Jogo de trevas
DOS PRÓLOGOS DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO
II
Impressões ou o Monstro dos Arrecifes
Só foram coincidentes nossas impressões – as minhas e as de minha mãe – em um só ponto: é quando elas são de medo.
A grande cidade assustou-me. Não foi, no entanto, o seu vazio que me causou espanto mas a sua total falta de espaço: as pessoas batiam umas nas outras e passavam sem se aperceberem de que o que cruzava com elas não eram animais quaisquer, mas seres humanos que mereciam algo mais do que simples tropeções.
Jamais pudera imaginar, na minha ignorância inocente de habitante dos interiores, tal inferno! Passavam por mim tantos aleijados que eu obtivera certeza de que fora o Espírito maldoso dessa grande cidade que lhes roubara os membros, fazendo pouco de suas pequenezas diante da sua maldade. Como se fosse desnecessária qualquer utilidade que pudéssemos possuir; como se o Espírito nos roubasse tudo o que nos fosse caro; e fosse capaz de nos destruir. Mal sabia eu naquele instante pavoroso o quanto havia de verdade naquelas primeiras impressões que me apareceram e quão cedo minhas suposições e medos me vieram a ser provados.
Ali, perdido naquela pobre e imunda grande cidade, a força do meu sangue no tocante à Arte foi, pela primeira vez, anunciada a mim. Ávido de apreender tudo para depois transcrever, sofria mais e mais me mortificava: as caras de caboclos deslocados dos seus lugares de origem me maltratavam; as vestes e sapatos e bolsas e tudo o que queria esconder a pobreza daquele povo maltratado somente mostravam mais claramente o quanto era miserável aquela gente; as feições marcadas por grandes fomes ou corpos marcados por grandes bebedeiras davam dó; o contraste da grande riqueza arquitetônica com a grande pobreza das ruas deu-me náusea; e a imundície aterrorizou-me por completo.
Depois vim a saber que a tropical e pobre cidade dos recifes nada mais era que o principal refúgio da pobreza de todo o Nordeste do Brasil e que ela ali se instalara para não mais sair, com unhas e dentes. Foi só quando pude entender por que perambulava pelas ruas tão grande quantidade de prostitutas: elas procuravam riquezas (coitadas!) num lugar onde só se oferecia miséria.
Jamais terei tão afiada a minha pena para ser capaz de descrever, como gostaria, essa cidade que me transformou e venceu. E aqui, sentado, eu me amedronto só de pensar que espécie de vingança ela me armaria se fosse capaz de adivinhar que lhe abro o espírito dessa maneira.
II
Impressões ou o Monstro dos Arrecifes
Só foram coincidentes nossas impressões – as minhas e as de minha mãe – em um só ponto: é quando elas são de medo.
A grande cidade assustou-me. Não foi, no entanto, o seu vazio que me causou espanto mas a sua total falta de espaço: as pessoas batiam umas nas outras e passavam sem se aperceberem de que o que cruzava com elas não eram animais quaisquer, mas seres humanos que mereciam algo mais do que simples tropeções.
Jamais pudera imaginar, na minha ignorância inocente de habitante dos interiores, tal inferno! Passavam por mim tantos aleijados que eu obtivera certeza de que fora o Espírito maldoso dessa grande cidade que lhes roubara os membros, fazendo pouco de suas pequenezas diante da sua maldade. Como se fosse desnecessária qualquer utilidade que pudéssemos possuir; como se o Espírito nos roubasse tudo o que nos fosse caro; e fosse capaz de nos destruir. Mal sabia eu naquele instante pavoroso o quanto havia de verdade naquelas primeiras impressões que me apareceram e quão cedo minhas suposições e medos me vieram a ser provados.
Ali, perdido naquela pobre e imunda grande cidade, a força do meu sangue no tocante à Arte foi, pela primeira vez, anunciada a mim. Ávido de apreender tudo para depois transcrever, sofria mais e mais me mortificava: as caras de caboclos deslocados dos seus lugares de origem me maltratavam; as vestes e sapatos e bolsas e tudo o que queria esconder a pobreza daquele povo maltratado somente mostravam mais claramente o quanto era miserável aquela gente; as feições marcadas por grandes fomes ou corpos marcados por grandes bebedeiras davam dó; o contraste da grande riqueza arquitetônica com a grande pobreza das ruas deu-me náusea; e a imundície aterrorizou-me por completo.
Depois vim a saber que a tropical e pobre cidade dos recifes nada mais era que o principal refúgio da pobreza de todo o Nordeste do Brasil e que ela ali se instalara para não mais sair, com unhas e dentes. Foi só quando pude entender por que perambulava pelas ruas tão grande quantidade de prostitutas: elas procuravam riquezas (coitadas!) num lugar onde só se oferecia miséria.
Jamais terei tão afiada a minha pena para ser capaz de descrever, como gostaria, essa cidade que me transformou e venceu. E aqui, sentado, eu me amedronto só de pensar que espécie de vingança ela me armaria se fosse capaz de adivinhar que lhe abro o espírito dessa maneira.
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