Planeta Babel
Um dos fantasmas do século XX parece ter ultrapassado a barreira do seu tempo e, incólume, assombra o século XXI: o malogro da tecnologia de comunicações.
Não que ela, em si, seja falhada. Ao contrário: o que conseguimos nessa área nem parecia possível há bem pouco tempo. Telefones, celulares, fax, chipes... e a ligação invisível entre eles e os satélites artificiais em sua eterna órbita são conquistas colossais e irrenunciáveis, não há dúvidas.
O problema é que tudo isso não nos aparelhou para nos comunicar bem uns com os outros. Nossas incompreensões restam vitoriosas, apesar da facilidade com que poderíamos nos comunicar, se fôssemos capazes. A queda do Muro de Berlim, o aperfeiçoamento e o conseqüente barateamento da comunicação a longa distância, a globalização e sua falácia de igualdade, a indústria de produção e distribuição de cultura, nada, nada mesmo conseguiu facilitar nossa comunicação.
Incompreensões triunfantes – esse é o tema do filme “Babel”, de Alejandro González-Inárritu.
O enredo se dá em quatro cantos do mundo – Estados Unidos, México, Marrocos e Japão. O nacionalismo, portanto, de raspão, é um dos temas do filme, pois constitui uma de nossas fábricas de incompreensões. Mas os autores da narrativa não se detêm nesse ponto, que, na verdade, é uma ferida do século XX, e eles querem empurrar a reflexão mais para frente.
Na história, há incompreensões de toda ordem: entre marido e mulher, entre pai e filho (ou filha), entre turistas (o que soa irônico, pois o turismo é a mais próspera indústria da globalização e parece ser um vetor de aproximação entre as pessoas), ou entre turistas e o povo do país visitado, entre governos, embaixadas, entre policiais e civis, entre tia e sobrinho, entre pessoas consigo mesmas... Ninguém sabe tudo de ninguém – há gritos engolidos, silêncios, dores mudas, medos inconfessados, culpas esmagadoras e desejos que não se sabe ou não se pode articular.
E nem uma proximidade inexplicável, como a de esposos de longas datas, que a cena da “aparadeira” tenta mostrar, impede essas incompreensões de ocorrerem, de modo dilacerante. Mágoas, ressentimentos, perdões adiados, diálogos partidos, agressões desnecessárias vão sedimentando camadas que nos endurecem e nos destroem e aos nossos relacionamentos tão frágeis e tão cheios de falhas.
A história também lembra o fato de que nossas incompreensões já existiam antes do “onze de setembro”, que inaugurou o terrorismo como causa de violências inomináveis: “o imponderável de Almeida”, como chamava Nelson Rodrigues, foi o detonador do incidente central do enredo, mas certos ruídos já apontavam um terrorista como o autor do disparo. E as notícias corriam o mundo, no Japão sabe-se notícia da mulher ferida, identifica-se o registro da arma, na fronteira entre o México e os Estados Unidos, um policial “acessa” o pai de crianças perdidas no deserto, todos os telefones e todos os televisores funcionam, os “walk-talks” também, o celular da moça japonesa, que é deficiente auditiva, toca acendendo belas luzes azuis...
Mas a incomunicação é monstruosa de grande: esposas se suicidam; filhos morrem e seus pais, em luto, não conseguem confessar sua dor intensa, de incompreendida e incompreensível; esposos fogem, sabe-se lá como ou para onde, quando é preciso que fiquem em casa para consolar; há fronteiras que são lugares explodidos de tensão; línguas diferentes; brutalidades; há quem procure no sexo ou nas drogas o afeto de que precisa; fotógrafos, jornalistas, aos ventos, anunciam que os culpados serão punidos, como se a punição fizesse a bala perdida e sem razão voltar à arma e “desacontecer” o trágico e inexplicável episódio; há amores confessados a quem não acredita; pancadas; solidões nas montanhas e nas metrópoles; valores, culturas e crenças diferentes demais...
Entretanto, o filme não pára aí; não cega o outro lado da mesma moeda: algumas inexplicáveis compreensões que acontecem, tímidas, mas que existem; não falar delas seria trair a nossa natureza complexa.
Em “flashes” rápidos, é como se o diretor olhasse tudo numa outra perspectiva (como o telefonema do americano para a mexicana, que a gente vê de duas formas): uma mulher marroquina acalma a americana com seu cachimbo; o guia não aceita o dinheiro, como quem diz que ajudou por nada; o policial japonês, que recusa sexo, pois compreende o que habitava a menina; a festa de casamento no México; a queixa contra a babá mexicana, que não foi prestada; o pai, que abraça a filha, sob as luzes incontáveis de Tóquio; o esposo, que batia e gritava fora, mas que protegia e beijava a esposa, quando entrava na cela em que ela jazia, ferida; as duas crianças brincando no vento...
A síntese da mensagem do filme é a japonesa surda-muda: há em nós dificuldades ou até impossibilidades de expressão, mas não podemos nos render a elas. Ela é a única que se oferta e, portanto, se comunica, apesar de tudo; que expõe suas razões escondidas; que se desnuda e que, ao fim, ganha o afeto necessário.
Não que ela, em si, seja falhada. Ao contrário: o que conseguimos nessa área nem parecia possível há bem pouco tempo. Telefones, celulares, fax, chipes... e a ligação invisível entre eles e os satélites artificiais em sua eterna órbita são conquistas colossais e irrenunciáveis, não há dúvidas.
O problema é que tudo isso não nos aparelhou para nos comunicar bem uns com os outros. Nossas incompreensões restam vitoriosas, apesar da facilidade com que poderíamos nos comunicar, se fôssemos capazes. A queda do Muro de Berlim, o aperfeiçoamento e o conseqüente barateamento da comunicação a longa distância, a globalização e sua falácia de igualdade, a indústria de produção e distribuição de cultura, nada, nada mesmo conseguiu facilitar nossa comunicação.
Incompreensões triunfantes – esse é o tema do filme “Babel”, de Alejandro González-Inárritu.
O enredo se dá em quatro cantos do mundo – Estados Unidos, México, Marrocos e Japão. O nacionalismo, portanto, de raspão, é um dos temas do filme, pois constitui uma de nossas fábricas de incompreensões. Mas os autores da narrativa não se detêm nesse ponto, que, na verdade, é uma ferida do século XX, e eles querem empurrar a reflexão mais para frente.
Na história, há incompreensões de toda ordem: entre marido e mulher, entre pai e filho (ou filha), entre turistas (o que soa irônico, pois o turismo é a mais próspera indústria da globalização e parece ser um vetor de aproximação entre as pessoas), ou entre turistas e o povo do país visitado, entre governos, embaixadas, entre policiais e civis, entre tia e sobrinho, entre pessoas consigo mesmas... Ninguém sabe tudo de ninguém – há gritos engolidos, silêncios, dores mudas, medos inconfessados, culpas esmagadoras e desejos que não se sabe ou não se pode articular.
E nem uma proximidade inexplicável, como a de esposos de longas datas, que a cena da “aparadeira” tenta mostrar, impede essas incompreensões de ocorrerem, de modo dilacerante. Mágoas, ressentimentos, perdões adiados, diálogos partidos, agressões desnecessárias vão sedimentando camadas que nos endurecem e nos destroem e aos nossos relacionamentos tão frágeis e tão cheios de falhas.
A história também lembra o fato de que nossas incompreensões já existiam antes do “onze de setembro”, que inaugurou o terrorismo como causa de violências inomináveis: “o imponderável de Almeida”, como chamava Nelson Rodrigues, foi o detonador do incidente central do enredo, mas certos ruídos já apontavam um terrorista como o autor do disparo. E as notícias corriam o mundo, no Japão sabe-se notícia da mulher ferida, identifica-se o registro da arma, na fronteira entre o México e os Estados Unidos, um policial “acessa” o pai de crianças perdidas no deserto, todos os telefones e todos os televisores funcionam, os “walk-talks” também, o celular da moça japonesa, que é deficiente auditiva, toca acendendo belas luzes azuis...
Mas a incomunicação é monstruosa de grande: esposas se suicidam; filhos morrem e seus pais, em luto, não conseguem confessar sua dor intensa, de incompreendida e incompreensível; esposos fogem, sabe-se lá como ou para onde, quando é preciso que fiquem em casa para consolar; há fronteiras que são lugares explodidos de tensão; línguas diferentes; brutalidades; há quem procure no sexo ou nas drogas o afeto de que precisa; fotógrafos, jornalistas, aos ventos, anunciam que os culpados serão punidos, como se a punição fizesse a bala perdida e sem razão voltar à arma e “desacontecer” o trágico e inexplicável episódio; há amores confessados a quem não acredita; pancadas; solidões nas montanhas e nas metrópoles; valores, culturas e crenças diferentes demais...
Entretanto, o filme não pára aí; não cega o outro lado da mesma moeda: algumas inexplicáveis compreensões que acontecem, tímidas, mas que existem; não falar delas seria trair a nossa natureza complexa.
Em “flashes” rápidos, é como se o diretor olhasse tudo numa outra perspectiva (como o telefonema do americano para a mexicana, que a gente vê de duas formas): uma mulher marroquina acalma a americana com seu cachimbo; o guia não aceita o dinheiro, como quem diz que ajudou por nada; o policial japonês, que recusa sexo, pois compreende o que habitava a menina; a festa de casamento no México; a queixa contra a babá mexicana, que não foi prestada; o pai, que abraça a filha, sob as luzes incontáveis de Tóquio; o esposo, que batia e gritava fora, mas que protegia e beijava a esposa, quando entrava na cela em que ela jazia, ferida; as duas crianças brincando no vento...
A síntese da mensagem do filme é a japonesa surda-muda: há em nós dificuldades ou até impossibilidades de expressão, mas não podemos nos render a elas. Ela é a única que se oferta e, portanto, se comunica, apesar de tudo; que expõe suas razões escondidas; que se desnuda e que, ao fim, ganha o afeto necessário.
11 Comments:
Tá ótimo Fráu!
E melhor ainda vai ficar quando eu assistir e poder comparar.
Sabe de uma coisa? Quando eu estava lendo, eu também pensei o seguinte: concordo com você que a tecnologia nos trouxe uma facilidade imensa de nos comunicarmos entre si. Mas as coisas importantes da vida a gente sempre vai fazer pessoalmente. Não existe satélite nesse mundo que consiga transportar um beijo e muito menos o que ele significa. Ninguém vai acaba um relacionamento pelo telefone vai? (uma pessoa normal) Alguém se despede de uma longa viagem via MSN ou Orkut? Dá pra dar um abraço pelo celular? Acho que não.
E tu vai me prometer que vai fazer algum comentário aqui sobre o filme "Borat" tu precisa assistir Fráu!
Bjos!
Se eu fosse um diretor de cinema, eu gostaria que Flavia Suassuna escrevesse sobre os meus filmes.
Claro que depois de uma critica dessas eu vou assistir !
Simplesmente perfeito....
Babel foi de longe um filme q merecia o Oscar de Melhor Filme...mas teve q se contentar com o de Melhor Trilha Sonora (que de longe foi a melhor mesmo.)
Adorei a crítica...
Muito observadora ^^
:*
Flávia ...
estou sem palavras ...
Vou assitir com certeza...
Flávia você e demais
Bjs
Lembrei muito de voce hj.
Fui a Livraria Cultura pois tava tendo um debate sobre crítica literaria. Foi interessantíssimo. De mais aprendizado não tive do que reclamar.
Só que só lembrei de te chamar quando tava lá, mil desculpas.
beijao.
Salpicada de Canela mais favorita..
Eu assisti!
A falta de comunicação da qual você fala foi uma das coisas que mais me chamou atenção, mas devo admitir que não foi a mensagem principal que eu consegui captar. (É ótimo quando isso acontece não acha? Um simples filme, não um filme simples, não é mesmo?).
A fotografia do filme é magnífica, e essa foi a primeira coisa que eu tentei analisar, as cenas pausadas por um longo tempo têm um peso diferente das que passam rápido demais. Elas te dão tempo para construir um pensamento, te deixam pensar e julgar o que está sendo visto. Talvez seja por isso que o filme não tenha ganhado tanta popularidade, as pessoas não vão ao cinema para criticar fatos, vão só “olhar” um filme.
O filme mostra culturas diferentes, modos de viver diferentes com crenças diferentes. (Babel), não só a linguagem, que vem de dentro da “alma do povo”, mas que representa o profundo, sendo uma camada superficial. (Quando digo superficial não tiro a enorme importância que a linguagem tem, só digo que ela é uma forma de representação de coisas mais profundas).
A falta de compreensão de que a dor de perder um filho, ou uma mulher, é igual nos quatro cantos do mundo. A alegria de um casamento e de estar com a família é igual nos quatro cantos do mundo. O desejo sexual é igual nos quatro cantos do mundo. A dificuldade de comunicação entre pais e filhos é igual nos quatro cantos do mundo. O medo de coisas novas na vida é igual nos quatro cantos do mundo. A procura por drogas como forma de consolo e amizade é igual nos quatro cantos do mundo. As lágrimas e os sorrisos, esses, também são iguais nos quatro cantos do mundo.
A linguagem passa superficialmente por tudo isso. A falta de comunicação representa falta de compreensão que representa Babel. E o objetivo do filme é mostrar que o mundo Babel em que vivemos, de Babel não tem nada.
De certa forma eu concordo com tudo que você disse, só queria acrescentar mais isso que foi o que senti ao ver o filme.
Beijos,
Sofia Sampaio
Obs. Eu poderia ficar horas conversando com você... é fascinante!
*Descobri um erro:
"De certa forma eu concordo com tudo que você disse, só queria acrescentar mais isso, que foi o que senti ao ver o filme."
Faltou a vírgula!
Flávia, um dia vc me deu a sugestão de fazer um blog e então eu fiz!
vc disse na aula a respeito da surda-muda...
eu concordo com o texto: o ser humano expandiu suas formas de conexões exteriores mas sem antes se preocupar em construir pontes interiores que levam ao imo do próximo.
a tecnologia evoluiu mas o íntimo humano não acompanhou o ritmo evolutivo das máquinas, das formas de comunicação, enfim.
não somos intimamente globalizados...
prof, li alguns de seus textos e poesias e os achei ótimos, maravilhosos - como era de se esperar de uma pessoa ótima como vc prof.
Profª Flá! Muito lindo!! Amei!
Adoro seu jeito de pensar sobre o mundo! Aprendi muito com você. Obrigada.
Acho que minhas redações não vão nada bem. Gostaria de saber revistas com bons argumentos para eu poder aumentar minhas informações e formar mais argumentos.
Beijos!!
Flávia, fiquei realmente muito feliz qdo descobri isso aqui. É você, ademais de ter um jeito especial de lidar com as palavras,tem uma sensibilidade impressinante para perceber as coisas que não vemos ou, talvez, vemos e não ousamos dizer, teimamos em evitar.
beijo
Lourdes Maria
Postar um comentário
<< Home