sábado, setembro 02, 2006

Jogo de trevas

DAS CENAS OU UM OBSERVADOR MISTERIOSO E INEXISTENTE

I

Vinha talvez pensando em como terminar aquele quadro. Trazia ele a figura inacabada de um belo homem, ao qual faltavam os olhos e alguns detalhes finais que o deixariam talvez diferente da maioria. O nariz era afilado, e o queixo quadrado sobressaía diante dessa agudeza. A testa, recuada, dava já um aspecto de beleza àquele rosto estranho. Parou, então, estarrecida diante de um rapaz cujas feições completavam aquelas que durante tanto tempo a perseguiam. Parou e, pegando o carvão, sem qualquer vergonha, desenhou sobre o seu esboço, completando-o, os bonitos e sugestivos olhos daquele estranho homem. Amedrontada mas cheia de felicidade, foi retratando... e assim que foram acabados esses olhos, o rosto, já não lhe faltava mais nada. Só que havia nesses olhos copiados uma expressão mais nova e tão harmoniosa com o resto, que até o verdadeiro parecia agora falso.
E o homem aproximou-se.
– Vês? Acabo de te retratar – disse ela. Não esse teu rosto cansado – continuou – mas o teu verdadeiro rosto. Pesquei a tua alma.
– Desculpe-me. Esse não é o meu rosto. Jamais tive esses olhos.
– Espera... Por que tentas fugir? Essa paz aqui estampada nesse desenho é o que procuras?
– Deixa-me, mulher, em paz com meus demônios – disse e quase correu a fugir.
Acho que aos poucos torno-me artista – pensou ela. Eu pude sentir a alma desse homem que nunca vi. Apenas com a minha arte.
Deus, será isso bom ou mau sinal?