domingo, outubro 01, 2006

"O cão sem plumas", de João Cabral de Melo Neto

"O cão sem plumas", de João Cabral de Melo Neto, tematiza o rio Capibaribe que corta a cidade do Recife. É um longo e hermético poema que denuncia não só o estado do rio, mas também a situação de exclusão da população ribeirinha, à margem de tudo.
Para começar a entendê-lo, é preciso saber que seu autor pertence ao Modernismo, estilo de época que se deu, no caso da poesia de que tratamos, na quebra dos elementos da tradição literária do passado - o verso e sua estruturação sintática, a estrofe, a rima e a lógica, ou seja, o autor em questão mostra clara influência do Surrealismo, movimento modernista do começo do século XX que se construiu, na literatura, sobre lapsos e lacunas sintáticas e sobre a quebra da estruturação lógica do pensamento e de sua tradução lingüística equivalente. Advêm daí as comparações algo estranhas que são feitas ao longo do poema e a falta de estruturação linear na sintaxe frasal.
Além disso, as escolhas vocabulares do autor remetem a um objetivismo incontestável que quebra o subjetivismo presente na lírica de tradição romântica. Desse modo, pode-se dizer que João Cabral também objetiva destruir a troca sentimental e emocional que há entre o eu-poético e o leitor na tradição ocidental.
O poema se constrói em duas instâncias geográficas: a da geografia física, que reflete sobre as questões regionais propriamente ditas (a descrição do rio, sua desembocadura, seus mangues e o processo de seu desaguamento no mar), e a da geografia humana, que nos faz pensar não só sobre as condições sociais e econômicas do homem que habita suas margens, mas também sobre o que faz de um homem um homem, ou seja, o poema parte de uma reflexão sobre a região e se completa com outra de caráter mais universal.
Há ainda, para a compreensão do poema, de se relevar uma oposição: a que o autor criou entre as coisas como deveriam ser e as coisas como na realidade se apresentam. Assim, ao falar da água do rio, ele sonha com a água perfeita (a água do copo, a água da chuva azul, a água que se abre aos peixes, a água que teria os enfeites ou as plumas das plantas), ao mesmo tempo em que sofre ao constatar que ela não existe no rio Capibaribe, cuja água tem lodo, ferrugem e lama. Também, ao se referir ao habitante das margens do rio, o autor reflete sobre o que um homem devia ser (sonho e pluma) e se revolta diante da dificuldade de achar, naquele ser, um homem.
Outro ponto que se pode ressaltar é a pertinente análise do meio ambiente, sem isolá-lo das questões humanas - rio e homem são entidades indissociáveis no poema, tão confundidos que não é possível saber onde um começa e outro termina; a pobreza e a negritude do rio é causa da pobreza do homem negro de lama.
Por fim, há um claro posicionamento do poeta no sentido de chamar o leitor à reflexão sobre o fato de que o rio será aquilo que o homem fizer dele, como a ave que conquista o seu vôo, e sobre a sociedade, que transforma o rio num não-rio, o mar num não-mar, o mangue num não-mangue e o homem num não-homem.

9 Comments:

At 11:07 AM, Blogger cometaurbano said...

Blog gostoso de ler. Vi a indicação em um dos coments do blog do Sama. (www.estruariope.blogspot.com). Se puder, visite tb a minha página de crônicas sobre o cotidiano (www.aquiaa.blogspot.com). Um abraço, Paulo

 
At 12:54 AM, Anonymous Anônimo said...

você está mais e mais que famosa !!! Sama lhe recomendando ! que, alías, ele não faz mais de que a obrigação, ao reconhecer um talento que se equipara ou supera o dele !!!
bjs
muita saudade

 
At 12:56 AM, Anonymous Anônimo said...

A D O R O E S T E P O E M A !!!
E VC COMENTA ELE, COMO QUEM FAZ OUTRO POEMA ...
Voce existe mesmo?
abraço carinhoso
Rosário (vc sabe quem)

 
At 2:52 PM, Blogger Unknown said...

olá, parbéns pelo comentário!!!

 
At 2:56 PM, Blogger Unknown said...

Amiga professora gostaria de travar mais contato contigo. Sou mestrando em Lestras - URI- Frederico Wesphalen, por favor me amnde seu email.
Meu nome é ADILSON BARBOSA,

conferir curriculum Lattes
adilsonlindo@yahoo.com.br
adierval@hotmail.com

 
At 9:39 PM, Anonymous Anônimo said...

Interessante a análise feita por você a respeito do poema O Cão sem Plumas. Me ajudará bastante pois esta obra é umas das leituras obrigatórias para quem vai prestar o vestibular da Universidade Estadual do Maranhão - (UEMA 2009).


Fico grato


Atenciosamente: Leonardo

 
At 10:44 PM, Blogger Gadelha Pinheiro said...

Gostei muito do seu comentário, pois me ajudou a entender melhor a poesia, principalmente quando você fala da metáfora, da comparação entre o cão sem plumas e o Rio Capiberibe, e conclui dizendo que o rio será aquilo que o homem fizer dele, "um rio num não-rio; um mar num não-mar", como o mundo amanhã será o que fizermos hoje com ele. Quem já mergulhou num rio de águas verdes cristalinas, da cor das esmeraldas,ou num mar verde-azul transparente, sabe o que o poeta diz quando vê hoje o Rio Tietê e a Baía da Guanabara. Paisagens antes tão belas foram transformadas em cãos sujos, imundos, sem plumas e pestilentos dos quais todos fogem e até o odor repugna.

 
At 10:47 PM, Anonymous Anônimo said...

Posso dizer mais alguma coisa? É que o seu comentário me deu a chave para decifrar a mensagem da poesia. Associando-se o rio ao cachorro, como você sugere, o poeta fala de dois momentos: no primeiro, o rio, como o cão, é o melhor amigo do homem, a ponto de se confundirem, de não poderem viver separados, tal a forma como se ajudam e se completam. No outro momento, o rio perde sua pujança, se transforma agora num cão sujo, imundo, sarnento, sem pêlo, sem plumas, sem ninguém que queira ser seu dono.

 
At 5:31 PM, Blogger Gianelli said...

Ótima análise. Parabéns!

 

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