Lendo Machado de Assis - 4
“Ao vencedor, as batatas.”
Uma espécie de continuação de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba” é menos experimentalista e famoso, mas é mais profundo e sutil. E ainda mais triste. Da trilogia mais conhecida de Machado, é o menos palatável – na dificuldade que impõe ao leitor para decifrá-lo e na mensagem.
Se se pode pensar numa imagem que um livro evoca, uma sala de espelhos é o que aparece à mente quando tentamos sintetizá-lo. Seu enredo mais claro é a história de Rubião, herdeiro de Quincas Borba, o mesmo filósofo louco que era amigo de Brás Cubas nas “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Mas há um contexto mais amplo que o texto “Quincas Borba” refere – o da nossa sociedade engessada por relações de trocas de todos os matizes, principalmente os materialistas.
De início, Rubião aparece cuidando do filósofo doente, já meio enredado na sua loucura e na sua teoria, que o confundem e paralisam. Quando o filósofo morre, deixa para Rubião não só toda a sua fortuna – que Rubião não consegue quantificar racionalmente −, mas ainda seu cachorro, que também se chama Quincas Borba (espécie de âncora do passado e da loucura) e que persegue Rubião no seu trajeto de decadência até a morte, disfarçado de ascensão social e econômica. Uma das chaves para entender o “Quincas Borba” é essa ascensão rápida demais a que foi empurrado o personagem. Porque não foi compreendendo, durante a própria construção dos percursos, aos poucos, o novo espaço que adentrava, Rubião tornou-se presa fácil das armadilhas do mercado e das relações de interesse que se organizam no tecido social dominante a que ele foi alçado e no qual não foi criado.
Rico, Rubião muda-se de Diamantina para o Rio de Janeiro e, ainda no trem, encontra Sofia e Palha, que vão introduzi-lo nas engrenagens mercantilistas da sociedade, as quais, por sua vez, o esmagarão devagar à nossa vista.
O leitor, quando se olha no espelho, vê Rubião – um homem bom e cego, à beira do abismo – e parece adivinhar o perigo que ele corre ao lado do casal (meio serpente, meio sereia), que duplica a sociedade com seus apelos insistentes e suas exigências inescapáveis de status e aparências. A inocência de Rubião – que é sua verdadeira riqueza e o vetor que o precipita no abismo, ao mesmo tempo – atrai uma corja inumerável de parasitas que refletem a sociedade, vista no seu lado mais negativo, que, por sua vez, num espelho de lente, se reflete, aumentada no casal Sofia e Palha. Esse jogo de imagens refletidas umas nas outras é como um labirinto de enganos que prendem, enlouquecem e matam Rubião com seus brilhos falsos e suas figuras invertidas.
Mascarados pelo status e pela riqueza, Sofia e Palha vão subindo, na escada social, à proporção que quebram ética, valores, vínculos... Sabem de cor todos os fios do tecido com que costuram sua ascensão, usam Rubião e o descartam com facilidade, quando já não havia o que tirar dele. Blindados pelo conhecimento das regras que garantem a invulnerabilidade no jogo, consomem, mas não são consumidos pelo sistema e terminam encastelados no topo da pirâmide de onde observam a demência do personagem central, com escárnio. Nesse jogo mortal, dentro do labirinto, só Rubião não conhece as regras...
O propalado adultério de Sofia, que se adivinha sem se realizar, nada mais é do que uma estratégia de ataque: ela é cúmplice do roubo de Palha, favorece o desequilíbrio da vítima, fere-a, apressa sua confusão mental e golpeia-a mortalmente, soprando-a, com a cara limpa e o discurso correto dos inocentes... O marido a usa, ela o usa e os dois usam o desejo recalcado de Rubião para ganharem o jogo dentro da sala de espelhos que brilham e invertem valores.
As pressões desse jogo de martírios são poderosas: elas não só potencializam os germes de loucura internos de Rubião, desde a herança ambivalente de Quincas Borba, mas também maltratam o leitor, fazendo-o antever a pilhagem, testemunhar o crime, sem poder ajudar a vítima.
No final do jogo, na sala de espelhos, não há vencedores: Sofia, Palha e companhia sobem para baixo, Rubião morre e o leitor se entende partícipe.
2 Comments:
Flávia, estou numa fria. Como ir para um café com você, se li apenas um reles conto do Machado?
Depois das crônicas machadianas, estou me sentindo 39% mais burro que o normal.
Sama, seu criado.
Este comentário foi removido pelo autor.
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