Coisas de ano novo
Ganhei de presente de Natal a oportunidade de assistir ao “Código desconhecido”, de Michael Haneke. Além de tudo, esse filme fez-me lembrar outro, chamado “A cidade está tranqüila”, de Robert Guédiguian, que aluguei para rever. São duas histórias sobre o engodo da globalização, as quais denunciam a violência decorrente do choque entre diferentes na França do começo do século XXI.
O “Código desconhecido” apresenta vários enredos que se entrelaçam de raspão. Uma jovem atriz, que segue sua rotina profissional de ensaios, estréias, dublagens e, ao mesmo tempo, relaciona-se com um fotógrafo de guerra, que só raramente está em Paris e cujo pai tem uma fazenda de que cuida, com a ajuda do filho mais novo. Há entre eles uma claustrofóbica e invisível cobrança – o pai não consegue dar conta da tarefa só, e os filhos, como todos os filhos, acham que têm de dar conta de si mesmos e de seus próprios desejos, já que todos nós somos frutos dos desejos de nossos pais, mas também o somos de nós mesmos. A forte imagem do assassinato das vacas traduz o que para o pai significa tudo isso: o primeiro filho, longe, e dando para o mais novo o exemplo de partir; a fazenda, uma impossibilidade; ele, atônito, diante das surpresas da vida. Outro personagem é um rapaz negro, filho de um africano que fez migração de retorno e sobrinho de um taxista. Tem uma irmã surda e, talvez por causa dela, seja professor de percussão numa escola especial. “Amadou” é o seu nome e ele é uma espécie de centro nevrálgico da trama: ele consegue comunicar-se com a surda, defende a imigrante romena na rua, encontra-se com uma moça branca... Ele tem a senha, o código, algo que ninguém tem: a tolerância, o compromisso com o próximo. Ele transita bem entre dois mundos, a África longínqua, que esconde seu pai, e a França impenetrável, a não ser pela arte. A atriz, numa das seqüências desarrumadas do filme, ensaia uma cena em que um torturador estuda sua aflição, por estar enclausurada num quarto de que não pode sair. Ela seria a França, presa de sua própria história, das conseqüências do neocolonialismo? Das três palavras sobre as quais forjou sua identidade – liberdade, fraternidade, igualdade? Nada é fácil, quando é humano: um rapaz branco (francês?) a constrange num metrô, cospe nela, um senhor interfere. Ela diz “merci”.
É um filme que fala da grave encruzilhada que a globalização armou: o inevitável contato entre diferentes culturas, religiões, raças e a falta da contrapartida necessária para isso – o amor, que tudo facilitaria e de que só somos capazes raramente. Não só culturas estrangeiras – a atriz está confusa com o casal que espanca a filha, questiona-se e ao noivo quanto ao que deve fazer e sofre muito com a conseqüência da violência e de sua própria paralisação – a morte da criança...
Ainda não sabemos o código que criaremos para este novo século... Só sabemos que não será aquele dos séculos XV e XVI, quando uma cultura se arvorava do direito de “desaparecer” outra, em nome da civilização.
Noutra perspectiva, o filme “A cidade está tranqüila” também pensa a globalização e seus efeitos. Seu cenário é a cidade operária de Marselha, cujo porto e estivadores estão no centro da trama. Os portuários, em assembléia, representam a morte da ordem sindical e socialista; um taxista, traidor(?), personaliza a busca de novos caminhos depois da falência geral. Em várias situações do enredo, ele é a porta de saída.
Essa história tem como personagem central uma mulher sofrida que trabalha encaixotando peixes gelados, tem uma filha drogada, uma neta recém-nascida e um marido desempregado. Seu casamento desmorona, sua filha morre de overdose e o taxista resolve ficar com ela. Entendemos depois sua relação anterior com o traficante que consegue a droga para sua filha e que se suicida.
Reformas urbanísticas, assassinatos, injustiças, tensões racistas, desemprego, tudo está presente naquela cidade que, “de cima, parece bem”, diz o africano islâmico negro, da varanda de sua namorada burguesa branca e francesa, que conheceu na prisão, onde ela era professora de música. Aliás, além dos detentos, ela tinha alunos excepcionais, cuja sala de aula é um dos poucos espaços felizes dessa história.
Há uma semelhança nítida entre os dois filmes: a música, proposta como uma espécie de código universal, é ponto de encontro da diversidade humana que, no horizonte, vencerá a homogeneidade. Os tambores dos surdos, de todas as cores e de todas as classes, conduzidos por um francês afro-descendente, híbrido de dois mundos tão diferentes, ou o piano, dedilhado na periferia de Marselha por um genial menino da Geórgia, são os elementos agregadores, são a coluna vertebral de um tempo novo, com um novo código que contará como conseguimos suplantar nossos impasses e como nossa babel foi derrotada pelo amor.
O “Código desconhecido” apresenta vários enredos que se entrelaçam de raspão. Uma jovem atriz, que segue sua rotina profissional de ensaios, estréias, dublagens e, ao mesmo tempo, relaciona-se com um fotógrafo de guerra, que só raramente está em Paris e cujo pai tem uma fazenda de que cuida, com a ajuda do filho mais novo. Há entre eles uma claustrofóbica e invisível cobrança – o pai não consegue dar conta da tarefa só, e os filhos, como todos os filhos, acham que têm de dar conta de si mesmos e de seus próprios desejos, já que todos nós somos frutos dos desejos de nossos pais, mas também o somos de nós mesmos. A forte imagem do assassinato das vacas traduz o que para o pai significa tudo isso: o primeiro filho, longe, e dando para o mais novo o exemplo de partir; a fazenda, uma impossibilidade; ele, atônito, diante das surpresas da vida. Outro personagem é um rapaz negro, filho de um africano que fez migração de retorno e sobrinho de um taxista. Tem uma irmã surda e, talvez por causa dela, seja professor de percussão numa escola especial. “Amadou” é o seu nome e ele é uma espécie de centro nevrálgico da trama: ele consegue comunicar-se com a surda, defende a imigrante romena na rua, encontra-se com uma moça branca... Ele tem a senha, o código, algo que ninguém tem: a tolerância, o compromisso com o próximo. Ele transita bem entre dois mundos, a África longínqua, que esconde seu pai, e a França impenetrável, a não ser pela arte. A atriz, numa das seqüências desarrumadas do filme, ensaia uma cena em que um torturador estuda sua aflição, por estar enclausurada num quarto de que não pode sair. Ela seria a França, presa de sua própria história, das conseqüências do neocolonialismo? Das três palavras sobre as quais forjou sua identidade – liberdade, fraternidade, igualdade? Nada é fácil, quando é humano: um rapaz branco (francês?) a constrange num metrô, cospe nela, um senhor interfere. Ela diz “merci”.
É um filme que fala da grave encruzilhada que a globalização armou: o inevitável contato entre diferentes culturas, religiões, raças e a falta da contrapartida necessária para isso – o amor, que tudo facilitaria e de que só somos capazes raramente. Não só culturas estrangeiras – a atriz está confusa com o casal que espanca a filha, questiona-se e ao noivo quanto ao que deve fazer e sofre muito com a conseqüência da violência e de sua própria paralisação – a morte da criança...
Ainda não sabemos o código que criaremos para este novo século... Só sabemos que não será aquele dos séculos XV e XVI, quando uma cultura se arvorava do direito de “desaparecer” outra, em nome da civilização.
Noutra perspectiva, o filme “A cidade está tranqüila” também pensa a globalização e seus efeitos. Seu cenário é a cidade operária de Marselha, cujo porto e estivadores estão no centro da trama. Os portuários, em assembléia, representam a morte da ordem sindical e socialista; um taxista, traidor(?), personaliza a busca de novos caminhos depois da falência geral. Em várias situações do enredo, ele é a porta de saída.
Essa história tem como personagem central uma mulher sofrida que trabalha encaixotando peixes gelados, tem uma filha drogada, uma neta recém-nascida e um marido desempregado. Seu casamento desmorona, sua filha morre de overdose e o taxista resolve ficar com ela. Entendemos depois sua relação anterior com o traficante que consegue a droga para sua filha e que se suicida.
Reformas urbanísticas, assassinatos, injustiças, tensões racistas, desemprego, tudo está presente naquela cidade que, “de cima, parece bem”, diz o africano islâmico negro, da varanda de sua namorada burguesa branca e francesa, que conheceu na prisão, onde ela era professora de música. Aliás, além dos detentos, ela tinha alunos excepcionais, cuja sala de aula é um dos poucos espaços felizes dessa história.
Há uma semelhança nítida entre os dois filmes: a música, proposta como uma espécie de código universal, é ponto de encontro da diversidade humana que, no horizonte, vencerá a homogeneidade. Os tambores dos surdos, de todas as cores e de todas as classes, conduzidos por um francês afro-descendente, híbrido de dois mundos tão diferentes, ou o piano, dedilhado na periferia de Marselha por um genial menino da Geórgia, são os elementos agregadores, são a coluna vertebral de um tempo novo, com um novo código que contará como conseguimos suplantar nossos impasses e como nossa babel foi derrotada pelo amor.
9 Comments:
Ola minha querida!!!!
Que bom começar o ano lendo um texto seu. Irei assistir aos filmes indicados. Fiquei encantada com o seu relato, descobriremos o código um dia.
Você tem o código de relatar as coisas com tanta suavidade mesmo quando se tratam de tragédias, assassinatos, injustiças e tensões racistas.
O código de conseguir fazer com que seus alunos pensem, olhem para vida e para os caminhos percorridos com mais carinho.
...Também vou assistir aos filmes,tenho certeza de que você resolveria os problemas pravocados pela globalização com sua tranguilidade "doida" misturada com o grande amor de esperança em querer mudar o mundo com um bando de alunos,inclusive eu.Somos réus e vítimas do capitalismo,infelizmente.Confirmo o amo por você,que este ano seja melhor que 2007;uma das minhas conquistas foi fortalecer a admiração por ti.Depois volto......PAULO
Paulo tem razão, vc seria a pessoa indicada para resolver esses problemas.
Você já esta discodificando, quando dar suas aulas.
Parabéns!
Flávia, mais uma vez estou comovido com sua sensibilidade. "Decifrar os códigos" desse novo tempo (que ainda está se formando) é uma (difícil) tarefa que temos pela frente. Uma coisa é certa : a compreensão será o ponto de partida para tudo. Você, sem dúvida, já construiu grande parte dessa conquista.
um beijo de saudade,
Cesar.
Flávia..
Tudo bom?
Sou sua ex-aluna e vim, humildemente, pedir que desse uma força para o blog da pousada que fica ao lado da faculdade de Nazaré da Mata, na qual voce já foi várias vezes dar palestras, etc.
Beijão e gostaria que nos colocasse no seu "Eu indico", frizando apenas que o blog ainda terá aprimoramentos...
Muito Obrigada
Olá, não cai aqui não..., desmoronei... Para explicar o caminho, em resumo do resumo, minha namorada tem um amigo, cuja esposa foi sua aluna. Passou um texto seu no Natal e já vi que valia a visita. Muito bons seus textos...
Prazer, Carlos
vou fazer v&f denovooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo
Poxa, esses filmes são bem sua cara mesmo, hein Flá!
Me lembrei de Babel quando falaste que o primeiro apresenta vários enredos que se entrelaçam "de raspão"... não gostei desse estilo, maaas... fiquei curiosa para ver esse filme, quem sabe eu não mude de idéia, né? hehe.
Em todo caso, o segundo parece muuuito atraente, então vou procurar vê-los e direi algo depois, ok?
Ai, que saudades da minha querida profª!!
Queria te ver, até pensei que estarias no GAME no dia que saiu o listão, mas liguei pra lá e disseram que os profºs não costumam ir e tals, dai desisti... então quando as aulas começarem, irei lá te aperriar! =)
Espero que esteja tudo certinho contigo,
Beijos, querida!!
Até mais.
É tarde da noite , tenho que arrumar a minha mala para viajar amanhã e não consigo parar de ler seus escritos. Estou me deliciando de tantas formas ... é um alento, acredite!
Sabe do que tenho vontade ? De sair indicando aos jovens e aos amantes da literatura que desfrutem deste canal de conhecimento, tão vivo, tão intenso, tão sensível...
Que mais posso lhe dizer?
Apenas acrescentar : acredito que todos nós temos um dever a cumprir em nossa passagem por esta vida e é muito bonito conhecer alguém que assumiu o seu papel de educadora com tanta paixão.
gde abraço e parabéns
Adriane Brasileiro
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