Chá de rolha - 4
O perdão
Ando pensando muito sobre a palavra “perdão”. Eu tenho disso: de vez em quando visito, durante meses, uma palavra, sentindo devagar seu gosto, seus segredos, seus escondidos...
Esse comportamento me faz aprender muito. Começo pelo dicionário, que me apresenta a palavra congelada, aquietada na sua previsibilidade e conferível no seu estatuto vítreo.
Mas nem sempre minha conclusão final combina com a informação obtida: o que vou juntando, aos poucos, detona uma explosão de sensações e novos significados que muda, para sempre, minha ligação com a palavra. E ela se torna minha de uma forma nova e diferente.
Vou descobrindo devagar que a palavra “perdão” não está junto do verbo “esquecer”, até porque esquecer é perder. Riobaldo, no “Grande sertão: veredas”, de João Guimarães Rosa, afirma que, para ele, esquecer é ruim como perder dinheiro e eu tendo a achar essa frase muito boa.
Somos o que somos (esse colosso de erros e acertos) porque inventamos duas palavras só nossas – “passado” e “futuro”.
Registrando primeiro na tradição oral e depois na escrita nossas experiências pessoais e coletivas e expressando-as uns aos outros através das gerações, criamos uma ontologia diferenciada e única no universo que pudemos conhecer até aqui.
E a contínua lembrança do passado, seguida de uma reflexão dolorosa, somada à aceitação ou à confrontação de sua “gramática” foi o tear que teceu os fios desse nosso modo de ser tão diferenciado.
Portanto, se esquecer fosse o caminho, provavelmente estaríamos vagando numa planície africana, como os bichos, na sua trajetória também mágica, mas igual sempre. Nosso progresso e tudo o que ele tem de bom e ruim é resultado dessa nossa habilidade de “guardar” o passado, para estudá-lo, sabê-lo e modificá-lo, para construir um futuro melhor.
Assim, “passado” e “futuro” são palavras fundamentais; são trilhos sobre os quais corre o trem de nossa história rara, agônica e, às vezes, bonita.
No ano passado, um aluno me perguntou, impaciente, para que servia história da literatura, a matéria que leciono. Eu fiquei surpresa mas não me abati e respondi, perguntando:
– Você fez sexo na semana passada?
– Sim, ele respondeu.
– Muitas vezes ou poucas vezes? – insisti.
– Muitas vezes, ele me disse.
– Sua namorada ficou grávida? – continuei.
– Não, ele retrucou.
– Pois é, meu filho, seqüenciei, não serviu para nada, não foi? Somos assim, gostamos de coisas que não servem para nada, temos muitas sedes e muitas fomes... de justiça, de beleza, de amar, de ser amados, de pertencer, de fraternidade, de liberdade...
E sigo arengando com eles o ano todo, a vida toda, que ser professora é como ser gente – tem coisas divertidas e dolorosas, misturadas.
Pois bem: perdoar não é esquecer, é compreender. E o passado tem tudo a ver com isso, pois somos seres com passado, inescapavelmente. Não podemos esquecer o passado, mas devemos enfrentá-lo de toda forma: a ciência, a arte, a história... tudo são ferramentas para forjá-lo e vencê-lo.
Acho que é por isso que tenho uma queda por professores de história – seres preciosos que guardam como ostras pérolas escondidas e que nos ajudam a não sair inventando a roda ou repetindo erros.
Mas o segredo é que um dos “links” de compreender é construir: é preciso sonhar e, aos poucos, realizar sonhos, conceber-se noutra direção, libertar-se das dores e buscar caminhos, que o passado não é gaiola, mas chave.
5 Comments:
Sou mãe de uma aluna sua, ana Lígia.Que sempre se refere a você com carinho e admiração. Ao ler seu escrito sobre o passado e a relação entre perdão e esquecer(do qual gostei),percebi algumas afinidades com as suas idéias sobre a importância do Passado da História e do Perdão.Senti vontade de lhe lembrar da força dos aspectos inconscientes, que são atemporais ativando motivos nem sempre percebidos pelo sujeito e tão presentes, independente do tempo real de sua ocorrência.
Concordo também que perdoar não é esquecer é muito mais se entregar à magica de que outras lembranças sao mais importantes do que a mágoa ou a lembrança da mágoa.E talvez como a palavra lembre,perdoar faz bem por ser um exercício de doação.
Querida Flávia
como sempre, você é brilhante em sua falas ... adorei a história de que "o passado não é gaiola, mas chave" - concordo plenamente !
Mas o mundo é mesmo uma Trança: não é que Deolinda Granja foi muito amiga de minha irmã Carmita, quando ambas eram solteiras? e agora, você é professora da filha dela e ela escreve prá você, que é minha amiga? isto também não é a trança da vida?
bjs
Passado e futuro, nao esqueças..mas nao deixe de curtir o teu presente, hoje, agora.
perdoe, ame e viva.
é assim a vida.
nao sinta raiva, nao sinta ódio.. sinta uma nostalgia daquilo que passou e vivenciou, pense na perfeicao do tudo que durou... sinta apenas a beleza do hoje, e a inquietude de viver o amanha. Sejas feliz, minha querida!
Voce sabe da admiração que sinto por voce.
Te devo milhoes pelo aprendizado, principalmente o da vida. De como és Forte sinto uma inveja gostosa, sinto uma saudade de nossas conversas depois do almoço. Das tuas aulas que nao queria deixar de assistir nenhuma.
Forte sempre!
Fica com Deus.
a Salpicade de Canela ou a sardentinha mais querida.
Flávia.
Diz a ele que literatura, poesia, servem como ferramentas de compreensão da realidade que nos cerca. E para nos elevar do chão batido do dia a dia. Ninguem chega em casa e coloca no som um discruso politico para ouvir. Mas coloca uma musica, um filme. Nossas almas se alimentam "da mesma matéria que são feitos os sonhos".
Professora eu discordo com a senhora. Nao acho que perdoar seja compreender. Muitas vezes perdoamos mesmo sem compreender certas atitudes do outro.Acho que perdoar talvez seja lembrar sem sentir rancor. beeijo!
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