Duas peças de Ariano Suassuna
“Auto da Compadecida” e “A pena e a lei” são, sem sombra de dúvidas, peças catequéticas: carregam em si mensagens católicas e, a par de burlescas, têm elevado objetivo moralista e didático, como os autos da Idade Média. Mas sua modernidade é também inegável: principalmente aqui no Brasil, onde o Modernismo relativizou a distância entre a esfera erudita e a popular, criou-se, a partir disso, não só um conceito mais elastecido de “belo”, mas também parece ter havido um “abrasileiramento” de nossa produção cultural.
Em Ariano Suassuna, isso é particularmente forte – a atmosfera popular é não só um ponto de partida inspirador, mas também algo que o autor, propositalmente, quer manter. Daí o clima circense ou de espetáculo de mamulengo que está presente nos dois textos.
Na verdade, o autor propala que suas obras se baseiam nos romances e histórias populares nordestinas, mas encontra-se nelas uma semelhança com gêneros ibéricos, os quais, provavelmente, são a origem primeira daqueles que o inspiraram.
Não se pode, no entanto, pensar que houve cópia nem imitação e, sim, recriação, pois a ambientação, a estruturação, a linguagem e as situações são originais e bem regionais.
Por outro lado, essas questões locais não se esgotam em si mesmas, já que ambos os textos compõem quadros universais: a condição material do homem, que dificulta e turva suas ações, é um tema que está presente nos textos.
Portanto há um eixo comum às duas peças: às fraquezas humanas se contrapõe a misericórdia divina, que premia a fé e a esperança.
O primeiro ato do “Auto da Compadecida” é sobre o enterro de um cachorro. João Grilo e seu amigo Chicó são personagens pícaros e pobres, empregados da padaria de Taperoá. O padeiro e sua esposa são péssimos patrões e dispensam ao seu cachorro um tratamento melhor do que aos empregados. Apesar disso, o cão adoece e a esposa do padeiro pede a João Grilo que arranje um jeito de o padre benzer o cachorro para ele melhorar. João Grilo começa a armar a maior confusão entre o padre e o major Antônio de Morais, a fim de executar a vontade de sua patroa. Porém, nesse intervalo, o cachorro morre e sua dona agora quer que ele seja enterrado em latim. João Grilo combina com ela o testamento do cachorro – uma quantia que ele poderia gastar para comprar os membros da Igreja: um por um, o padre, o sacristão e o bispo sucumbem ao poder desse argumento. Aí um bando de cangaceiros invade a cidade, há luta e tiros, e todos morrem e vão parar no céu, onde o julgamento final é iniciado.
No grupo, há pecados de toda natureza: mentira, adultério, assassinato, ganância... E o diabo é o promotor. Quando tudo parece perdido, João Grilo apela para Nossa Senhora, que surge e se compadece.
No primeiro ato de “A pena e a lei”, Benedito e Pedro, de novo dois personagens pícaros, desmascaram os dois valentões da cidade (o Cabo Rosinha e Vicentão) e Benedito “ganha” Marieta, a mulher fatal da trama. Esse primeiro ato, portanto, é sobre a falácia das aparências e, desde o começo, sabemos que é feito por bonecos de mamulengo.
O segundo ato é sobre a Justiça e seus enganos, tema que, de raspão, também aparece no “Auto da Compadecida”: é que ela, antes de tudo, ameaça o povo e não lhe garante direitos. Chama-se “o caso do novilho furtado” e novamente há as confusões de Benedito envolvendo Mateus, Joaquim, Vicentão, Cabo Rosinha, Marieta e Padre Antônio. Aqui os personagens são meio-termo entre boneco e gente, simbolizando a dualidade da natureza humana.
O terceiro ato é executado por pessoas, pois, como o texto diz, só depois da morte nos tornamos nós mesmos: é que todos os personagens morrem uns por causa dos outros, e tem lugar um diálogo entre os homens e Deus. Há uma recrucificação, pois os homens pensam que o Criador é responsável pela criação de uma humanidade imperfeita. Ao fim e ao cabo, Deus lhes perdoa, porque eles acreditam e têm esperança.
Os dois julgamentos das duas peças são a chave para sua compreensão: o Cristianismo sustenta o autor e os textos, e a estrutura dramática dialoga perfeitamente tanto com o universo religioso como com a “gramática” simbólica estabelecida pelo autor. Em “A pena e a lei”, por exemplo, o dono do mamulengo se transforma em Deus, numa união estruturada entre o regional e o universal; imagens arquetípicas e inovação; o profano e o divino.
Apesar da simplicidade, da aparente espontaneidade, do despojamento, da singeleza dos recursos empregados, do primarismo do argumento, “Auto da Compadecida” e “A pena e a lei” elaboram, cada um a seu modo, raciocínios ontológicos talvez nunca antes alcançados pelo teatro brasileiro.
Em Ariano Suassuna, isso é particularmente forte – a atmosfera popular é não só um ponto de partida inspirador, mas também algo que o autor, propositalmente, quer manter. Daí o clima circense ou de espetáculo de mamulengo que está presente nos dois textos.
Na verdade, o autor propala que suas obras se baseiam nos romances e histórias populares nordestinas, mas encontra-se nelas uma semelhança com gêneros ibéricos, os quais, provavelmente, são a origem primeira daqueles que o inspiraram.
Não se pode, no entanto, pensar que houve cópia nem imitação e, sim, recriação, pois a ambientação, a estruturação, a linguagem e as situações são originais e bem regionais.
Por outro lado, essas questões locais não se esgotam em si mesmas, já que ambos os textos compõem quadros universais: a condição material do homem, que dificulta e turva suas ações, é um tema que está presente nos textos.
Portanto há um eixo comum às duas peças: às fraquezas humanas se contrapõe a misericórdia divina, que premia a fé e a esperança.
O primeiro ato do “Auto da Compadecida” é sobre o enterro de um cachorro. João Grilo e seu amigo Chicó são personagens pícaros e pobres, empregados da padaria de Taperoá. O padeiro e sua esposa são péssimos patrões e dispensam ao seu cachorro um tratamento melhor do que aos empregados. Apesar disso, o cão adoece e a esposa do padeiro pede a João Grilo que arranje um jeito de o padre benzer o cachorro para ele melhorar. João Grilo começa a armar a maior confusão entre o padre e o major Antônio de Morais, a fim de executar a vontade de sua patroa. Porém, nesse intervalo, o cachorro morre e sua dona agora quer que ele seja enterrado em latim. João Grilo combina com ela o testamento do cachorro – uma quantia que ele poderia gastar para comprar os membros da Igreja: um por um, o padre, o sacristão e o bispo sucumbem ao poder desse argumento. Aí um bando de cangaceiros invade a cidade, há luta e tiros, e todos morrem e vão parar no céu, onde o julgamento final é iniciado.
No grupo, há pecados de toda natureza: mentira, adultério, assassinato, ganância... E o diabo é o promotor. Quando tudo parece perdido, João Grilo apela para Nossa Senhora, que surge e se compadece.
No primeiro ato de “A pena e a lei”, Benedito e Pedro, de novo dois personagens pícaros, desmascaram os dois valentões da cidade (o Cabo Rosinha e Vicentão) e Benedito “ganha” Marieta, a mulher fatal da trama. Esse primeiro ato, portanto, é sobre a falácia das aparências e, desde o começo, sabemos que é feito por bonecos de mamulengo.
O segundo ato é sobre a Justiça e seus enganos, tema que, de raspão, também aparece no “Auto da Compadecida”: é que ela, antes de tudo, ameaça o povo e não lhe garante direitos. Chama-se “o caso do novilho furtado” e novamente há as confusões de Benedito envolvendo Mateus, Joaquim, Vicentão, Cabo Rosinha, Marieta e Padre Antônio. Aqui os personagens são meio-termo entre boneco e gente, simbolizando a dualidade da natureza humana.
O terceiro ato é executado por pessoas, pois, como o texto diz, só depois da morte nos tornamos nós mesmos: é que todos os personagens morrem uns por causa dos outros, e tem lugar um diálogo entre os homens e Deus. Há uma recrucificação, pois os homens pensam que o Criador é responsável pela criação de uma humanidade imperfeita. Ao fim e ao cabo, Deus lhes perdoa, porque eles acreditam e têm esperança.
Os dois julgamentos das duas peças são a chave para sua compreensão: o Cristianismo sustenta o autor e os textos, e a estrutura dramática dialoga perfeitamente tanto com o universo religioso como com a “gramática” simbólica estabelecida pelo autor. Em “A pena e a lei”, por exemplo, o dono do mamulengo se transforma em Deus, numa união estruturada entre o regional e o universal; imagens arquetípicas e inovação; o profano e o divino.
Apesar da simplicidade, da aparente espontaneidade, do despojamento, da singeleza dos recursos empregados, do primarismo do argumento, “Auto da Compadecida” e “A pena e a lei” elaboram, cada um a seu modo, raciocínios ontológicos talvez nunca antes alcançados pelo teatro brasileiro.
16 Comments:
É sempre bom vim aqui.
Nunca tinha percebido o caráter filosófico nesses textos, mas lendo os teus escritos, divisei claramente essa questão.
Um grande abraço,
Flávia, querida
recebi um e mail de minha amiga que me indicou Samarone e ela disse que sempre comprava os livros indicados por ele. Agora ela disse que vai assistir Bagdad Café por sua reflexão sobre ele e vai terminar comprando os livros que vc indica, já pensou? Você está mesmo influenciando a vida de muita gente!
Queria recomendar a você e seus leitores que entrem e acompanhem o blog www.pebodycount.com.br, "o blog da segurança", que está mostrando todos os dias a violência que ocorre aqui em Pernambuco e não é divulgada. Seu blog, Flávia, lava nossa alma e nos inspira; o pebodycount faz com que saiamos daquele torpor da aparente normalidade e recuperemos a faculdade de nos indignar com a violência que está acontecendo ao nosso redor, mas que não vemos. Lembrei Maiakovsky com aquele poema "No primeiro dia eles ..."
bjs e saudades, querida
Perfeito!!!!! Que prazer ler esta análise tua!
A obra de Ariano é quase um milagre. E trata de coisas valiosas: os usos e costumes de nossa gente.
Análise perfeita.
Dimas Lins
Fico sempre vislumbrada com a sua forma de escrever, sua forma de tratar e de entender cada obra poética dos mais diversos autores... Admiro bastante sua fala nas aulas; uma fala compromissada com a real função de um professor. Tento entender o motivo de tanto "abestalhamento" da minha parte nas suas aulas. Sempre fico no canto, calada, atenta, nas horas em que estais falando. Penso no motivo da minha reclusão... Deveria expor diretamente pra ti o quanto sou grata pelos momentos na "sua companhia", mas como diz Clarice "Eu estava tão feliz que eu me encolhi no canto do taxi de medo porque a felicidade dói." (Felicidade Clandestina).
Muito,muito grata pela sua dedicação, pelas suas aulas ministradas com tanta primazia.
Agora, o que me resta é ir no dia 25 fazer aquela prova, interpretanto cada questão com atenção, lembrando sempre das suas aulas.
Beijãooo, Juliana Rodrigues
Samarone é teu boyzinho é?
Flavia a seguinte questao da 1ª fase da Federal:
Na opiniao do autor do texto ( O sal da lingua), a aceitaçao de variantes populares está condicionada:
a) a seu uso efetivo na literatura
b)à forte pressao dos populistas
c)a sua presença em dicionarios
d)à imposiçao dos puristas
e)a mudanças sociolinguisticas
Essa questao nao pode ter como resposta a alternativa D ?
Por favor, comenta na sala essa semana.
marquei "A"
Flavia ta faltando um canal p/ vc se comunicar com seus alunos via internet.
Eu to cheia de duvida agora, mas so posso tirar quando eu vou pra aula, porque o link, do site do curso, "tira-duvidas" nunca funciona direito.
Este comentário foi removido pelo autor.
Flávia, querida
Eu adoro Ariano Suassuna, mas gosto bem mais da sobrinha dele !!!
Cadê você, criatura? tô morrendo de saudade!!!
Acho que esses comentários devem ser comentados.
A lição da autora é muito boa. Mas me assustou o comentário da leitora Juliana Rodrigues, com erros incríveis: JULIANA; POR FAVOR; PROCURE NO DICIONÁRIO o que quer dizer VISLUMBRAR (vc usou impropriamente "vislumbrada"), PRIMAZIA e COMPROMISSADA. Estude please!
Flávia, não sei se estão sentindo a mesma coisa que estou, mas... sinto um aperto enorme no peito por estar acabando o ano. Gostei demais do curso e imagino a falta que irei sentir ao entrar na faculdade. Sem dúvidas me identifiquei demais com você... até a parte do... 'choro até com propaganda de sabão em pó', acho importante o lado sentimental das pessoas e mais ainda com facilidade de expressar sentimentos. Lamento ser tímida o suficiente por não conversar mais com você, mas muitos conselhos e grandes idéias ficaram marcados em mim. Desejo muito sucesso e felicidades. (já estou chorando =/ )
Oi, legal seu Blogue só acho que falta o download de algumas das obras dele.
Abraços!!!
Querida professora, você é brilhante!!!
Postar um comentário
<< Home