Lendo Machado de Assis - 1
“Quanto ao século, os médicos que estavam presentes ao
parto reconhecem que este é difícil, crendo uns que o que agora
aparece é a cabeça do XX, outros que são os pés do XIX.
Eu sou pela cabeça, como sabe.” (Machado de Assis)
parto reconhecem que este é difícil, crendo uns que o que agora
aparece é a cabeça do XX, outros que são os pés do XIX.
Eu sou pela cabeça, como sabe.” (Machado de Assis)
Machado de Assis é o mais intrigante autor de nossa literatura: sua trajetória biográfica, suas idéias e, conseqüentemente, suas obras são surpreendentemente singulares, e observá-las é um aprendizado precioso.
Sua vida pode ser considerada um milagre. Nasceu pobre, filho de uma lavadeira e um pintor de paredes, e não se tem notícia de estudos regulares. Apesar disso, foi devagar escrevendo sua história difícil, aprendendo a ler aqui, aproveitando oportunidades minúsculas, lendo um livro acolá, quando foi caixeiro de livraria ou tipógrafo... Estudou latim e francês de favor... Recebeu ajuda... O que quero dizer é que soube aproveitar as chances que apareceram (penso que é muito cômodo à classe dominante achar que sair sozinho da situação de miséria e pobreza é não só possível como fácil, basta querer). E foi galgando a “escada social” brasileira que era, na época como hoje, íngreme e inóspita. Não teve que vencer apenas a origem: foi neto de escravos alforriados, o que quer dizer que era mulato, além de gago e epilético.
Numa sociedade como a nossa, marcada tão fortemente pela estratificação que já ouvi muitos referirem um “apartheid” (tomando emprestado a forte palavra da África do Sul), suplantou o “destino” social que, na época, pensava-se ser determinado pelo momento histórico, pela raça e pelo meio.
Pois bem: nada, nem a história que esta sociedade tinha reservado para ele, nem sua cor, nem sua favela de origem, nem sua doença, impediu Machado de ir ascendendo socialmente e de maneira admirável – sem quebrar valores nem ética.
Mas nada disso aconteceu de repente, por sorte: sua consagração foi um mérito que foi sendo esculpido pelo amadurecimento, pelo trabalho, pela reflexão – a história de Machado é um exemplo de tenacidade e sua fama foi antes conseqüência de um fazer que lance espetacular de cartas ou dados; só seu terceiro livro de contos e seu quinto romance começam a destacá-lo no panorama da nossa literatura.
Foi hábil observador de si próprio. Olhando-se como o fez, desconfiou da ciência de sua época e, ao contrário dos escritores europeus, relativizou as certezas do século XIX. Debruçado sobre sua própria história, questionou o mecanismo simplificador do determinismo do seu tempo e, na periferia do mundo, escreveu uma obra só explicável pelos parâmetros do século XX: a ciência do século XIX e sua visão reducionista estão na voz de dois personagens loucos de Machado, de cujas teorias simplistas sobre as questões humanas rimos. Na época, enunciavam-se teorias “científicas” para explicar tudo, desde a origem do homem até a sua evolução, ou confeccionavam-se tabelas dentro das quais “se organizavam” os seres de todas as espécies. Assim Quincas Borba pensava que as batatas ficavam para o vencedor e Simão Bacamarte achava-se capaz de discriminar o são do louco.
Ao contrário disso, Machado foi um excluído que construiu seu próprio acesso às batatas e, acima de tudo, escolheu, sem se confundir, as batatas com as quais queria ficar, pois sabia que, nas suas próprias palavras, “só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima de suas glórias fofas e das suas ambições estéreis”.
Enfim, também foi pertinente analista da história que se desenhava a sua volta, apesar de ter sido acusado do contrário. Só que sua avaliação foi discreta e prescindiu da oratória emotiva, preferindo as entrelinhas, o estudo das reações, a riqueza das motivações.
Na verdade, foi, aos poucos, saindo do personagem linear ou plano, típico do romantismo, para cair no problemático ou esférico e, mesmo, no pícaro, viés pouco estudado na sua obra, na minha opinião. Grandes temas do seu tempo (as mulheres infiéis, a infelicidade conjugal, a complexidade de nossa psicologia, a confrontação dos valores sociais) ganham, na obra de Machado, matizes novos e originais.
Machado aprendeu a ler. Foi leitor de si mesmo, de seu mundo e de sua época e dos livros que o ajudaram a ver-se e a ver tudo a sua volta com clareza e originalidade.
Neste tempo de subidas que desmoronam valores sociais, saber de Machado de Assis dá uma fé no indivíduo e uma certeza clara e boa na ética.
Sua vida pode ser considerada um milagre. Nasceu pobre, filho de uma lavadeira e um pintor de paredes, e não se tem notícia de estudos regulares. Apesar disso, foi devagar escrevendo sua história difícil, aprendendo a ler aqui, aproveitando oportunidades minúsculas, lendo um livro acolá, quando foi caixeiro de livraria ou tipógrafo... Estudou latim e francês de favor... Recebeu ajuda... O que quero dizer é que soube aproveitar as chances que apareceram (penso que é muito cômodo à classe dominante achar que sair sozinho da situação de miséria e pobreza é não só possível como fácil, basta querer). E foi galgando a “escada social” brasileira que era, na época como hoje, íngreme e inóspita. Não teve que vencer apenas a origem: foi neto de escravos alforriados, o que quer dizer que era mulato, além de gago e epilético.
Numa sociedade como a nossa, marcada tão fortemente pela estratificação que já ouvi muitos referirem um “apartheid” (tomando emprestado a forte palavra da África do Sul), suplantou o “destino” social que, na época, pensava-se ser determinado pelo momento histórico, pela raça e pelo meio.
Pois bem: nada, nem a história que esta sociedade tinha reservado para ele, nem sua cor, nem sua favela de origem, nem sua doença, impediu Machado de ir ascendendo socialmente e de maneira admirável – sem quebrar valores nem ética.
Mas nada disso aconteceu de repente, por sorte: sua consagração foi um mérito que foi sendo esculpido pelo amadurecimento, pelo trabalho, pela reflexão – a história de Machado é um exemplo de tenacidade e sua fama foi antes conseqüência de um fazer que lance espetacular de cartas ou dados; só seu terceiro livro de contos e seu quinto romance começam a destacá-lo no panorama da nossa literatura.
Foi hábil observador de si próprio. Olhando-se como o fez, desconfiou da ciência de sua época e, ao contrário dos escritores europeus, relativizou as certezas do século XIX. Debruçado sobre sua própria história, questionou o mecanismo simplificador do determinismo do seu tempo e, na periferia do mundo, escreveu uma obra só explicável pelos parâmetros do século XX: a ciência do século XIX e sua visão reducionista estão na voz de dois personagens loucos de Machado, de cujas teorias simplistas sobre as questões humanas rimos. Na época, enunciavam-se teorias “científicas” para explicar tudo, desde a origem do homem até a sua evolução, ou confeccionavam-se tabelas dentro das quais “se organizavam” os seres de todas as espécies. Assim Quincas Borba pensava que as batatas ficavam para o vencedor e Simão Bacamarte achava-se capaz de discriminar o são do louco.
Ao contrário disso, Machado foi um excluído que construiu seu próprio acesso às batatas e, acima de tudo, escolheu, sem se confundir, as batatas com as quais queria ficar, pois sabia que, nas suas próprias palavras, “só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima de suas glórias fofas e das suas ambições estéreis”.
Enfim, também foi pertinente analista da história que se desenhava a sua volta, apesar de ter sido acusado do contrário. Só que sua avaliação foi discreta e prescindiu da oratória emotiva, preferindo as entrelinhas, o estudo das reações, a riqueza das motivações.
Na verdade, foi, aos poucos, saindo do personagem linear ou plano, típico do romantismo, para cair no problemático ou esférico e, mesmo, no pícaro, viés pouco estudado na sua obra, na minha opinião. Grandes temas do seu tempo (as mulheres infiéis, a infelicidade conjugal, a complexidade de nossa psicologia, a confrontação dos valores sociais) ganham, na obra de Machado, matizes novos e originais.
Machado aprendeu a ler. Foi leitor de si mesmo, de seu mundo e de sua época e dos livros que o ajudaram a ver-se e a ver tudo a sua volta com clareza e originalidade.
Neste tempo de subidas que desmoronam valores sociais, saber de Machado de Assis dá uma fé no indivíduo e uma certeza clara e boa na ética.
4 Comments:
Este comentário foi removido pelo autor.
Consegui Flávia, acho que deve ter sido problema no meu computador.
Adorei o que você escreveu sobre Machado de Assis, realmente ele foi o contra de tudo aquilo que se pensava na sua época.
Pena que ainda hoje exista gente que pensa dessa maneira, não se precisa ir muito longe. Aqui no Coque mesmo, quantos amigos de infância que eu brincava de bola na rua, hoje está roubando ou até estão mortos. Eles vendo a sua família passar necessidade, vendo as vezes o seu irmão mais velho roubando, não tem incentivo na educação... tudo isso é um passo para entrarem no mundo da delinquência e acabam aceitando. Não sabem eles que não é o meio que os influenciam, mas sim a força de vontade de querer mudar.
E me lembro de quando você falou ne aula que para se sair da pobreza, precisa-se de uma ajuda. Como no caso foi o de Machado de Assis. E quando falastes isso, lembrei logo dos projetos que estão sendo praticados aqui no Coque, pois são eles que dão essa ajuda a essas crianças e adolescentes, eles mostram que não é porque eles moram em uma favela e são pobres que não têm o direito de lutar por um futuro melhor.
Certamente a história de Machado é uma lição de vida.
Beijos e até a próxima aula.
Machado é uma aula de senso crítico. Coisa que raros jovens hoje possuem. Coisa que o Brasil insiste em desconhecer.
Luis Manoel Siqueira
Flávia, quero deixar registrado o meu agradecimento a você pelo texto e pela palestra/aula proferida no Ginásio Pernambucano (julho/2014).Seu texto me possibilitou trabalhar a literatura como eu acredito: Refletir e fazer um diferencial na nossa vida. Discutimos o social,as oportunidades e a falta delas; comparamos épocas; exploramos a análise linguística própria do gênero; vimos o que poderíamos encontrar no Realismo e em Machado.
Melhor de tudo: Compreensão e participação por parte dos alunos.
O agradecimento também é em nome deles - os mais beneficiados.
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