovernável. Mas há sempre um espaço e um jeito dentro de qualquer prisão.
Numa das nossas mais primeiras e mais queridas narrativas, Sófocles conta a história de Édipo, que terminou, sem querer, cumprindo seu destino horrível.
Ainda nos restam resquícios dessa ideia difícil nos desvãos de nossas superstições, no poder que ainda delegamos a interpretadores de cartas, mãos, búzios e astros de saberem o que, sem remédio, nos espera. Porém não me parece que isso tem, hoje, o peso que tinha na Grécia antiga.
Também, nesse intervalo, nasceram as três grandes religiões monoteístas, erramos um tanto em nome delas e ganhamos um Deus onisciente, onipresente e onipotente que coordena tudo e todos. Além disso, Ele nos deu um presente, o livre arbítrio, que não sabemos usar. Tudo junto – injustiças, arbitrariedades, violências, fome, ignorâncias... – foi justificado, aceito, naturalizado, explicado como “a vontade de Deus”.
Desse modo, a palavra destino enfraquece, e Deus aparece com uma força sem medida. Machado de Assis transcreve essa ideia numa frase clara: “Ninguém pode decidir o que há de fazer amanhã; Deus escreve as páginas do nosso destino; nós não fazemos mais que transcrevê-las na Terra”.
Não me parece boa a ideia de que Deus escreve a nossa vida prevendo maldades para nos dar como presentes...
Então, a modernidade chega e nos traz quatro palavras cruciais: igualdade, liberdade, fraternidade e indivíduo. Ou seja, somos livres para pensar e agir e, portanto, responsáveis pelo nosso próprio destino, numa sequência de escolhas que o vão forjando. Essa ideia tem a cara do nosso tempo, que hipertrofiou o eu e a matéria e tirou Deus do centro do pensamento.
Mas, como diz Guimarães Rosa, uma coisa é arrumar as ideias; outra é lidar no diário com pessoas e suas mil e tantas misérias, mais ou menos isso: e o que constato é que escolhemos às cegas, às vezes, e só depois é que verificamos o erro – nossos medos, nossas fraquezas, nossos projetos falidos, os episódios ruins que nos atropelam ao longo da vida, nossas ignorâncias, tudo turva a nossa visão, e confunde, e dificulta...
Mesmo assim, algumas vezes, escolhemos (ou cumprimos?) nosso destino e tudo se encaixa: é quando o que devemos fazer é o que queremos fazer e, então, o rio flui no seu leito perfeitamente.
Mas, na maioria das vezes, quedamos inertes, sem saber o que é certo e melhor, mesmo que dentro da palavra escolha esteja a capacidade de escolher bem (somos inclinados naturalmente para o bem?).
Por outro lado, há também, nesse conjunto de palavras, a liberdade individual de escolher o mal. O que faz alguns de nós irem por esse caminho é um mistério, desses que nos ocupam sempre e sempre: arte, ciência, todas as áreas de nosso saber pesquisam motivos, explicações, perdões, punições... Como todos, sei pouco sobre isso: escolher o mal é perder Deus e o homem de uma vez. É perder tudo. Inclusive a liberdade. Porque o mal é uma prisão sem porta e sem janela.
A pessoa vem destinada a ser má? De quem é a responsabilidade disso, só dela? Ela é má ou doente? O mal está na sociedade? No indivíduo? Por que nossas tão necessárias relações são, ao mesmo tempo, tão difíceis? Onde mora a força dos que suplantam seu próprio destino? Ou a fraqueza dos que desistem?
8 Comments:
Flavinhaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!
Tudo bem com você?
Estou com saudade, sabia?
Um abraço beeeeeeeeeeeeeem grande!
Deus te abençoe!
Flavia.
você tocou num tema misterioso. Lembra do Gênesis. Aquele livro é danado de misterioso. Não deveriamos comer do fruto da árvore do Bem e do Mal. Mas comemos. Escolhemos ali o livre arbítrio. Ali demos as costas para Deus. Ali dissemos: "Faço o que eu quero" então Deus disse que iriamos sofrer consequencias...e fechou o jardim para que não mais o encontrássemos. Isso é poesia ! Poesia bela e misteriosa !
Beijos.
Luis Manoel Siqueira
Flávia, querida
e aí vem você, como sempre, tocando fundo na alma da gente !
E então esta não é, para mim, uma das perguntas que me faço e ainda não encontrei respostas? E aí, é como você disse, no início: o jeito é fazer mais perguntas e, quem sabe a trança de gente (que tão bem inspirou você a colocar o nome de seu blog) possa um dia, trazer alguma luz para este tema: Destino e Escolha !!!!!!!!
E as "consequencias das escolhas"? e se tudo "está escrito"?
Sei não! Espero que a "trança de gente" (que se forma toda vez que você nos provoca com algo assim) me traga uma resposta !
Abraço carinhoso prá você Debie e Cia.
Rosário
Flavinha
asisti, ontem, ao filme que ganhou o Oscar deste ano. É um filme indiano, sem grandes pretensões iniciais, mas que disparou e ganhou de todos os americanos que tanto ansiavam pelo premio.
O filme é maravilhoso e imperdível ! Nele, o tema que você nos trouxe é desfiado todo o tempo.
Recomendo a você e a todos que acompanham esta "trança de gente" que somos nós !
Abbraço carinhoso
Rosário
belíssima reflexão, Flávia.
na minha cabeça ficou martelando os dizeres: "mas há sempre um espaço e um jeito dentro de qualquer prisão". acho que eu precisava ouvir isso!
Abraço,
Gianni Paula
Flavia,
A modernidade e individualista.A regra da psicologia e: "Ame a si mesmo" , o resto vem depois, MAS,nesse resto estao incluidos as
pessoas que amamos,nossa etica,nossa sensibilidade e nosso humanismo e ainda nossa compaixao.
O que fazer com eles?
Como diria Riobaldo "Viver e muito
perigoso".
Nosso caminhar se faz por um fio
sobre abismos,nao pela fatalidade
como pensavam os gregos,nao por uma
vontade divina como falam as religioes,nao pelo livre arbitrio,
nao tenho a resposta, tambem sou
prisioneira de mim mesma,talvez por
que simplismente somos uma tranca
entremeada por nossos valores sem
os quais nao seriamos humanos.
Todo amor para voce.
Obs: Meu computador nao tem acento
nem cedilha.
Flávia, passei aqui para indicar o blog mais lindo que já vi. E sei que com a sua sensibilidade também irás apreciar: http://parafrancisco.blogspot.com
O blog deu origem a um livro, foi assim que eu o descobri. :) Espero que você se emocione tanto quanto eu com as lembranças da "mãe do Francisco". Abraço!!!
Faço de proposito e fingo que foi o Destino. Cabe escolher pra ver se é por ai, ou por alí.
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