Minha Alexandria
Tenho recentemente pensado no que me fez, nos últimos anos, me afastar de mim mesma do jeito como o fiz. Anos a fio, afogada, minha perna presa à âncora de um navio afundado. Cada pensamento tinha uma razão e um porquê.
Mas também no que, devagar e sem plano, me trouxe de volta e aos livros, que são meu alimento mais recôndito e inenarrável.
Tenho resgatado de prateleiras sujas meus livros queridos e os estou limpando e relendo, três ou quatro ao mesmo tempo, me lembrando de mim mesma e do futuro que pensei.
Lawrence Durrel me devolveu sua Alexandria e, só de inveja, vou escrever sobre o Recife, o cenário da minha vida. Se, como diz o autor, “somos filhos da paisagem em que vivemos”, talvez comece a me reconstruir a partir da compreensão desta minha cidade – metade água, metade pedra.
O segredo do Recife é um dilema: é que na água se estende a pedra e, na pedra, a água, e essa natureza híbrida e anfíbia obriga dilemas sem solução. Essa indecisão (sua água é concha da pedra e sua pedra tem saudade da água) provoca suas enchentes, confronto infinito entre a pedra e o mar.
Seus mangues se vingam ou morrendo ou matando, duas mortes indecisas em zonas que se recompõem de surpresas e imprevistos.
Recife é assim... Seu nome vem daí: da pedra que acalma e enfurece o mar.
Sua semente é o porto que convida, que acolhe... Mas que é também partida. E na promessa pequena está contido o futuro: olhando a figura do porto, vejo a cidade estendida nos seus mapas desmantelados.
Vem do porto esta umidade clara na atmosfera; este suor salgado no corpo; este mofo nos armários; este cheiro acre nas narinas; esta sujeira sem remédio; estas mulheres austeras que esperam ou que desconfiam; estes homens que partem; estas mães sozinhas que miram o horizonte vazio; esta circulação errática de riquezas; esta dificuldade imprópria de conciliar desejo e amor; este excesso de pontes que não motivam encontros; esta falta de doçura que partiu com o açúcar.
A maior parte de nós veio por esse porto: senhores, escravos, ladrões; bodas, armas e credos; valores, costumes, sonhos... E o Recife - nem ibérico, nem islâmico, nem holandês, nem indígena, mas amálgama de tudo isso e mais coisas além - brotou, vendido, no porto por uma multidão de mascates.
Esta mania de opor-se? Nasceu das pancadas do mar contra as paredes das docas.
Este povo calado, que espera, contrito, o que chega do mar, também sabe partir, quando é necessário; também sabe voltar, mesmo quando é difícil. Coisa de quem nasce no porto.
Estas mulheres duras têm medo de dar-se de todo e de tudo perder: guardam um pouco de si, pois é obrigatório viver, apesar das partidas. Mas lavaram o chão do porto suas lágrimas constantes. Estes homens adúlteros são só meninos saudosos, vencidos pelo corpo. Precisam de muito perdão prevenido no armazém.
Este abismo absurdo entre as partes da cidade está no porto projetado: vieram navios negreiros e plantaram no cais o começo de tudo. Nasceu uma ferida sem cura na salmoura do ar.
A parte mais nova da cidade, que traiu esta herança do porto, segue inconsútil roteiro de descabida autonomia: palácios, shoppings, vitrines são apenas fachadas que, mentindo, disfarçam uma superficialidade desastrada. Porque uma árvore não trai sua semente impunemente.
Percebe-se, no entanto, processo lento de volta ao porto na cidade. Em silêncio, em longos domingos, o Recife caminha nas cercanias das docas, examina o mar, pisa no marco zero, estende feiras, oferendas, como a fazer um retorno para o útero que o concebeu. Terminará por conciliar as contradições que o formaram.
Esse porto, nossa bússola, é um erro magnífico que acertaremos a consertar.
Mas também no que, devagar e sem plano, me trouxe de volta e aos livros, que são meu alimento mais recôndito e inenarrável.
Tenho resgatado de prateleiras sujas meus livros queridos e os estou limpando e relendo, três ou quatro ao mesmo tempo, me lembrando de mim mesma e do futuro que pensei.
Lawrence Durrel me devolveu sua Alexandria e, só de inveja, vou escrever sobre o Recife, o cenário da minha vida. Se, como diz o autor, “somos filhos da paisagem em que vivemos”, talvez comece a me reconstruir a partir da compreensão desta minha cidade – metade água, metade pedra.
O segredo do Recife é um dilema: é que na água se estende a pedra e, na pedra, a água, e essa natureza híbrida e anfíbia obriga dilemas sem solução. Essa indecisão (sua água é concha da pedra e sua pedra tem saudade da água) provoca suas enchentes, confronto infinito entre a pedra e o mar.
Seus mangues se vingam ou morrendo ou matando, duas mortes indecisas em zonas que se recompõem de surpresas e imprevistos.
Recife é assim... Seu nome vem daí: da pedra que acalma e enfurece o mar.
Sua semente é o porto que convida, que acolhe... Mas que é também partida. E na promessa pequena está contido o futuro: olhando a figura do porto, vejo a cidade estendida nos seus mapas desmantelados.
Vem do porto esta umidade clara na atmosfera; este suor salgado no corpo; este mofo nos armários; este cheiro acre nas narinas; esta sujeira sem remédio; estas mulheres austeras que esperam ou que desconfiam; estes homens que partem; estas mães sozinhas que miram o horizonte vazio; esta circulação errática de riquezas; esta dificuldade imprópria de conciliar desejo e amor; este excesso de pontes que não motivam encontros; esta falta de doçura que partiu com o açúcar.
A maior parte de nós veio por esse porto: senhores, escravos, ladrões; bodas, armas e credos; valores, costumes, sonhos... E o Recife - nem ibérico, nem islâmico, nem holandês, nem indígena, mas amálgama de tudo isso e mais coisas além - brotou, vendido, no porto por uma multidão de mascates.
Esta mania de opor-se? Nasceu das pancadas do mar contra as paredes das docas.
Este povo calado, que espera, contrito, o que chega do mar, também sabe partir, quando é necessário; também sabe voltar, mesmo quando é difícil. Coisa de quem nasce no porto.
Estas mulheres duras têm medo de dar-se de todo e de tudo perder: guardam um pouco de si, pois é obrigatório viver, apesar das partidas. Mas lavaram o chão do porto suas lágrimas constantes. Estes homens adúlteros são só meninos saudosos, vencidos pelo corpo. Precisam de muito perdão prevenido no armazém.
Este abismo absurdo entre as partes da cidade está no porto projetado: vieram navios negreiros e plantaram no cais o começo de tudo. Nasceu uma ferida sem cura na salmoura do ar.
A parte mais nova da cidade, que traiu esta herança do porto, segue inconsútil roteiro de descabida autonomia: palácios, shoppings, vitrines são apenas fachadas que, mentindo, disfarçam uma superficialidade desastrada. Porque uma árvore não trai sua semente impunemente.
Percebe-se, no entanto, processo lento de volta ao porto na cidade. Em silêncio, em longos domingos, o Recife caminha nas cercanias das docas, examina o mar, pisa no marco zero, estende feiras, oferendas, como a fazer um retorno para o útero que o concebeu. Terminará por conciliar as contradições que o formaram.
Esse porto, nossa bússola, é um erro magnífico que acertaremos a consertar.
13 Comments:
Lindo! Você me emocionou como o Recefe o faz de janeiro a janeiro! Foi o Recife quem me ensinou a valorizar o que fica; foi ele quem me ensinou a não perder aquilo que se vai; foi ele quem me ensinou a acolher e aprender com aquilo que chega.
Neste ano, você atracou em meu porto. Mesmo que a ancora um dia teime em subir, o porto não mais será o mesmo, eu não mais serei o mesmo!
Nós somos como os portos. Sorte daqules que recebem alguém como você!
Desculpe o errinho: *RECIFE, esse é o nome da nossa cidade!
Ainda estou analisando o recife que é você...
Você também é pedra e água: indecisa, afogada, enfurecida...
A sua semente também é seu porto, e que porto lindo o seu! Ele é tão aberto que se constrói assim, através dos barcos que lá se ancoram. Ele se constrói através de sua própria construção, através de seus convites...
E temos que concordar que você também é um mapa todo desmantelado, todos somos.
Mas, suas pontes não são desencontradas, o desencontro provocado por elas é simplesmente o porquê da continuidade vida... no mais elas vão se encontrando todas, e ligando tudo...
O seu açúcar não foi embora, parece que quanto mais tiram, o doce fica mais desejado, e é a procura pelo mesmo que acaba adoçando de uma forma maravilhosa a vida.
E, só mais uma coisa ... se concertar quebra.
... E por falar em "Quarteto de Alexandria", você me fez ficar com vontade de lê-lo! ^^
(E qual não foi a minha emoção quando você me reconheceu... ^^)
Tópico da comunidade: "Adoro as obsevarções de Flávia"..
-> ANALISANDO: FLÁVIA
Comparar Vicente com Flávia não vem ao caso, até porque Flávia é uma pessoa incomparável. Ela consegue fazer uma análise crítica de todas as situações possíveis e imagináveis, talvez não haja nada em que ela ainda não tenha pensado, que nos interesse. Completamente verdadeira e radical em relação a alguns pensamentos, mas nada de radicalismo sem princípios. Não se trata de venera-la e sim reconhece-la como uma pessoa extraordinária, divertida e alegre. Assistir uma aula onde o assunto se desvia para o mais insano papo que nos faz rir durante um certo tempo é a melhor maneira de se aprender, além de poder participar de suas análises mais sensatas e interessantes sobre a literatura brasileira. Enfim, ser aluno de Flávia é ouvir ela contar a história do livro mais chato do mundo se deliciando e sem conseguir desviar a atenção dela..
Flávia você viu a homenagem que Fernandinho te fez no site dele?
segue o site: http://www.jornalaprimora.com.br/
:*
Este comentário foi removido pelo autor.
você é única, será bastante difícil sobreviver sem suas aulas, quando o curso acabar, nesse final de ano =(((
Já li a sexta vez!!A perfeição é utopia!E vc consegui tal façanha! Que texxxxxxxtoooooooooooo Phodástico Flávia!Lindoooooooooooooooo!!!!!!!!!Maravilhoso!!!!
Vc é um ser humano iluminado de e por Deus!! Pq pra escrever algo deste porte... no mínimo deve ter uma ligação direta com o cara lá de cima!! Perfeito!!! não me canso de ler...
Leu seus comentários, né? Todo ano é assim, vc mata os (ex)alunos de saudades, sua malvada! rsrs. Tem noção da saudade que nos deixa, né? Eu já fico pensando, sofrendo feito peru (de véspera) com o final do ano. Mas, com certeza, todos aqueles que passam por ti crescem muito (assim como eu)... És um choque em nossas vidas!! Um choque excelente. =)
Antigamente eu não gostava dessa cidade, achava aqui calorento etc etc, mas quando se vai crescendo, a gente vai vendo coisas as quais não via, né... a grandeza delas. E Recife é simplesmente lindo, o Recife Antigo então, nossa... O Paço Alfândega é meu refúgio, adoro aquele lugar. Embora, admito, não conheço a história do Recife tanto quanto gostaria, mas nunca é tarde para aprender, né? ;)
Bom, vou deixar aqui meu e-mail também pra vc se comunicar comigo quando puder, tá? É que tu és tímida, eu mais ainda (ou simplesmente não sei manejar a timidez assim como vc, por sinal, quero umas diquinhas, viu? rs) e no curso a concorrência pra falar contigo é altíssima!! rsrsrs. Então, aí vai o e-mail: ladyagami@yahoo.com.br
Beijos no coração, Flá!
=****************
Passei algum tempo sem poder ler seus textos pois estava viajando ainda estou tonta, com tanta beleza. Você descreve muito bem nosso Recife, que bom poder dispor dessa leitura tão linda!
Que Recife continue tendo o privilegio de contar com os belos textos de Flávia!
Bonjorno, fsuassuna.blogspot.com!
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Flávia:
Belo texto, onde a cidade se reinventa. Ela precisa de ser aconchegada pelos poetas.
bjs
Antonio Paulo Rezende
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