quarta-feira, outubro 24, 2007

"A hora da estrela", Clarice Lispector

“A hora da estrela” é a última obra de Clarice Lispector. É a que mais parece situar-se num lugar misterioso entre o Realismo e o Simbolismo: é um texto que descreve de forma objetiva as carências das personagens, mas também apresenta seus sonhos, seu inconsciente... Tudo isso por meio de uma linguagem claudicante, que revela carências e dificuldades de articulação de idéias e ora utiliza ditados populares, ora frases inusitadas cuja estrutura sintática parece pertencer a outra língua, de tão nova e surpreendente.
É um romance sobre dois desamparos. O de Macabéa e o de Rodrigo S.M., o narrador da história de Macabéa, que tanto se identifica com ela e que o tempo todo titubeia – não sabe se é Clarice, a autora; se é um personagem; se é onisciente; se, como Machado de Assis, conversa com o leitor... Diante do desamparo de Macabéa, Rodrigo se penaliza; do seu próprio, fica indeciso: não consegue titular a obra; pede desculpas o tempo todo pela “narrativa tão exterior e explícita”, o que adia até o limite o começo da história; confunde o leitor com frases encadeadas sem lógica; não sabe se deve contar a história de Macabéa ou se deve falar de sua dificuldade em lidar com a linguagem, da função do escritor, fazendo uso da função metalingüística... O texto, assim, transita entre o fato e o sussurro, como o próprio narrador confessa (ele simpatiza mais com o sussurro, mas resolveu se comprometer com o fato). Vem daí essa narrativa dupla, indecisa entre o contar uma história ou uma dificuldade de escrever.
É um romance que carece de personagens, são só 3 ou 4, se se puser Rodrigo, o narrador, na lista ou não. Tudo, portanto, carece e é desassistido, como Macabéa, a estrela da hora.
Macabéa é uma desvalida nordestina que mora no Rio de Janeiro, uma “cidade toda feita contra ela”. Ela não tinha, diz o narrador, e ele mesmo pergunta a seguir: “não tinha o quê?” E responde: “É apenas isso mesmo: não tinha”. Não lhe faltava doçura e obediência, mas a consciência do ser, não era capaz de saber o que era, “como um cachorro não sabe que é cachorro”. Teve uma infância sem boneca, perdeu pai e mãe e foi criada por uma tia de cujo contato ficara-lhe a cabeça baixa. Era encardida, pois não gostava de tomar banho, e tinha um jeito de olhar de quem tem asa ferida. Trabalhava como datilógrafa e morava com quatro amigas num quarto alugado. Em suma, tudo nela era “seco que nem saco meio vazio de torrada esfarelada”.
Coisas da vida, esse “café frio” encontra-se, na chuva, com Olímpico de Jesus Moreira Sales (o Moreira Sales era mentira, diz o narrador; ele só tinha o de Jesus, sobrenome dos que não têm pai). Olímpico era metalúrgico, sua função “tinha o gosto que se sente quando se fuma um cigarro acendendo-o do lado errado, na ponta da cortiça”. Mas não pertence à categoria de Macabéa: gostava de dinheiro, tinha um dente de ouro, queria ser deputado (e foi, num futuro fora do livro, como o diz o narrador).
Havia entre esses dois uma impossibilidade completa de compreensão: ela não sabia dizer o que queria; ele também não sabia, mas defendia-se afirmando que sabia, porém não queria dizer.
Um passeio no zoológico foi o fim do romance: ela ficou com tanto medo do rinoceronte que se urinou; ele optou por Glória, colega de trabalho de Macabéa.
Glória tinha mãe, comida quente na hora certa, era carioca e seu pai trabalhava num açougue, o que para Olímpico era admirável. Ela tinha um tênue sentimento materno em relação a Macabéa e lhe deu a idéia de consultar um médico e, depois, uma cartomante, que previu o futuro de Macabéa: um alemão ia pedi-la em casamento e seu desamparo acabaria.
Mas parece que Macabéa foi atropelada.
O narrador lembra que é tempo de morangos, num hermetismo típico de quem, enfim, desiste dos fatos, da história, da lógica... de quem se vê incapaz de contar as duas histórias – a de Macabéia e a sua própria...
O século XX pulsa dentro desse livro sobre uma cidade sem pessoas, cujas palavras desencontradas não permitem compreensões. O século XX está refletido no espelho de Macabéa, que não o compreende nem a si própria. O século XX está guardado neste livro, em cujas páginas a técnica atropela o pouco de gente que resta ou faz de pessoas parafusos dispensáveis. O século XX existe na profissão morta de Macabéa, na sombra de desemprego que lhe ronda o presente e lhe rouba o futuro. O século XX repousa nesta história em que o meio de comunicação reduz o ouvinte a colecionador de anúncios e de informações que não lhe servem para nada.
Enfim, “que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só.” O século XX está na indecisão entre o ponto e a interrogação presente nessa frase.

9 Comments:

At 6:08 PM, Blogger Luiza Dias said...

Putez Flávia, muito bom o texto, ficou ótimo. "A hora da estrela" é realmente um livro bem gostosinho de se ler, e acaba sendo completado com todas essas observações profundas e críticas capazes de enquadrá-lo perfeitamente no século XX!
Adorei.

 
At 10:45 PM, Blogger yuri assis said...

Flávia,
fico pensando se "A hora da estrela" tem certo cruzamento com "Admirável mundo novo" de Aldous Huxley. Você falou da técnica atropelando pessoas, do saber científico e tecnológico engolindo gente e desumanizando. Fiz a ligação e continuo aqui pensando.
Bjos, Yuri.

 
At 2:41 PM, Anonymous Anônimo said...

Ah se todos os livros tivessem esse tipo de resumo na contra capa.

 
At 9:10 PM, Anonymous Anônimo said...

Flavia, fiquei pensando sobre o ano estar chegando ao fim,que você falou na aula sobre o professor ser uma ponte,e achei que esse texto se encaixa com perfeição =)


"De tudo, ficaram três coisas: a certeza de estar sempre começando, a certeza de que é preciso continuar e a certeza de ser interrompido antes de terminar.
Fazer da queda um passo de dança,
do medo uma escada,
do sonho uma ponte,
da procura um encontro"
(Fernando Sabino)


Obs: eu sou seu fã n° 1!!! =)

 
At 1:11 PM, Blogger Josias de Paula Jr. said...

Lindo comentário, Flávia! Tenho grande admiração por esse texto de Clarice. Um dos aspectos que mais me intrigou sempre foi a escolha do nome do personagem. Sempre achei que havia uma referência, irônica, aos macabeus. Macabéa, passividade e incapacidade de agir; os macabeus, símbolo da resistência judaica, de sua luta por autonomia e liberdade da prática do judaísmo.
Não sei se faz sentido.
Parabéns pelo texto.
Um abraço.

 
At 1:15 PM, Blogger Josias de Paula Jr. said...

Ah! Cheguei aqui pelo Estradar, de Dimas Lins.
Tomei a liberdade de por um linque no meu espaçozinho de escrivinhador.
Um abraço.

 
At 5:45 PM, Anonymous Anônimo said...

Este comentário foi removido pelo autor.

 
At 12:50 AM, Anonymous Anônimo said...

Flávia, é verdade que o GAME vai fechar esse ano ?

 
At 6:47 AM, Blogger Unknown said...

Que saudade de Clarice... que saudade de vc como professora!
Um grande beijo

 

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