O vestibular é justo?
Alguns países democratizaram o ensino médio há cerca de 100 anos e, aos poucos, foram fazendo o mesmo com o ensino superior. Os Estados Unidos, o Canadá, a Coréia do Sul, por exemplo, levam perto de 80% de sua população à universidade.
É claro que, nesses países, o vestibular não é excludente; se o fosse, esses números não seriam alcançáveis. Exemplificando, nos Estados Unidos, o papel desse exame é localizar o estudante na universidade que melhor desenvolveria suas habilidades.
A sociedade americana trilhou nessa área um caminho que vale a pena estudar: não só construiu a melhor universidade do mundo (o critério é acadêmico – é a mais citada por outras universidades em trabalhos acadêmicos), mas também a que abriga um número espantoso de alunos, até de outros países, que lá aprendem/produzem conhecimento de ponta.
Não se quer com isso defender que esse modelo seja exportado e copiado em todos os outros países, independentemente de sua história e de sua cultura, mas é preciso constatar os efeitos positivos desse sistema para a sociedade global: há avanços científicos e tecnológicos de que se desfruta no mundo, forjados nos inquietos “campus” americanos.
Para entender o sistema, no entanto, é bom considerar sua pluralidade – nem todo estudante americano, por exemplo, freqüenta as chamadas Ivy Leagues, onde só estuda a elite intelectual americana, egressa de qualquer estrato social, identificada através de um exame nacional seriado, que acontece ao longo do ensino médio. Mas não é por isso que um conjunto grande de alunos não terá um lugar no ensino superior: há uma multiplicidade de tipos de universidades que formam de médicos a tratoristas, passando por pedreiros, encanadores, esteticistas, motoristas de táxi, nos freqüentadíssimos Community Colleges, onde, aliás, estão 50% dos universitários americanos.
Ensina-se de tudo na universidade americana – artes ou ciências –, principalmente se profissionaliza uma população grande que, através de um conhecimento também humanístico, é capacitada para se debruçar sobre problemas reais e os enfrentar ou resolver, pensando sobre eles.
É conhecida a dificuldade de brasileiros que, estudando nos Estados Unidos, são instados a resolver problemas de empresas americanas que enviam à universidade seus impasses reais para que sejam apresentadas soluções a fim de superá-los.
Bolsistas ou pagantes (de toda sorte – uns pagam muito, outros nem tanto, porque fazem trabalho voluntário, esportes, arranjam empregos variados, trabalham no “campus” em creches, no jardim, nas cantinas...), os americanos se orgulham dos números de sua universidade, um sistema complexo e grande, que conseguiu profissionalizar uma população eficiente e rica.
É claro que há outros valores noutras sociedades e culturas e é aí que entram as adaptações e a criatividade de cada povo. Mas o que se quer aqui é apenas considerar o papel do vestibular nesse sistema: localizar o aluno numa universidade para que seus talentos sejam desenvolvidos e aproveitados socialmente, porque a sociedade americana disponibiliza vagas para quase todos. E o vestibular segue as regras desse jogo.
Não é o que acontece na sociedade brasileira, sabidamente uma das mais excludentes do planeta. Apenas 10% da população completa cursos universitários cujos modelos monolíticos variam somente em relação à qualidade dos alunos que chegam: os cursos modelam grade curricular, carga horária, metodologia e didática igualmente, o que, ao longo da formação acadêmica, vai forjando dois grupos de profissionais – o mais capaz e o menos – e, mais tarde, uma multidão incontável de desempregados ou subempregados que mais recentemente resolveu virar a turma que faz rotineiramente concursos públicos, como se fosse possível a uma sociedade empregar toda a sua população na esfera pública sem a contrapartida da iniciativa privada responsável pela geração da riqueza.
Muito recentemente começam a “pipocar” universidades alternativas aqui em Pernambuco, como o Cefete ou o Senac, mas são iniciativas recém-nascidas nas quais a população ainda não acredita e que, num processo lento, terminarão por conquistar seu lugar no sistema.
No Brasil, portanto, o vestibular tem um papel diferente do que tem nos Estados Unidos: ele precisa cumprir um “dever de exclusão” porque a sociedade brasileira disponibiliza “vagas” para poucos – certamente uma sociedade excludente precisa de mecanismos de exclusão e nosso vestibular é apenas uma entre as muitas ferramentas que o sistema utiliza para descartar a maioria.
Nosso vestibular é freqüentemente acusado de injusto e excludente. E é. Mas ele é apenas a ponta do “iceberg” de nossa lógica política; é apenas a cachoeira de um rio que se estreita absurdamente ao longo do seu leito e que afoga gente demais nas suas águas.
O que precisamos enxergar no espelho desse rio é nossa face refletida. Com um revólver nas têmporas.
É difícil o percurso: democratizar a qualidade do ensino fundamental, quebrar a lógica da reprovação escolar, incluir a pluralidade com suas necessidades especiais, capacitar os professores para enfrentar desafios imprevisíveis, valorizá-los para que se sintam parte de um projeto social essencial, repensar o ensino médio a fim de prepará-lo para a diversidade que o alcançará, priorizar o essencial e descartar o desnecessário. Sobretudo encarar as disparidades e as contradições.
É difícil. Mas é inescapável e urgente.
O vestibular é injusto, até porque a sociedade brasileira é injusta. Democratizá-la é tarefa de todos e isso se faz num processo lento e penoso de embates de quereres e interesses de toda sorte.
De qualquer forma, há fraturas visíveis na arquitetura dessa lógica excludente dentro de cada brasileiro que começa a se inquietar buscando saídas e soluções. Mas é preciso mais empenho.
Que façamos do espetáculo de nossa desmedida violência impulso para buscar novos caminhos, orientados por outra bússola: a da maioria. E que nossa criatividade e nossa alegria costurem um tecido mais elástico cuja trança seja fruto do trabalho e da participação de todos nós.
É claro que, nesses países, o vestibular não é excludente; se o fosse, esses números não seriam alcançáveis. Exemplificando, nos Estados Unidos, o papel desse exame é localizar o estudante na universidade que melhor desenvolveria suas habilidades.
A sociedade americana trilhou nessa área um caminho que vale a pena estudar: não só construiu a melhor universidade do mundo (o critério é acadêmico – é a mais citada por outras universidades em trabalhos acadêmicos), mas também a que abriga um número espantoso de alunos, até de outros países, que lá aprendem/produzem conhecimento de ponta.
Não se quer com isso defender que esse modelo seja exportado e copiado em todos os outros países, independentemente de sua história e de sua cultura, mas é preciso constatar os efeitos positivos desse sistema para a sociedade global: há avanços científicos e tecnológicos de que se desfruta no mundo, forjados nos inquietos “campus” americanos.
Para entender o sistema, no entanto, é bom considerar sua pluralidade – nem todo estudante americano, por exemplo, freqüenta as chamadas Ivy Leagues, onde só estuda a elite intelectual americana, egressa de qualquer estrato social, identificada através de um exame nacional seriado, que acontece ao longo do ensino médio. Mas não é por isso que um conjunto grande de alunos não terá um lugar no ensino superior: há uma multiplicidade de tipos de universidades que formam de médicos a tratoristas, passando por pedreiros, encanadores, esteticistas, motoristas de táxi, nos freqüentadíssimos Community Colleges, onde, aliás, estão 50% dos universitários americanos.
Ensina-se de tudo na universidade americana – artes ou ciências –, principalmente se profissionaliza uma população grande que, através de um conhecimento também humanístico, é capacitada para se debruçar sobre problemas reais e os enfrentar ou resolver, pensando sobre eles.
É conhecida a dificuldade de brasileiros que, estudando nos Estados Unidos, são instados a resolver problemas de empresas americanas que enviam à universidade seus impasses reais para que sejam apresentadas soluções a fim de superá-los.
Bolsistas ou pagantes (de toda sorte – uns pagam muito, outros nem tanto, porque fazem trabalho voluntário, esportes, arranjam empregos variados, trabalham no “campus” em creches, no jardim, nas cantinas...), os americanos se orgulham dos números de sua universidade, um sistema complexo e grande, que conseguiu profissionalizar uma população eficiente e rica.
É claro que há outros valores noutras sociedades e culturas e é aí que entram as adaptações e a criatividade de cada povo. Mas o que se quer aqui é apenas considerar o papel do vestibular nesse sistema: localizar o aluno numa universidade para que seus talentos sejam desenvolvidos e aproveitados socialmente, porque a sociedade americana disponibiliza vagas para quase todos. E o vestibular segue as regras desse jogo.
Não é o que acontece na sociedade brasileira, sabidamente uma das mais excludentes do planeta. Apenas 10% da população completa cursos universitários cujos modelos monolíticos variam somente em relação à qualidade dos alunos que chegam: os cursos modelam grade curricular, carga horária, metodologia e didática igualmente, o que, ao longo da formação acadêmica, vai forjando dois grupos de profissionais – o mais capaz e o menos – e, mais tarde, uma multidão incontável de desempregados ou subempregados que mais recentemente resolveu virar a turma que faz rotineiramente concursos públicos, como se fosse possível a uma sociedade empregar toda a sua população na esfera pública sem a contrapartida da iniciativa privada responsável pela geração da riqueza.
Muito recentemente começam a “pipocar” universidades alternativas aqui em Pernambuco, como o Cefete ou o Senac, mas são iniciativas recém-nascidas nas quais a população ainda não acredita e que, num processo lento, terminarão por conquistar seu lugar no sistema.
No Brasil, portanto, o vestibular tem um papel diferente do que tem nos Estados Unidos: ele precisa cumprir um “dever de exclusão” porque a sociedade brasileira disponibiliza “vagas” para poucos – certamente uma sociedade excludente precisa de mecanismos de exclusão e nosso vestibular é apenas uma entre as muitas ferramentas que o sistema utiliza para descartar a maioria.
Nosso vestibular é freqüentemente acusado de injusto e excludente. E é. Mas ele é apenas a ponta do “iceberg” de nossa lógica política; é apenas a cachoeira de um rio que se estreita absurdamente ao longo do seu leito e que afoga gente demais nas suas águas.
O que precisamos enxergar no espelho desse rio é nossa face refletida. Com um revólver nas têmporas.
É difícil o percurso: democratizar a qualidade do ensino fundamental, quebrar a lógica da reprovação escolar, incluir a pluralidade com suas necessidades especiais, capacitar os professores para enfrentar desafios imprevisíveis, valorizá-los para que se sintam parte de um projeto social essencial, repensar o ensino médio a fim de prepará-lo para a diversidade que o alcançará, priorizar o essencial e descartar o desnecessário. Sobretudo encarar as disparidades e as contradições.
É difícil. Mas é inescapável e urgente.
O vestibular é injusto, até porque a sociedade brasileira é injusta. Democratizá-la é tarefa de todos e isso se faz num processo lento e penoso de embates de quereres e interesses de toda sorte.
De qualquer forma, há fraturas visíveis na arquitetura dessa lógica excludente dentro de cada brasileiro que começa a se inquietar buscando saídas e soluções. Mas é preciso mais empenho.
Que façamos do espetáculo de nossa desmedida violência impulso para buscar novos caminhos, orientados por outra bússola: a da maioria. E que nossa criatividade e nossa alegria costurem um tecido mais elástico cuja trança seja fruto do trabalho e da participação de todos nós.
Texto publicado em www.jornaldedebates.com.br
3 Comments:
Uma das falas que mais me impressionaram no documentário “Ônibus 174” foi a de um policial que revelava que a polícia faz o papel sujo de eliminar os elementos indesejáveis da sociedade brasileira, que finge indignação frente às ações policiais, mas, na verdade, fica aliviada, sem ter de sujar as mãos para se ver livre de tais elementos. Pois bem: o vestibular cumpre o papel de eliminar higienicamente uma grande massa de jovens (saudáveis, honestos) que, de outra maneira, não se poderia excluir da participação social. O enviesado sistema de cotas e favorecimentos para grupos historicamente inferiorizados ingressarem nas universidades brasileiras é bem a assunção da injustiça desse sistema de eliminação. A curto prazo, é o que se pode fazer, para quebrar um pouco da lógica excludente de seleção ao ensino superior e incluir parte de um conjunto enorme de jovens cujas perspectivas sempre foram praticamente nulas. Mas o desafio é maior, como você, Flávia, coloca: “democratizar a qualidade do ensino fundamental, quebrar a lógica da reprovação escolar, incluir a pluralidade com suas necessidades especiais, capacitar os professores para enfrentar desafios imprevisíveis, valorizá-los para que se sintam parte de um projeto social essencial, repensar o ensino médio a fim de prepará-lo para a diversidade que o alcançará, priorizar o essencial e descartar o desnecessário. Sobretudo encarar as disparidades e as contradições”. Coletivamente, fugimos desse desafio ao longo da história, mas não dá mais para escamotear: a sociedade brasileira é tão fraturada que “indenizar” o grupo excluído significa para a outra camada (a beneficiada) assumir “custos” e “perdas”. Temos de empreender esforços para equilibrar as “contas” e chegarmos a um quadro social mais justo.
com certeza, é imprescindível que haja a boa política de universidades..e cooncordo coom vc, pois desejo não falta..luta tbm não..a muiot q desejam o egresso de um curso..memso sem saber para onde vão depois..e eu , nem sei..to indo...
mas como diz a musica de Los Hermanos..
todo carnaval tem seu fim...
espero q ainda vejamos...
Excelente texto!
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