Nosso século
Há pouco ganhei de presente um livro chamado “Cisnes selvagens”, da jornalista chinesa Jung Chang, e, devagar, pude desfrutar de uma descrição nua e crua da história da China ao longo do século XX. Essa leitura, ao lado do filme “Lanternas vermelhas”, do diretor chinês Zhang Yimou, a que tive o privilégio de assistir recentemente, por acaso, fizeram-me mergulhar longamente em mim mesma e no meu tempo. Sim, porque o livro ou o filme bons não são aqueles que a gente vê, mas os que ajudam a gente a se ver.
O “Cisnes selvagens” é um longo e ressentido relato de uma chinesa que, através da história de sua avó, de sua mãe e de sua própria, retrata o difícil século XX na China, numa perspectiva feminina. É, portanto, o livro uma espécie de reportagem biográfica que caiu fundo em mim também porque é obra de uma mulher. É claro que, geralmente, visões quebradas (como as de geração, gênero, raça, classe ou partido) não dão um resultado totalizante apropriado. Mas acompanhar o raciocínio da autora me fez mergulhar nesse século que me coube e pensar sobre o que parece dar a ele uma aura de benefícios incalculáveis para as mulheres.
Quando a autora veio para o Ocidente (ela mora na Inglaterra e, hoje, é casada com um inglês), impressionou-se com a igualdade que prevalecia nas relações sociais e pensou que não havia diferença entre as pessoas. É que ela vinha de uma sociedade em que os estratos sociais equivaliam a direitos diferentes e ser filho ou ser de determinada classe eram impedimentos ou facilidades irrevogáveis na China.
Sua vivência na Inglaterra, mais tarde, mostrou-lhe que as pessoas eram diferentes, mas havia uma questão fundamental: o mais forte não tinha o direito de maltratar o mais fraco, nos países ocidentais, como acontecia na China. Sua avó, por exemplo, era concubina de um homem poderoso e, quando ele morreu, sua primeira esposa tinha o direito de mandar matar todas as outras, mas, felizmente, essa não era a sua vontade, e sua avó foi poupada.
É doloroso demais ter acesso a um relato tão claro sobre o malogro do jeito de pensar que norteou tão fortemente a minha geração: é que a Revolução Comunista não quebrou, mas apenas se serviu dessa lógica, e ser filho de proprietários de terra ou de comunistas de primeira hora fez da China um lugar horrível para as pessoas que, como a autora, eram crianças ou adolescentes durante a Revolução Cultural e depois dela.
Uma idéia está por trás de tudo – a de que os fins justificam os meios. E os fins foram adiados e adiados, e os meios foram adquirindo a face tenebrosa de genocídio... A bela utopia da igualdade foi afundando, presa à da liberdade e à da fraternidade... E quedamos todos sem contrapartida... Havia dois jeitos de pensar no século XX – um achava que era o certo e que o outro estava errado e precisava ser substituído...
E num mundo de quase sete bilhões de habitantes só há dois jeitos de pensar? E na China comunista ainda prevalecia a lógica da hierarquia? E a igualdade significa igual acesso à matéria ou sacrifica, necessariamente, a liberdade? É possível “passar uma régua” e fazer todos pensarem uniformemente? E há diferença entre o perigo de uniformização para padrões de consumo e o de uniformização para posições políticas, filosóficas e existenciais? E pensar certo é pensar numa só direção? E seremos felizes quando todos pensarmos de um só jeito e quando tivermos o mesmo ponto de partida e o mesmo ponto de chegada? E porventura todos desejam a mesma coisa? E o ponto de partida, dentro da diversidade humana, pode ser igual? E o ponto de chegada existe? E, depois de descobrirmos que a resposta a essas perguntas é “não”, o que faremos de nós?
Por seu turno, o “Lanternas vermelhas” me impele a outro raciocínio: acompanhamos a chegada de uma quarta esposa ao palácio de um poderoso senhor e a sua queda subsequente pela lógica da hierarquia e da competição que, apesar de ser desfavorável a todas as mulheres da história, é a que predomina entre elas, pois não conseguem sair dela, já que ainda não estão prontas.
A espetacular revolução do século XX não foi a ruidosa Revolução Comunista, mas a silenciosa e desanunciada Revolução Feminina, que trouxe um novo papel para a mulher e, consequentemente, um novo homem, uma nova família, um novo filho, uma nova filha, um novo tempo... Pena que esse despertar, como todos, seja um processo penoso e custoso... Pena que o homem esteja impactado e, confuso, ainda não saiba ser partícipe dessa nova mulher que tão depressa apareceu diante de seus olhos... Ou não foi capaz de perder sua posição privilegiada, sem saber que há perdas necessárias... Pena que nem todas as mulheres conseguiram ainda acessar o roteiro da mudança, presas que permanecem dentro da lógica que as penaliza...
Como sempre, rumaremos em frente e negociaremos nossas vidas e nossos futuros como nos for possível, todos nós – homens e mulheres. Seres narrativos que somos, contaremos nossas histórias uns aos outros e seguiremos fazendo mudanças, assimilando perdas e aproveitando ganhos, desistindo de umas coisas e mantendo outras, tateando... O que não podemos de jeito nenhum é abrir mão uns dos outros e achar que ser feliz sozinho é suficiente.
O “Cisnes selvagens” é um longo e ressentido relato de uma chinesa que, através da história de sua avó, de sua mãe e de sua própria, retrata o difícil século XX na China, numa perspectiva feminina. É, portanto, o livro uma espécie de reportagem biográfica que caiu fundo em mim também porque é obra de uma mulher. É claro que, geralmente, visões quebradas (como as de geração, gênero, raça, classe ou partido) não dão um resultado totalizante apropriado. Mas acompanhar o raciocínio da autora me fez mergulhar nesse século que me coube e pensar sobre o que parece dar a ele uma aura de benefícios incalculáveis para as mulheres.
Quando a autora veio para o Ocidente (ela mora na Inglaterra e, hoje, é casada com um inglês), impressionou-se com a igualdade que prevalecia nas relações sociais e pensou que não havia diferença entre as pessoas. É que ela vinha de uma sociedade em que os estratos sociais equivaliam a direitos diferentes e ser filho ou ser de determinada classe eram impedimentos ou facilidades irrevogáveis na China.
Sua vivência na Inglaterra, mais tarde, mostrou-lhe que as pessoas eram diferentes, mas havia uma questão fundamental: o mais forte não tinha o direito de maltratar o mais fraco, nos países ocidentais, como acontecia na China. Sua avó, por exemplo, era concubina de um homem poderoso e, quando ele morreu, sua primeira esposa tinha o direito de mandar matar todas as outras, mas, felizmente, essa não era a sua vontade, e sua avó foi poupada.
É doloroso demais ter acesso a um relato tão claro sobre o malogro do jeito de pensar que norteou tão fortemente a minha geração: é que a Revolução Comunista não quebrou, mas apenas se serviu dessa lógica, e ser filho de proprietários de terra ou de comunistas de primeira hora fez da China um lugar horrível para as pessoas que, como a autora, eram crianças ou adolescentes durante a Revolução Cultural e depois dela.
Uma idéia está por trás de tudo – a de que os fins justificam os meios. E os fins foram adiados e adiados, e os meios foram adquirindo a face tenebrosa de genocídio... A bela utopia da igualdade foi afundando, presa à da liberdade e à da fraternidade... E quedamos todos sem contrapartida... Havia dois jeitos de pensar no século XX – um achava que era o certo e que o outro estava errado e precisava ser substituído...
E num mundo de quase sete bilhões de habitantes só há dois jeitos de pensar? E na China comunista ainda prevalecia a lógica da hierarquia? E a igualdade significa igual acesso à matéria ou sacrifica, necessariamente, a liberdade? É possível “passar uma régua” e fazer todos pensarem uniformemente? E há diferença entre o perigo de uniformização para padrões de consumo e o de uniformização para posições políticas, filosóficas e existenciais? E pensar certo é pensar numa só direção? E seremos felizes quando todos pensarmos de um só jeito e quando tivermos o mesmo ponto de partida e o mesmo ponto de chegada? E porventura todos desejam a mesma coisa? E o ponto de partida, dentro da diversidade humana, pode ser igual? E o ponto de chegada existe? E, depois de descobrirmos que a resposta a essas perguntas é “não”, o que faremos de nós?
Por seu turno, o “Lanternas vermelhas” me impele a outro raciocínio: acompanhamos a chegada de uma quarta esposa ao palácio de um poderoso senhor e a sua queda subsequente pela lógica da hierarquia e da competição que, apesar de ser desfavorável a todas as mulheres da história, é a que predomina entre elas, pois não conseguem sair dela, já que ainda não estão prontas.
A espetacular revolução do século XX não foi a ruidosa Revolução Comunista, mas a silenciosa e desanunciada Revolução Feminina, que trouxe um novo papel para a mulher e, consequentemente, um novo homem, uma nova família, um novo filho, uma nova filha, um novo tempo... Pena que esse despertar, como todos, seja um processo penoso e custoso... Pena que o homem esteja impactado e, confuso, ainda não saiba ser partícipe dessa nova mulher que tão depressa apareceu diante de seus olhos... Ou não foi capaz de perder sua posição privilegiada, sem saber que há perdas necessárias... Pena que nem todas as mulheres conseguiram ainda acessar o roteiro da mudança, presas que permanecem dentro da lógica que as penaliza...
Como sempre, rumaremos em frente e negociaremos nossas vidas e nossos futuros como nos for possível, todos nós – homens e mulheres. Seres narrativos que somos, contaremos nossas histórias uns aos outros e seguiremos fazendo mudanças, assimilando perdas e aproveitando ganhos, desistindo de umas coisas e mantendo outras, tateando... O que não podemos de jeito nenhum é abrir mão uns dos outros e achar que ser feliz sozinho é suficiente.
14 Comments:
Flavia,muito bom o texto.Você não perde a oportunidade de escrever suas opiniões sobre as mulheres,dos vários séculos,principalmente da transição do XX para o XXI.Penso que nós vivemos em um país "legal" apesar dos descompassos socias.Agente conviver bem,mesmo sendo inevitíveis as discriminações infelizmente, com outras religiões e ideologias políticas sem fazer guerras.As mulheres são importantes assim como os homens,lógico que há diferenças. Só que estas não podem ser aumentadas por imaginar que as mulheres são desprovidas das capacidades humanas, estas são únicas aos macho e às fêmeas, não é uma quetão de gênero e sim de acesso.Quebrar barreras é a tua cara,Flávia.As agumentações que você faz em sala de aula é de dar "pata no rosto" de muita gente.Suas posições são marcantes,fazem quebrar o vidro invisível existente em muitos.Vou roubar sua fase,quando trocarmos o verbo tolerar pelo AMAR teremos pessoas melhores.Quero muito que você seja democratizada,escreve livros, minina tu és boa nisso.Amo a Flávia que conheço e a que ainda vou descobrir.Até a próxima aula,bjs...
"...livros ou filmes bons não são aqueles que a gente vê, mas os que ajudam a gente a se ver...".
destaco sua frase, querida, porque é nisso que acredito. Prá variar, você analisa um livro junto com um filme e escreve coisas que tocam fundo na alma da gente! Coisas que "ajudam a gente a se ver".
Lembrei de uma pessoa que disse que a humanidade se divide em duas categorias: "aqueles que contam histórias " e "aqueles que os ouvem".
Cabe a vocês, "Contadores de Histórias", passar o que é bom para a frente, para que, quem vem depois de nós, saiba sobre suas origens, sobre o que a vida trançou para que eles possam estar alí, do jeito que estão! e só vão saber, se alguém fizer isto, como você está fazendo!
Graças a Deus que vocês existem !!!
Abraço carinhoso
Rosário
Querida
hoje visitei Samarone (blog, of course!) - ele me pegou de jeito, já viu?
E se eu respondi "não" a todas as perguntas? Será que isso significa que eu não aceitaria do mesmo modo as pessoas que respondem "sim"?
Se eu aceito um lado, sou obrigada a aceitar o outro, não é?
Então tenho que aceitar a ideia "burrilda" de hierarquia entre as pessoas?
aiaiaiaia
Muito bom.. como sempre!!
Ah, se você não ficar famosa com esse blog (e ele em si já é sufuciente) você fica pelo de Samarone! hehehehe ...
Beijos grand-moi! hehehe
Flávia, Tenho passado silenciosamente por teu blog, lendo e aprendendo sempre um pouco mais sobre a vida.
Cheguei aqui através do Estuário de Samarone. Um dia, entre um jogo e outro do Santinha, falamos de você. Não me contive e disse-lhe que tinha virado fã.
Aproveito para agradecer pelo link que você colocou apontando para o Estradar. Você também está lá, linkada, por assim dizer.
Estou sempre por aqui.
Um abraço,
Dimas Lins
www.estradar.com
Seja nosso século, seja chá de rolha ou solidão todos estes têm uma essência que qualquer principiante em redação gostaria de saber colocar nos textos.
Onde você consegue fabrica-la, aonde você vai para encontra-la ?
Falando dos livros, filmes vocês consegui tocar a todos e despertar o interesse para um mundo melhor, parabéns!!!
Parabéns!!! Lindo!!! Você realmente consegue tocar a todos com seus relatos.
Eterna professora! Digo eterna porque fui seu aluno de redação em 1988. Agora a redescubro nesse blog para continuar aprendendo. Sempre entendi, mesmo aos 16 anos, que estava diante de uma "formadora de gente", de alguém que se expande sem invadir, de alguém que ama e acredita. Sua presença, naquela fase da minha vida, foi encantadora. Por isso a rosa. Sim, pois foi uma rosa, timidamente ofertada, que representou minha gratidão e afeto. Tão simbólico, não é?
Como o dia 15 se aproxima e a ele convencionou-se chamar "dia dos professores", não trago uma rosa, mas apenas o respeito e a saudade. Você é MESTRE!
Que Deus te abençoe!
Este comentário foi removido pelo autor.
Flávia, muito bom o texto!
Beijos.
flavinha minha querida o texto está ótimo... vou até imprimí-lo para mostrar a um colega meu que é comunista para ver qual serão as respostas dele às suas perguntas... hehehehehe
Como disse a ilustre professora Rosário, graças a Deus que vocês, contadores de Histórias, existem...
Bons textos não são aqueles que a gente lê, mas os que ajudam a gente a se ler e definitivamente os seus textos e as suas aulas me ajudam a descobrir a mim ao mundo. Obrigado Flavinha por ser não só uma contadora de Histórias, mas também uma incitadora aos que um dia poderão vir a contar suas Histórias e repassar o legado deixado por você.
Ai, que texto lindo!! Quando ouço falar da China, eu já fico meio desconfiada, pois me contaram uma matéria, se não me engano do Fantástico (ou do Globo Repórter), faz tempo e eu, como vc, não assisto tv, por isso não a vi, infelizmente (aliás, não sei se tb chegaste a saber dessa matéria)... enfim, me contaram sobre ela, que falava da China... Cara, lá são feitas muitas coisas absurdas, monstruosas com bebês, principalmente!! Sem comentários... Desde então, criei uma espécie de ojeriza a esse país. Mas ele me lembra ao Japão (por que será? rsrs) e, agora que vc falou dessa diferença de tratamento entre eles de acordo com a classe social, eu me lembrei da cultura nipônica. É interessante como eles cultuam a humildade, o controle emocional (a "centralização do espírito"), para uma vida mais harmoniosa, né? Devem ter aprendido esse culto por conta desse contraponto cruel (afinal, ambas as culturas têm muito em comum, né?)... por que será que os ocidentais não aderiram ainda a esse estado de vida pacífico? Por que será que somos ainda tão rudes, reagindo com violência à violência etc? Estranho... Talvez seja por que nem toda ação possui a mesma reação... É, nós temos muito a aprender. :)
Muita paz... Beijos!!!
Muito bom texto ^^, esse texto quando voce o citou em sala de aula eu li varias vezes para refletir. Obrigado
Postar um comentário
<< Home