Uma história sobre tudo - 2
Não houve rumores. Minha irmã Lívia e seu marido o viram no Fórum de Custódia. Falaram dele naquela confusão da chegada de Caio e Vitória. Imagino que isso levou Débora a pensar durante um tempo que não consigo precisar. Aí, nem sei quando, anunciou:
– Vou adotar Ricardo.
A partir daí, começou a escrever um diário para registrar os passos, as correspondências e os diálogos com a moça do Conselho Tutelar e o juiz. Falaram-se por telefone e, no meio da semana, ela me disse:
– Sábado, vou ao interior conhecer Ricardo.
Não sou mulher de abandonar uma irmã na porta da maternidade. E, no dia marcado, fui com ela ao abrigo. Meu filho Daniel foi conosco de bússola e de bom que é. Fizemos uma confusão tão grande na saída que nos atrasamos. Quando entrei no carro, vi o diário, perguntei o que era aquilo e pensei, depois que Débora disse, “Ele não vai nem se importar...”. E seguimos.
Quando passamos por Escada, ela contou que já tinha corrigido umas provas de vestibular para uma faculdade de lá. Houve uma questão que pedia um adjetivo que substituísse a expressão “que não pode ser habitada”. Vários candidatos escreveram “anecúmena”, e a comissão precisou procurar no dicionário para saber que estava certo. Seguimos. Duas horas depois, chegamos.
O abrigo é uma granja onde vivem cerca de quarenta adolescentes. É dirigido por um padre que tem cara e nome de anjo. Gostei dele porque, quando Débora disse que ia adotar Ricardo, ele a aprovou com olhos tristes e doces. Há uma casa maior, com um alpendre sem cadeiras, de tijolo aparente, e muitos quartos de um lado, um jardim bonito e, lá embaixo, nos disseram que havia animais e uma horta. Ficamos sentados no chão. A dor que esse abrigo provoca não é na arquitetura, é na alma, apesar do anjo.
– Esse abrigo não tem, eu disse.
– O quê? – Débora perguntou.
– É apenas isso, não tem, como Macabéa, de “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, eu respondi.
Aí ele apareceu. De olhos baixos, calmo, meio sem jeito, recebeu as coisas todas que trouxemos, foi guardá-las e voltou para ficar conosco, com o diário na mão. Com seu jeito manso, falou muito e, lá, acolá, lia o texto. Calava. Falava. Lia. Aí exclamou:
– Vou decorar de tanto ler esse papel e não vou conseguir entender o milagre que está acontecendo na minha vida.
É preciso ver a tranqüilidade de Debe. Tão agoniada que é, está cheia de certezas, feliz, não titubeia, e isso tudo deu a ela uma calma que ela normalmente não tem.
– Fico imaginando o que vocês estão pensando... Tenho quinze anos, todo formado... – ele falou.
– Não estou pensando nada, meu filho, sossegue, Débora respondeu imediatamente.
Nenhum de nós sabia direito o que falar, eu só sabia o que chorar. Olhei aquele menino triste com cuidado, vi que o sapato que havíamos trazido ficaria grande, sabia depois de cor cada detalhe, quando as pessoas perguntaram. Débora não sabia nada. É bom dizer que somos o contrário disso – sou distraída, e Debe, ligadíssima. Mas nesse dia trocamos os papéis. Sem combinar nem ensaiar.
Apenas um menino do abrigo ficou conosco durante a visita. Assim que chegou, notei que ele tinha déficit cognitivo. Num rompante, terminou por me perguntar:
– O que é isso? – e apontou meu colar.
– Uma folha, respondi.
– É de comer?
– Não, é de enfeitar...
Aquele abrigo é um lugar difícil de entender. Difícil de aceitar. A beleza sobrante de minha folha prateada virou punhal de gelo dentro do meu coração. Tenho vontade de chorar quando uma coisa parece “um saco meio vazio de torrada esfarelada”, como Macabéa, de novo, eu que sei de cor que nada é mais essencial do que o supérfluo, até porque nos falta mais do que comida. Mas, naquele lugar, minha folha prateada, inútil, como tudo que é belo, era um escândalo.
Quando nos despedimos, meu filho disse a meu sobrinho:
– Tua vida vai mudar, cara.
– Para melhor, pela primeira vez, ele respondeu.
Saímos em silêncio. Eu mesma não sabia o que dizer. De vez em quando, chorava, enquanto obras na estrada e plantações de cana passavam, ao som dos blues de Daniel.
– Que lugar anecúmeno, ele disse, muitas músicas depois.
Nosso silêncio concordou.
De uma forma que não sei, queria pegar aquele menino triste no meu colo e abraçar como fiz com Caio e, principalmente, com Vitória, que, antes, era a que tinha mais marcas. Queria saber dizer a ele uma cascata de palavras suaves para que ele esquecesse sua vida inteira em lugares como aquele. Queria acertar a pegar a sua mão e mostrar a ele que há um mundo diferente depois dos muros. Além de tudo, queria acertar a fazê-lo enxergar que, nesse mundo, há não só coisas, mas também valores. E que minha folha prateada não é apenas prata, é também beleza.
– Vou adotar Ricardo.
A partir daí, começou a escrever um diário para registrar os passos, as correspondências e os diálogos com a moça do Conselho Tutelar e o juiz. Falaram-se por telefone e, no meio da semana, ela me disse:
– Sábado, vou ao interior conhecer Ricardo.
Não sou mulher de abandonar uma irmã na porta da maternidade. E, no dia marcado, fui com ela ao abrigo. Meu filho Daniel foi conosco de bússola e de bom que é. Fizemos uma confusão tão grande na saída que nos atrasamos. Quando entrei no carro, vi o diário, perguntei o que era aquilo e pensei, depois que Débora disse, “Ele não vai nem se importar...”. E seguimos.
Quando passamos por Escada, ela contou que já tinha corrigido umas provas de vestibular para uma faculdade de lá. Houve uma questão que pedia um adjetivo que substituísse a expressão “que não pode ser habitada”. Vários candidatos escreveram “anecúmena”, e a comissão precisou procurar no dicionário para saber que estava certo. Seguimos. Duas horas depois, chegamos.
O abrigo é uma granja onde vivem cerca de quarenta adolescentes. É dirigido por um padre que tem cara e nome de anjo. Gostei dele porque, quando Débora disse que ia adotar Ricardo, ele a aprovou com olhos tristes e doces. Há uma casa maior, com um alpendre sem cadeiras, de tijolo aparente, e muitos quartos de um lado, um jardim bonito e, lá embaixo, nos disseram que havia animais e uma horta. Ficamos sentados no chão. A dor que esse abrigo provoca não é na arquitetura, é na alma, apesar do anjo.
– Esse abrigo não tem, eu disse.
– O quê? – Débora perguntou.
– É apenas isso, não tem, como Macabéa, de “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, eu respondi.
Aí ele apareceu. De olhos baixos, calmo, meio sem jeito, recebeu as coisas todas que trouxemos, foi guardá-las e voltou para ficar conosco, com o diário na mão. Com seu jeito manso, falou muito e, lá, acolá, lia o texto. Calava. Falava. Lia. Aí exclamou:
– Vou decorar de tanto ler esse papel e não vou conseguir entender o milagre que está acontecendo na minha vida.
É preciso ver a tranqüilidade de Debe. Tão agoniada que é, está cheia de certezas, feliz, não titubeia, e isso tudo deu a ela uma calma que ela normalmente não tem.
– Fico imaginando o que vocês estão pensando... Tenho quinze anos, todo formado... – ele falou.
– Não estou pensando nada, meu filho, sossegue, Débora respondeu imediatamente.
Nenhum de nós sabia direito o que falar, eu só sabia o que chorar. Olhei aquele menino triste com cuidado, vi que o sapato que havíamos trazido ficaria grande, sabia depois de cor cada detalhe, quando as pessoas perguntaram. Débora não sabia nada. É bom dizer que somos o contrário disso – sou distraída, e Debe, ligadíssima. Mas nesse dia trocamos os papéis. Sem combinar nem ensaiar.
Apenas um menino do abrigo ficou conosco durante a visita. Assim que chegou, notei que ele tinha déficit cognitivo. Num rompante, terminou por me perguntar:
– O que é isso? – e apontou meu colar.
– Uma folha, respondi.
– É de comer?
– Não, é de enfeitar...
Aquele abrigo é um lugar difícil de entender. Difícil de aceitar. A beleza sobrante de minha folha prateada virou punhal de gelo dentro do meu coração. Tenho vontade de chorar quando uma coisa parece “um saco meio vazio de torrada esfarelada”, como Macabéa, de novo, eu que sei de cor que nada é mais essencial do que o supérfluo, até porque nos falta mais do que comida. Mas, naquele lugar, minha folha prateada, inútil, como tudo que é belo, era um escândalo.
Quando nos despedimos, meu filho disse a meu sobrinho:
– Tua vida vai mudar, cara.
– Para melhor, pela primeira vez, ele respondeu.
Saímos em silêncio. Eu mesma não sabia o que dizer. De vez em quando, chorava, enquanto obras na estrada e plantações de cana passavam, ao som dos blues de Daniel.
– Que lugar anecúmeno, ele disse, muitas músicas depois.
Nosso silêncio concordou.
De uma forma que não sei, queria pegar aquele menino triste no meu colo e abraçar como fiz com Caio e, principalmente, com Vitória, que, antes, era a que tinha mais marcas. Queria saber dizer a ele uma cascata de palavras suaves para que ele esquecesse sua vida inteira em lugares como aquele. Queria acertar a pegar a sua mão e mostrar a ele que há um mundo diferente depois dos muros. Além de tudo, queria acertar a fazê-lo enxergar que, nesse mundo, há não só coisas, mas também valores. E que minha folha prateada não é apenas prata, é também beleza.
28 Comments:
Ai, Flavia, que dor, que dor... Dói em mim toda folha de prata que já carreguei e carrego porque as tenho carregado como escândalos e não como belezas. Que vergonha de mim e que orgulho de você(s). Meu beijo carinhoso. Fernanda Bérgamo
Flavinha e Debie
vocês me fazem desmanchar em lágrimas e ficar com um aperto no coração por coisas tão imensas, que parecem só acontecer no cinema ...estou chorando pela emoção de saber que isso não é só uma história que alguem escreveu, mas por saber que é uma realidade que acontece com pessoas que eu conheço e amo. Aliás, pensei que conhecia... Vocês são muito mais do que se possa imaginar. Não sei o que dizer diante de tanta grandeza em uma só família ...
Amo vocês !!!
Escrevo mais, depois.
Meu maior carinho
ROSÁRIO
Belo e profundo.Se já sou visitante do blog Assum Preto, agora terei que incluir nas minhas visitas o Trança. Parabéns, aprecio aqueles que dão margem ao que lhes toma e lhes rodeia, tranformando esse sentir em palavras...
Querida Flávia,
Na verdade, meu comentário é a respeito das saudades que sinto das nossas aulas (93) e do agradecimentoà dimensão que você proporcionou a um texto meu. Escrevo de vez em quando, mas não tenho coragem de mostrá-los (ficam escondidos na caixinha de costura que só eu manuseio...)
Muitos beijos,
Paola Maluceli
você me fez chorar.
Luis Manoel Siqueira
Puxa, Flávia, que coisa linda. É mais emocionante ainda porque é real. Seu relato leve, gostoso, divertido e profundo faz a história ficar ainda mais cativante. Boa sorte e fico feliz com a felicidade de vcs! Isso é que se pode dizer: que maravilhoso e inesquecível presente de natal para vcs e para os seus sobrinhos/filhos! Foi realmente o nascimento de esperança e de novidade de vida! Esse é literalmente um feliz natal! Bjs, Lydia
cativou-me lindamente, com intensidade, sem redudância
*redundância, perdão
Flávia,
Finalmente li o segundo texto sobre seus sobrinhos. Já tinha lido o primeiro. Não há o que dizer simplesmente. Há só a possibilidade de dizer o que se sente: ao saber do gesto vivo dos pais; e ao ler o texto da irmã escritora que, pela linguagem, pruduz de novo esse gesto, espessando-lhe o sumo de sentido, a partir de seu corpo vivo, carne amorosamente acolhedora das possibilidades deste mundo cachorrudo e, no entanto, pleno de rumores luminosos sob o parecer batido e insano dos dias. Uma emoção. Meu abraço demorado.
Genésio.
Que Deus te abençoe, Ricardo, junto a tua recém-mãe, que ela te enxugue o corpo das muitas dores e que em breve, muito em breve, como toda mãe e todo filho, vocês só se lembrem da alegria do nascimento.
Beijo grande,
Normanda.
Flávia!
Mais um lindo texto na sua coleção, eu fico mais feliz ainda porque pude ouvir você contando essa história após as aulas, juntamente com minha prima!
Flávia, estou feliz, graças a Deus as provas da segunda fase foram tranquilas e se Deus quiser serei jornalista! Não sei mais como te agradecer pela ajuda que você foi por todo este ano!
Ah, sim, criei meu blog, se puder acessar: www.instavelnefelibata.blogspot.com
Mais uma vez, obrigado =D
João Vitor, aquele menino de jornalismo que você sempre troca o nome ;)
Que capacidade de me tocar! E como vocês são lindas! Mais do que nunca, esse episódio da vida que vocês tão lindamente escreveram/encenaram me deixa orgulhosa de vocês e feliz em saber que ainda há pessoas que fazem a sua parte. Nem tudo está perdido.
Beijo em seus corações!
Alexsandra Karla
Flavinha!
Minha amada, eu só estou aqui para te agradecer pela oportunidade que você me deu esse ano de assistir às suas aulas. Muito obrigada de verdade, viu?! A situação financeira aqui em casa não está muito boa e você ajudou bastante me deixando ver as aulas.
Queria falar com você e te agradecer ainda antes da primeira fase, mas você toda aula fica rodeada de alunos, né? Então nem dá para falar em particular... Rsrsrsrs.
Ah, outra coisa... Você leu o comentário de Mainard sobre os episódios de CAPITU, da Globo? Só lembrei de você... O que você está achando dessa série, hein? Tava doida pra te perguntar isso. Sinceramente, eu acho que Machado infartava se visse a obra dele daquele jeito... Rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs.
Um abraço beeeeeeeeeeeeeeeeeeeem grande!
Que a graça e a paz do Senhor Jesus esteja com você!
Não existem "tios adotivos". Não existem pais adotivos. Existem apenas filhos que dão à luz pais e tios iguais a vocês. Seu texto é sublime. Muito obrigado.
Manoel Affonso.
conta mais....plis!
É tudo isso e mais um pouco, Flávia.
O que para nós pode ser resumido em poucas palavras, para Ricardo é uma vida inteira.
Nem todo mundo está preparado para enxergar o outro. É mais fácil rotular, julgar, desacreditar.
Mas eu ainda acredito no ser humano. E é bom encontrar pessoas que também pensam assim. Estou feliz por você, por Débora e principalmente por Ricardo.
Abração,
Felipe
FELIZ NATAL e um
LINDO ANO NOVO para essa família tão linda e especial !!!
Benvindo, Ricardo!
Debie é a melhor pessoa com quem você poderia cruzar em sua vida!
Abraços a todos
Rosário
Flávia
Conheci seu blog através de Samarone, e estou encantada.
Que histórias emocionantes e melhor, emoções provocadas por realidades.
Luisiana Lamour
Que bonita tu, Debe, Ricardo, Daniel, a tua folha prateando olhares novos... Que bonita esta TRANÇA de gente, de caminhos desencontrados que se encontram e 'a vida muda'.
Que a vida sempre mude e que as folhas permaneçam outonando caminhos emoldurados pelos muros das casas de tijolos e desdobrando primaveras de gente que vai ali depois de uma viagem e oferece o coração como morada nova, como a esperança primeira de uma vida mudar pra melhor.
Felicidade é ler histórias bonitas assim e saber que são não somente escritas, mas tatuadas na pele de gente de verdade e que essa gente é tão minha e tão do universo inteiro...
Que a vida lhes seja justa, é só o que eu desejo...
Beijo no coração aqui de terras africanas...
Acompanhei a saga de Caio e Vitória e agora vim para ler sobre Ricardo. Fico a ponto de chorar a cada "capítulo". Ainda mais por ser real e saber que, vindo de você, tinha que ser mesmo. Sou sua fã desde quando era sua aluna, há uns 9 anos. Sempre venho aqui, mas sempre fico acanhada para comentar.
Só vim dizer que minha admiração cresce a cada 'capítulo'. Um abraço.
Flavinha e Debie
quando vocês vão começar 2009 neste blog? a cada 3 ou 4 dias eu entro ( não tem perigo de ter mais antes deste tempo!) e nenhuma novidade !!!
e aí? vocês começaram uma história e nos deixaram com gosto de "quero mais"!
bjs e sds
rosário
Flávia,sua delicadeza e inteligência são impressionates!
Vim. Vi. Silenciei.
Silêncio puro. De puro espanto.
Abraço grande, demorado, apertado e silencioso.
Haidée
Fico feliz que histórias assim aconteçam mesmo. Parabéns pra vcs....Uma família que tem muito amor pra distribuir.
Tudo de bom.
Beijos. Ana de Fátima
Flávia, você e suas irmãs, seus sobrinhos, seus filhos, enfim, são pessoas muito abençoadas. Tenho o privilégio esse ano de estar aprendendo com você... Deus escreve certo por linhas tortas. Agora eu percebo que era da vontade Dele que eu não passasse no vestibular, para poder encontrar essa professora maravilhosa. Você não ensina apenas literatura, você nos mostra lições de vida, nos ensina a viver nesse mundo cheio de problemas e preconceitos. Esse texto me emocionou bastante! Que Deus abençoe toda a sua família e principalmente, esses pequenos e gandre que estão chegando agora.
Um grande beijo.
Jéssica Gomes
Emocionante minha linda.
O mundo seria melhor se existissem pessoas como vocês.
Deus abençõe.
Amanda
Quem perdeu filhos como eu, antes de nascerem, chora tão profunda e alegremente com o quadro que se pinta, cada vez mais forte, nesta família de guerreiras!
Obrigada pelo compartilhar conosco, esporádicos leitores de uma vida que passa por nós, sem pedir licença, sem incomodar...
Felicidades
Flávia, incrível o modo como você transmite todo esse sentimento. Um turbilhão de sentimentos se passaram aqui, dentro de mim.
Linda sua história.
Assim que cheguei da sua aula, hoje no cursinho, Núcleo, vim correndo procurar seu texto, estou encantada e com lágrimas nos olhos.
Gabriela Freire
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