domingo, abril 06, 2008

Outras mudanças

Passei muitos dias sem saber direito sobre o que escrever. Primeiro, pensei em contar a história do jardineiro fiel; depois, um poema restou incompleto sobre a mesa... Mas a mudança parece ser o fato de que preciso falar.
Eu já tinha escrito uma crônica sobre mudanças. Aí ao lado, no arquivo de dezembro de 2006, pode-se lê-la ainda. Ter um blog traz dessas vantagens ótimas de se ter à mão, rapidamente, todos os textos que se escrevem. Só sabe disso quem passou muitos anos sem escrever ou escreveu e deixou num papel se acabando no fundo de uma gaveta, como eu. Já falei disso também, de minha querida irmã, diretora do Departamento de Digitação e Marketing deste blog, e de como ela, heroicamente, salvou alguns textos meus e, agora, insiste para que eu escreva com freqüência certa neste espaço. Confesso que a intermitência é minha, e ela fica muito contrariada.
É que essa mudança que agora está acontecendo tem algo diferente: estamos, as quatro irmãs, como é possível a cada uma, desmontando a casa de nosso pai.
Casas são como pessoas – têm espírito. Há quem não goste de casas usadas exatamente por isso: é como se as muitas vidas fossem deixando atrás de si um rastro de alegrias e, principalmente, de dores (que se tende mais a temer) e compondo, naquele espaço, um amálgama invisível poderoso.
Mas eu gosto de casas e também de observá-las, exatamente por isso: por suas paredes contarem a história de muita gente.
Tudo isso foi para dizer que a casa de meu pai tem um espírito inquebrantável e vencedor: muitas mulheres tentaram arrumá-la totalmente, mas, com a ajuda de meu pai, havia nela sempre algum recinto desarranjado.
Muita gente estranhava que chamássemos “a casa de papai” e não “de mamãe”, mas ela pertencia mais a papai. Daí sua força e seus vãos resistentes à arrumação, que refletem meu pai perfeitamente.
Morei em duas casas antes de me casar. Exatamente onze anos em cada uma. Na primeira, vivi minha infância. Era uma casa na Boa Vista, numa transversal da rua do Padre Inglês. Na segunda, um casarão antigo aqui em Casa Forte, vivi minha adolescência. Ainda me lembro da sensação estranha que senti quando me casei, meus pais e meus irmãos no terraço, e eu parti, apesar do medo.
Com a casa, meu pai envelheceu. E o mundo mudou tanto que a casa, imponente, já é impossível cuidar dela.
Sou uma metonímia: minha história exemplifica minha geração e suas pautas. Em vinte e cinco anos, tudo mudou tanto que ficou impossível manter essa casa funcionando.
Em primeiro lugar, as mulheres da nossa classe começaram a trabalhar. Aos poucos, fomos, primeiro, complementando o orçamento doméstico, depois, tomamos a tenência dele, e nossos maridos, confusos, partiram ou restam derrotados e atônitos ao nosso lado. Depois, as famílias diminuíram e não ficam mais em casa. Desenvolvemos uma indústria de lazer poderosa que, como uma sereia, nos seduz e impulsiona para fora. Também trabalhamos mais, até porque ganhamos menos, ou porque queremos mais... Não sei... O que sei é que as casas são menores, e la nave va... Por fim, há não só engarrafamentos, que ainda reduzem nosso tempo em casa, mas também violências, que valem prevenir – apartamentos, pelo menos, parecem menos vulneráveis.
Tirar os móveis dessa casa foi, para mim, visivelmente, fechar um mundo – é como se eu, concretamente, desmontasse um jeito de ser já impossível de manter. Lembrou-me as casas de engenho que, sem escravos, ficaram sem luz, sem água e sem esgoto. E desmoronaram. Assim a casa do meu pai: sem mulheres, fechou.
Como todos nós, também fiquei com algumas coisas da casa: reformei, limpei e arrumei nos quartos, na sala de meu apartamento... Misturadas e harmonizadas com as minhas, essas coisas deram a ele uma cara interessante.
Metaforicamente, nessas últimas semanas, fiz o trabalho de uma vida: saí da casa onde cresci; dividi com meus irmãos, sem conflitos, os bens de meu pai e de minha mãe; arrumei, limpei ou restaurei o que me coube ou escolhi, ao lado do que eu já tinha...
Como todas deveriam fazer, a minha casa agora conta a minha história.

10 Comments:

At 1:40 AM, Blogger Clarissa às claras said...

Adorei o texto sobre as mudanças, professora. Realmente, são necessárias para nós, para que nossa vida aconteça.
E também acho que nossa casa deve ter o nosso jeito, os nossos gostos.
Saudades de você e das suas aulas.
Beijão bem grande, Clarissa (prima de Sama).

 
At 2:15 PM, Anonymous Anônimo said...

Apesar de que a senhora fala bastante em sala(personalidade essa que mostra o quão mulher és), o seu blog é muito interessante, tem uma peculiaridade só sua. Essa maneira de falar, de escrever tão íntimo que nos faz sentir como se pertencessemos à sua vida o tempo todo.Por seres bastante expressiva,as vezes suas aulas parece sair do curso, mas estão infinitamente ligados a natureza humana.
As mudanças na vida humana sempre traz um quê de aventura, de saudade, as vezes de medo... mas se não fosse elas nunca poderíamos está à procura do aperfeiçoamento.

bjusssss

De: Tâmara Ribeiro

 
At 3:06 AM, Anonymous Anônimo said...

Sempre considero aquela casa o lugar onde poderei reaver minha infância. Ela envelhece, as paredes escurecem, o chão parece rachar, portas e armários não resistiram ao cupim... Quando a vi pela última vez parecia que ela tinha encolhido. Mas não. A verdade é que cresci e ela já não é tão grande como parecia. Mas a sua imponência continua a mesma. Fui embora da minha casa. Mas é como se ela male esperasse para que algum ciclo feche.
Vejo que essa sensação não é só minha. Identifiquei-me perfeitamente com seu texto. Parabéns por você conseguir sempre superar nossas expectativas.

 
At 9:27 PM, Blogger Juliana Germínio said...

Profª sempre visito o seu blog e sempre gosto muito do seus textos, mas esse relmente me chamou atenção. Mundanças foi um bom título, reflete o que é a vida, uma constante mudança. Sobre o texto, é impressionante como consigo ver a senhora lendo/lendo, como consigo ver a senhora nele... Foi como você disse em sala de aula, quando lemos Machado ou Alencar, mesmo sem saber o nome do autor, conseguimos identifica-lo. Parabéns pelo seu trabalho. Acho suas aulas muito divertidas e gotosas de assistir.
Um grande beijo.

Juliana G.

 
At 12:05 AM, Anonymous Anônimo said...

Flávia, queridíssima !!!
andei meio afastada do computador, mas muito lembrada de vocês!
Este texto é incrível e depois falo sobre ele.
Por ora, é para deixar um abraço bem grande prá vc e sua Diretora de Marketing e dizer de minha saudade !
abraço carinhoso
Rosário

 
At 6:43 PM, Anonymous Anônimo said...

Flávia, lindo o texto, você fala pra alma dos seus leitores, acredito que quem passar por eles se identifica.
Saudades com muita imoções

 
At 3:26 AM, Anonymous Anônimo said...

A partilha.

 
At 10:59 PM, Blogger Luane said...

Oi Flávia!!! Te encontrei no ônibus faz umas duas semanas mais ou menos, eu voltando da UFRPE e você saindo de uma aula para outra... foi um prazer imenso ter te encontrado. Ainda bem que você continua escrevendo para eu matar um pouquinho a saudade. Amo seus textos, algumas vezes morrro de rir aqui sozinha em frente ao computador... :) outras me emociono com suas palavras. Lembro bem quando eu assistia suas aulas e você levava seus textos como exemplos de aula e dizia... eu trago meus textos pra mostrar para vocês que eu sei que é difícil escrever porque eu escrevo... e... também porque eu não tenho público leitor... kkkkkk... sua estratégia de marketing deu certo kkkkkkkkkk...

Beijos...

 
At 8:48 AM, Anonymous Anônimo said...

Oi, Flávia!

Depois de muito tempo, cá estou eu, hein? Não tinha esquecido seu blog, é que estava sem internet em casa, só esperando os eficientes funcionários virem instalar, rs. Agora poderei vir sempre aqui, inclusive, comentei nos dois últimos posts (fora esse), ou seja, até o "Nossas Coisas", do dia Domingo, Março 09, 2008 (que foi onde eu tinha parado, inclusive). Adoooro seus posts, estava com saudades!! ^-^

Engraçado essa visão de casa, nunca parei pra pensar direito nisso, embora de relance tenha tido tais pensamentos antes. É que acontece parecido com a casa de meu avô de 93 anos... ele mora lá há mais ou menos uns 50, ou seja, meu pai e seus irmãos foram criados lá toda a vida. Agora, bem idoso, meu avô não quer abandonar a casa por nada, e o pior é que ela precisa ser abandonada (há um tempão, na verdade). Meus tios falam em pô-lo num apartamento, não só por ser mais seguro, mas por ter mais vizinhos para ele conversar - como se os vizinhos saíssem de suas "tocas"... só se for num prédio simples, mas talvez as companhias não sejam essas mil maravilhas, mas posso estar enganada, talvez nessa idade isso não importe muito, até pelo estado dele que não está com plena saúde mental. Mas ainda acredito que, independentemente das possíveis novas companhias, ele adoeceria se saísse de lá... O caso é que, mesmo inconscientemente, muitas pessoas sentem tais amores por suas casas, não é verdade?

"Depois, as famílias diminuíram e não ficam mais em casa. Desenvolvemos uma indústria de lazer poderosa que, como uma sereia, nos seduz e impulsiona para fora." - Isso é fato. Atualmente eu tenho ido à casa de meu pai para ajudar meu irmão de 12 anos nos estudos e dá-lo atenção, já que os pais trabalham. Ele foi criado assim, trancado, sem muitos amigos e diversão... é óbvio que uma criança numa idade dessa e, ainda por cima, que não brinca, não estude toda tarde por si só, como um adulto. Mas meu pai não entende e é muito severo com ele, chegando a tirar-lhe as poucas "diversões", como a televisão e o computador. Sempre, mesmo estando muito sentida com isso, fechei os olhos, já que achava que não poderia resolver o problema dele... mas, de uns meses pra cá, tive uma idéia, propus a meu pai de passar uns dias na semana com ele, ajudando-o nos estudos, e ele concordou. O resultado é que o menino tirou em torno de cinco à seis nos testes, ao invés dos costumeiros zeros. E ele diz: "gosto quando vc vem pra cá porque eu não fico só"... me dói por dentro isso tudo, até porque não brincamos, mas mesmo assim ele prefere estudar comigo à sua antiga solidão. Posso não ter resolvido realmente seu problema, mas com certeza o amenizei e me sinto muito bem com isso, até porque poderia ter sido comigo, se meu pai ainda estive aqui e minha mãe, de repente, resolvesse trabalhar.


Nossa, fugi demais do assunto, desculpinha, hehe.
Só mais uma coisa, desculpa a pergunta, mas... seu pai...?


Beijos, fica na paz!!
=*********

 
At 8:16 PM, Anonymous Anônimo said...

O que mais me admira nas casas é que, assim como em nossa memória, há sempre algo importante que esquecemos num canto escondido. São esses detalhes ocultos que talvez façam de uma casa o [i]nosso lar.[/i]

Obrigada.

 

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