domingo, agosto 31, 2008

Lendo Machado de Assis - 3

Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências
de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará
nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima
dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas
colunas máximas da opinião.
” (Brás Cubas)

O romance "Memórias póstumas de Brás Cubas" inaugura, em 1881, o Realismo no Brasil. O próprio Machado tinha escrito antes quatro romances que, apesar de românticos, já traziam personagens mais interessados na ascensão social porventura advinda do casamento do que no amor. Mas, de fato, a chegada do Realismo aqui foi tardia, se se considerar que o europeu foi de 1857.
Isso causou muitos problemas na caracterização do Realismo entre nós, que se desenvolveu, por assim dizer, na madrugada do século XX, ou seja, num tempo ambivalente entre as certezas científicas e empíricas do século XIX e a falta de nitidez de contornos do século XX. Esse "mangue" (para pegar uma palavra pernambucana) está traduzido na obra de Machado de forma magistral.
Vários temas compõem a tessitura narrativa de "Memórias póstumas de Brás Cubas", que, aliás, mais parece um romance modernista: fatos apresentados em quadros, às vezes, visuais e fora da ordem cronológica quebram completamente a narração típica do Realismo.
O primeiro tema brota mesmo do Realismo − é a infidelidade feminina que quebra de uma vez dois pilares românticos: a idealização tanto da mulher quanto do casamento. Grandes livros do período trabalham o desmantelamento da felicidade conjugal: "Madame Bovary", "Ana Karenina", "O primo Basílio"... No caso, o triângulo é formado por Brás Cubas, Virgília e Lobo Neves, e sua causa fica no que Eça chama de "episódio interessante" para quebrar a desocupação e o tédio geral que grassa entre os personagens.
O segundo está num ponto de vista triste de Machado de Assis, também uma pancada forte no Romantismo e seus heróis formidáveis capazes de transformar o mundo: Brás Cubas, o herói do romance, é um homem falhado, e o último capítulo do livro, "Das negativas", dá conta disso:
"(...) Não alcancei a celebridade do emplastro, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento (...) Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."
Nada em sua vida brilha ou se destaca: foi um estudante medíocre; não exerceu com entusiasmo nenhum cargo, nem profissão alguma; não conseguiu levar adiante a empresa do emplastro, um remédio que aliviaria "a nossa melancólica humanidade"; não constituiu família, nem, de fato, ajudou ninguém. Mesmo o emplastro, que consumiu parte de suas posses e parecia ser fruto de desprendimento, foi efeito, na verdade, de sua "paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas".
Seus amores também foram mornos: amou Marcela e foi por ela assaltado; Eugênia, que rejeitou, por ser coxa; Virgília, com quem teve um caso que foi, sem explicação, minguando, e Eulália, morta numa epidemia.
Sua vida deu chabu. Ele mesmo confessa que colheu "de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação", ou seja, ele preferiu a sobrepeliz à substância.
Que herói...
Brás Cubas, enfim, é prisioneiro do gozo, do poder, da glória, e sua vida transcorre num espaço onde prevalecem a crueldade, as relações de força, os instintos agressivos, temperados pela mentira, pelas conveniências e pelo dinheiro. Mas não só ele é assim; o romance é um desfile de poucas virtudes e muitas falhas, e o oprimido não é melhor que o opressor.
Nada escapa à ironia de Machado: sentimentos, crenças, condutas, tudo é olhado com amargura e aspereza; tudo aponta o absurdo da condição humana e as máscaras de suas ordenações sociais.
O terceiro tema é pontual e aparece em várias partes do livro: é uma reflexão sobre um assunto muito caro à literatura – a natureza. No século XVII, os elementos da natureza (a rosa, a flor) eram usados como símbolos da fugacidade da matéria e da beleza. Havia, nessa época, uma visão muito pessimista da vida material, e a beleza era mais aperreio que dádiva. No século XVIII, a história tinha empurrado o homem para uma cidade grande e horrível, e a natureza passa a ser lugar de refrigério, cenário clássico em que o eu-poético podia ser feliz. No século XIX, a natureza ganha cores nacionais e passa a traduzir as emoções do eu-poético... Em “Memórias póstumas de Brás Cubas”, é um imenso escárnio: é mãe e inimiga; põe no coração do homem o amor à vida e, depois, golpeia a si mesma, matando-o; Eugênia é bela e coxa; mesmo os bons são roídos pelo cancro...
O quarto tema é a loucura, recorrente na obra machadiana. Quincas Borba, amigo de infância de Brás Cubas, traz às páginas do romance uma teoria dogmática que nada mais é do que uma caricatura da atmosfera empirista e científica da época. Seu Humanitismo (e seu "formidável rigor") provam que a inveja é uma virtude; a guerra, uma operação conveniente; a dor, uma ilusão; a violência, a miséria, a fome e as doenças, apenas equívocos do entendimento. E que o homem, portanto, pode ser feliz.
Realmente, nada escapa à chacota corrosiva de Machado nas “Memórias póstumas de Brás Cubas”, nem mesmo a fé que a mentalidade de seu tempo tinha no progresso da ciência e no triunfo da lógica. Nenhum consolo brota da leitura do livro, cujo pessimismo torna inalterável o cortejo dos séculos e dos homens.
É um livro só aparentemente engraçado; carrega uma tristeza sem remédio e, ao contrário do que diz, transmite a nossa miséria.

5 Comments:

At 5:55 PM, Blogger Samarone Lima said...

Opas, Flavia, hoje almocei com Suco e Gabriela, que seguem firmes contigo e comigo.
Olhe, saudades. Quando podemos tomar um café?
Samarone, seu criado mudo.

 
At 1:47 PM, Blogger Clareana Arôxa said...

Flávia, sou Clareana, não sei se lembras de mim, estudei com Felipe, no Mater. Há tempo acompanho o desenrolar dessa trança e me encanto, a cada volta. Minha paixão por Machado é grande e se renova sempre,redescubro as entrelinhas, as ironias e as idéias vangardistas. É fantástico.
E as tuas linhas me ajudaram bastante, ganhei mais um ponto-de-vista.
Espero que essa trança não tenha fim e nos inspire ainda mais.

Um beijo!

 
At 11:46 AM, Anonymous Anônimo said...

Flávia,
Está muito boa essa série sobre Machado, que continua "fora de série", aliás uma expressão já "fora de série"!
Seu vizinho e amigo,
Paulo Gustavo

 
At 1:25 AM, Blogger yuri assis said...

flávia, saudades tuas, das tuas aulas e da tua direção
beijocas, yuri

 
At 8:03 PM, Blogger Unknown said...

Sra. Flávia, meu nome é Susy e sou estudante do curso de Letras Português e Literaturas da UniverCidade. Adorei ler esses artigos sobre M.A. que estás colocando no seu blog são interessantes e de qualidade, assim como os outros também. Estou muito interessada no momento sobre os artigos de M.A., pois estou fazendo a minha monografia baseada no romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e o tema escolhido é sobre a "Estrutura do foco narrativo - do personagem central do romance", com o objetivo de analisar essa estrutura narrativa para verificar a dificuldade que o leitor iniciante apresenta ao ler o romance. (-Me fiz compreender?)
Gostaria de sua ajuda, se puder é claro!!
Esse é o meu email: star.susy@gmail.com

Desde já agradeço sua colaboração!

 

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