Jogo de trevas - romance
DO TESTAMENTO DE BRANCA
I
Acho o fato de estar aqui sentada, tentando relembrar e homenagear tempos outros, imensamente belo. Sou uma amante da beleza e não é outro o motivo que me leva a refazer ordenadamente todos os acontecimentos que, graças a Deus, vieram a me completar.
À Beleza, a essa sei que não chegarei nunca, mas o simples fato de descrever acontecimentos e fazer conhecidas grandes pessoas, indubitavelmente, me aproximou dela.
Sinto que sou uma grande mulher e além disso possuidora de grandes sentimentos e paixões. Sim, sou. E graças a isso posso narrar tudo o que se passou por aqueles tempos. Só uma grande mulher pode ser bastante para notar quando uma outra grande pessoa se lhe depara. Sinto-me, como já disse, grande, e só esse sentimento para comigo mesma fez com que eu ousasse falar de outras gentes que, aos meus olhos, deveriam ser deixadas em paz. Sim, porque merece paz quem lutou toda a vida para a ter. Sendo grande e velha, uma mulher pode, assim acho eu, ousar fazer o que farei: ressurreições. Só uma mulher como eu pode fazer isso, porque, com sua grandeza e através dela, somente vê coisas grandes e grandezas em quem nem sabe que as tem.
É, pois, meu propósito não só ficar remoendo coisas várias do passado, mas também fazer uma homenagem especial àquele tempo, àquela terra e àquelas pessoas, pela vida e pelos sentimentos humanos por que me fizeram passar.
Nasci numa pequena cidade do pobre e circunspecto estado de Pernambuco, e foi lá também que nasceu o meu filho – o Antônio. Eu, ao contrário do Antônio, permaneci morando nela durante quase toda a minha vida e, se Deus quiser, nela morrerei. Acho inclusive justo o meu pedido: quero achar a morte no lugar mesmo onde encontrei a vida. De temperamento apaixonado, eu até o momento da volta a minha terra me entediava. Mas foi bom para comigo o meu destino: ele me reservava além de grandes atos, grandes amores. Mas também grandes tristezas. Fui, no entanto, previamente feita para agüentar grandes cargas e até ficou meio notória a minha coragem, metade fria; metade apaixonada.
Jamais esquecerei as minhas impressões primeiras: as que me assaltaram assim que cheguei a minha terra, depois de ter permanecido ausente dela durante vinte anos, passados num sórdido e odiento colégio, interna, na Capital do Estado.
O tempo tornava tudo terrível. Aquele vento seco, juntamente com o aspecto medonho da cidade vazia davam um ar de mistério a todo o ambiente que me assustou. O ar envolvia tudo e, tenho certeza, transformava as pessoas em não sei que espécie de monstros.
Assustada que estava e com tal embrulhada e confusa sensação de frio e medo, intuitivamente, notei que a minha surpresa em chegar sem avisar não devia ter acontecido e que eu voltava exatamente quando não devia; quando algo estranho acontecia.
Mas outro sentimento veio a se entranhar no meu coração: o de que devia permanecer naquela cidade. Senti que seria ali que toda a minha sensibilidade deveria ser desenvolvida e onde o que eu vinha chamando de meu “estro” deveria ser concretizado. Aquela paisagem, estranha a mim durante tanto tempo, fazia com que todo o meu corpo jovem fervilhasse. E também todo o mundo se descortinou aos meus olhos, com suas belezas.
Por trás de cada uma daquelas janelas fechadas eu podia até ver rostos sertanejos de feições bem marcadas e, decididamente, não podia pensar naquele mundo povoado por pessoas sem uma força espiritual grande até o seu último extremo.
Pela primeira vez senti que tinha sob os pés um chão que me pertencia tanto por direito como, dali por diante, por sentimento também: foi quando senti que o amava e – felicidade! – descobrira que também eu tinha uma terra a amar e pela qual lutar – palavra que até aquele momento não saberia explicar, mas que, depois de pousar sobre aquele solo o meu corpo, vinha ao meu espírito destituída de qualquer dificuldade de ser compreendida –. E aquele chão, apesar de árido, pedregoso e seco, era de uma beleza chocante e sinistra.
Depois de vários anos de uma apatia total de sentimentos, eis que senti um total alumbramento por tudo aquilo e me apercebi de que não tivera fazia tempo uma tão profunda sensação de Beleza.
Mas aqueles silêncios me assustavam... E essa lembrança de um grande e insuportável medo é a que ainda permanece na minha memória quando tento me lembrar de todas as impressões que me assaltaram naqueles mágicos momentos.
E eu descobri, então, algo de muito importante: tinha uma terra e pertencia a ela. E, graças a Deus, essa descoberta aparecia a mim quando ainda não era tarde demais.
Estamos hoje a 30 de julho de 1979 e me encontro com 70 anos. E, prometo, tentarei, o mais claramente possível, registrar toda a minha vida, mais como uma obrigação para comigo mesma do que por qualquer outra coisa.
E há também o Antônio, o meu filho querido, a quem quero deixar minha vida – já que nada há além disso que eu lhe possa ceder como herança. Antônio é um anjo bom, desses que só em sonhos ainda existem, perdido e – como dói em mim admitir – carente de afetos que jamais lhe foram dados. Nunca foi ele criança, estado que lhe foi por todos negado sempre, e só hoje, na velhice, posso compreender que não há maior crime que negar a uma criança o direito de o ser. Quem sabe não sejam essas as razões de ser o meu Antônio um homem tão angustiado, sempre à procura de alguma coisa que lhe é incógnita? De qualquer maneira, estou certa (e talvez esteja aí também a fé da mãe que muito ama) de que ele encontrará o seu destino; e que este lhe seja bom, é o que a Deus imploro todos os dias.
Quero ainda explicar por que só agora – tão tarde – me resolvi a contar essas histórias: é que me parece ser característica minha só tudo fazer à última hora e, se assumi para comigo mesma a responsabilidade de deixar ao meu filho, escrita, a minha vida, já é hora de começar – antes que ela termine sem ter sido cumprida a tarefa a que eu mesma me propus. Gostaria, assim, de angariar forças dos céus e renovar desse jeito as minhas próprias tão combalidas e enfraquecidas pela velhice e pela próxima morte que de mãos dadas dançam as suas danças danadas à minha volta e teimam em querer me levar a brincar o jogo do Fim em suas companhias.
Pedirei ajuda, quando necessário, ao meu diário ou quando me for impossível, por qualquer razão, lembrar de certas emoções ou acontecidos – Antônio que me perdoe, se isso o aborrecer.
Do meu diário, acrescento, o que não me servir será queimado.
I
Acho o fato de estar aqui sentada, tentando relembrar e homenagear tempos outros, imensamente belo. Sou uma amante da beleza e não é outro o motivo que me leva a refazer ordenadamente todos os acontecimentos que, graças a Deus, vieram a me completar.
À Beleza, a essa sei que não chegarei nunca, mas o simples fato de descrever acontecimentos e fazer conhecidas grandes pessoas, indubitavelmente, me aproximou dela.
Sinto que sou uma grande mulher e além disso possuidora de grandes sentimentos e paixões. Sim, sou. E graças a isso posso narrar tudo o que se passou por aqueles tempos. Só uma grande mulher pode ser bastante para notar quando uma outra grande pessoa se lhe depara. Sinto-me, como já disse, grande, e só esse sentimento para comigo mesma fez com que eu ousasse falar de outras gentes que, aos meus olhos, deveriam ser deixadas em paz. Sim, porque merece paz quem lutou toda a vida para a ter. Sendo grande e velha, uma mulher pode, assim acho eu, ousar fazer o que farei: ressurreições. Só uma mulher como eu pode fazer isso, porque, com sua grandeza e através dela, somente vê coisas grandes e grandezas em quem nem sabe que as tem.
É, pois, meu propósito não só ficar remoendo coisas várias do passado, mas também fazer uma homenagem especial àquele tempo, àquela terra e àquelas pessoas, pela vida e pelos sentimentos humanos por que me fizeram passar.
Nasci numa pequena cidade do pobre e circunspecto estado de Pernambuco, e foi lá também que nasceu o meu filho – o Antônio. Eu, ao contrário do Antônio, permaneci morando nela durante quase toda a minha vida e, se Deus quiser, nela morrerei. Acho inclusive justo o meu pedido: quero achar a morte no lugar mesmo onde encontrei a vida. De temperamento apaixonado, eu até o momento da volta a minha terra me entediava. Mas foi bom para comigo o meu destino: ele me reservava além de grandes atos, grandes amores. Mas também grandes tristezas. Fui, no entanto, previamente feita para agüentar grandes cargas e até ficou meio notória a minha coragem, metade fria; metade apaixonada.
Jamais esquecerei as minhas impressões primeiras: as que me assaltaram assim que cheguei a minha terra, depois de ter permanecido ausente dela durante vinte anos, passados num sórdido e odiento colégio, interna, na Capital do Estado.
O tempo tornava tudo terrível. Aquele vento seco, juntamente com o aspecto medonho da cidade vazia davam um ar de mistério a todo o ambiente que me assustou. O ar envolvia tudo e, tenho certeza, transformava as pessoas em não sei que espécie de monstros.
Assustada que estava e com tal embrulhada e confusa sensação de frio e medo, intuitivamente, notei que a minha surpresa em chegar sem avisar não devia ter acontecido e que eu voltava exatamente quando não devia; quando algo estranho acontecia.
Mas outro sentimento veio a se entranhar no meu coração: o de que devia permanecer naquela cidade. Senti que seria ali que toda a minha sensibilidade deveria ser desenvolvida e onde o que eu vinha chamando de meu “estro” deveria ser concretizado. Aquela paisagem, estranha a mim durante tanto tempo, fazia com que todo o meu corpo jovem fervilhasse. E também todo o mundo se descortinou aos meus olhos, com suas belezas.
Por trás de cada uma daquelas janelas fechadas eu podia até ver rostos sertanejos de feições bem marcadas e, decididamente, não podia pensar naquele mundo povoado por pessoas sem uma força espiritual grande até o seu último extremo.
Pela primeira vez senti que tinha sob os pés um chão que me pertencia tanto por direito como, dali por diante, por sentimento também: foi quando senti que o amava e – felicidade! – descobrira que também eu tinha uma terra a amar e pela qual lutar – palavra que até aquele momento não saberia explicar, mas que, depois de pousar sobre aquele solo o meu corpo, vinha ao meu espírito destituída de qualquer dificuldade de ser compreendida –. E aquele chão, apesar de árido, pedregoso e seco, era de uma beleza chocante e sinistra.
Depois de vários anos de uma apatia total de sentimentos, eis que senti um total alumbramento por tudo aquilo e me apercebi de que não tivera fazia tempo uma tão profunda sensação de Beleza.
Mas aqueles silêncios me assustavam... E essa lembrança de um grande e insuportável medo é a que ainda permanece na minha memória quando tento me lembrar de todas as impressões que me assaltaram naqueles mágicos momentos.
E eu descobri, então, algo de muito importante: tinha uma terra e pertencia a ela. E, graças a Deus, essa descoberta aparecia a mim quando ainda não era tarde demais.
Estamos hoje a 30 de julho de 1979 e me encontro com 70 anos. E, prometo, tentarei, o mais claramente possível, registrar toda a minha vida, mais como uma obrigação para comigo mesma do que por qualquer outra coisa.
E há também o Antônio, o meu filho querido, a quem quero deixar minha vida – já que nada há além disso que eu lhe possa ceder como herança. Antônio é um anjo bom, desses que só em sonhos ainda existem, perdido e – como dói em mim admitir – carente de afetos que jamais lhe foram dados. Nunca foi ele criança, estado que lhe foi por todos negado sempre, e só hoje, na velhice, posso compreender que não há maior crime que negar a uma criança o direito de o ser. Quem sabe não sejam essas as razões de ser o meu Antônio um homem tão angustiado, sempre à procura de alguma coisa que lhe é incógnita? De qualquer maneira, estou certa (e talvez esteja aí também a fé da mãe que muito ama) de que ele encontrará o seu destino; e que este lhe seja bom, é o que a Deus imploro todos os dias.
Quero ainda explicar por que só agora – tão tarde – me resolvi a contar essas histórias: é que me parece ser característica minha só tudo fazer à última hora e, se assumi para comigo mesma a responsabilidade de deixar ao meu filho, escrita, a minha vida, já é hora de começar – antes que ela termine sem ter sido cumprida a tarefa a que eu mesma me propus. Gostaria, assim, de angariar forças dos céus e renovar desse jeito as minhas próprias tão combalidas e enfraquecidas pela velhice e pela próxima morte que de mãos dadas dançam as suas danças danadas à minha volta e teimam em querer me levar a brincar o jogo do Fim em suas companhias.
Pedirei ajuda, quando necessário, ao meu diário ou quando me for impossível, por qualquer razão, lembrar de certas emoções ou acontecidos – Antônio que me perdoe, se isso o aborrecer.
Do meu diário, acrescento, o que não me servir será queimado.
5 Comments:
Agradeço a Deus por ele ter te posto junto de mim esse ano.
Peça fundamental em minha vida esses dias.
Mestra, amiga e Conselheira.
Amo muito
beijao
sebe que de uma coisa podemos acreditar, é q a beleza como foi dita...é surpreendente..e a coragem e inteligência q essa grande mulher (q já posso dizer) é indescritível...é em pessoas assim como Flávia, devemos seguir...coisas esse ano aprendi..tudo a seu tempo..valores..e rosots na sala de aula...naum é um depoimento de orkut..mas vale uma ressalva..da terra , ela é bem kerida..e com certeza, do céu será recompensada..seus desejos...realizados ou naum são ouvidos... adorei ese ano vc ter entrado em minha vida profff..mas entaum, e quantos d nós não passamos..mas sei q cada um é cada um..bjo...cada vírgula em seu lugar!
percebi, que ao longo do blog...tenho um certo ar parecido com o teu...há difrenças de idade, de sexo..e ainda é visto por im..mas me senti...as vezes tomei p mim..algumas palavras..
É quase impossível, num rápido comentário, traçar o perfil desta complexa novela com que estréia Flávia Suassuna. Apresentado numa estrutura fragmentária (diarimo, focalização múltipla etc.), o texto narrativo cumpre o que de antemão nos promete o título da obra: a realização de um jogo cujas etapas em branco devem ser preenchidas pela própria imaginação do leitor. Que jogo? Arriscaríamos dizer que o do Destino no que este tem de mais trágico e essencial: sua instalação no Tempo, misterioso fluir cuja caracterização lúdica Baudelaire sugeriu ao afirmá-lo "um ávido jogador" a inexoravelmente nos vencer. No entanto, é talvez para desafiar o Tempo que a principal personagem da novela – uma mulher de setenta anos resolve registrar fatos decisivos de sua vida, prometendo ao leitor que fará "ressurreições" e homenageará tempos pretéritos. Mas não se trata, como parece à primeira vista, de uma mera autobiografia. De modo algum. A memória de Branca é auxiliada por outros depoimentos e é com estes que se cria a requintada atmosfera de mistério que percorre a novela. Daí podermos encontrar no texto uma cativante diversidade temática. Sem dúvida, ali estão o Medo, o Amor, a Morte e a Loucura. Tais ingredientes conformam um painel humano no qual se desencadeiam forças de alta voltagem psicológica. Seguindo uma tendência muito atual da Literatura, "Jogo de Trevas" se impõe precisamente por seus intervalos de silêncio, deixando ao leitor que estabeleça suas próprias conexões e obrigando-o a uma leitura mais atenta. Tais intervalos são tantos que ficamos mesmo com a impressão de que a novela é o embrião de um romance (neo)simbolista, do tipo a que Virgínia Woolf se referia quando escreveu que tal gênero narrativo terminaria por assumir algumas funções da Poesia. Daí não nos ser estranho que alguns personagens de Flávia se utilizem da forma poética para melhor expressarem suas angústias e seus devaneios. Também não é por mero acaso que após a leitura do "Jogo de Trevas" sentimos plenamente realizada a constatação de Rilke (este outro simbolista) ao nos garantir que "A vida é maior do que o destino". Trevas exemplares, estréia luminosa.
Recife, 27 de agosto de 1980
PAULO GUSTAVO DE OLIVEIRA
Corrigindo...
É quase impossível, num rápido comentário de jornal, traçar o perfil desta complexa novela com que estréia Flávia Suassuna. Apresentado numa estrutura fragmentária (diarismo, focalização múltipla etc.), o texto narrativo cumpre o que de antemão nos promete o título da obra: a realização de um jogo cujas etapas em branco devem ser preenchidas pela própria imaginação do leitor. Que jogo? Arriscaríamos dizer que o do Destino no que este tem de mais trágico e essencial: sua instalação no Tempo, misterioso fluir cuja caracterização lúdica Baudelaire sugeriu ao afirmá-lo "um ávido jogador" a inexoravelmente nos vencer. No entanto, é talvez para desafiar o Tempo que a principal personagem da novela – uma mulher de setenta anos resolve registrar fatos decisivos de sua vida, prometendo ao leitor que fará "ressurreições" e homenageará tempos pretéritos. Mas não se trata, como parece à primeira vista, de uma mera autobiografia. De modo algum. A memória de Branca é auxiliada por outros depoimentos e é com estes que se cria a requintada atmosfera de mistério que percorre a novela. Daí podermos encontrar no texto uma cativante diversidade temática. Sem dúvida, ali estão o Medo, o Amor, a Morte e a Loucura. Tais ingredientes conformam um painel humano no qual se desencadeiam forças de alta voltagem psicológica. Seguindo uma tendência muito atual da Literatura, "Jogo de Trevas" se impõe precisamente por seus intervalos de silêncio, deixando ao leitor que estabeleça suas próprias conexões e obrigando-o a uma leitura mais atenta. Tais intervalos são tantos que ficamos mesmo com a impressão de que a novela é o embrião de um romance (neo)simbolista, do tipo a que Virgínia Woolf se referia quando escreveu que tal gênero narrativo terminaria por assumir algumas funções da Poesia. Daí não nos ser estranho que alguns personagens de Flávia se utilizem da forma poética para melhor expressarem suas angústias e seus devaneios. Também não é por mero acaso que após a leitura do "Jogo de Trevas" sentimos plenamente realizada a constatação de Rilke (este outro simbolista) ao nos garantir que "A vida é maior do que o destino". Trevas exemplares, estréia luminosa.
Recife, 27 de agosto de 1980
PAULO GUSTAVO DE OLIVEIRA
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