sábado, setembro 02, 2006

Jogo de trevas

DO TESTAMENTO DE BRANCA

IV

A imagem daquele homem lá dependurado me serve como símbolo apavorante das coisas que estavam acontecendo, e é exatamente ela que me vem à memória quando tento me lembrar de alguma passagem ou sentimento relativos àquela época.
Num só dia aconteceram muitas coisas: primeiro, a emoção da chegada; segundo, o medo do desconhecido; terceiro, a noite pavorosa e o bilhete de Ivã; e depois o cadáver à minha janela. Tive enorme medo de tudo e nunca nada me foi claramente explicado. Gostaria de poder contar ao meu filho essa minha vida confusa mas ela até a mim o é, de modo que, se parece nebulosa e desconexa essa minha história, é porque cá dentro de mim ela mesma tão confundida está que não a posso clarear a ninguém.
Alguns acontecimentos aqui e acolá pescados da minha tão baralhada memória podem, no entanto, ser descritos; e são eles que vou daqui por diante narrar, mais por simples doação de minha pessoa e vida ao filho querido que me é longe do que como explicação – a mim mesma ou a outros – do que aconteceu. E seria mentirosa se dissesse tudo bem claramente e se afirmasse convictamente que toda a minha vida pode ser narrada como quem conta uma história de trancoso.
Mas algumas vezes eu penso na possibilidade de todas as vidas serem assim ensombradas, porque, se agora na velhice, as coisas vão ficando menos cheias de medo e mais simples, quando a vida ainda tem força dentro da gente, nos sufoca o entendimento, e fico a pensar, então, se não é essa a sua função: a de continuamente nos forçar a usar vendas e a cegar os caminhos. É aí que ela fica cheia de voltas e obscura – é quando essa mascarada, tentando nos destruir, se transforma em sombras incompreensíveis e misteriosas.