Março despedaçado
Meu começo de ano foi de uma tristeza avassaladora: fui revisitada pelo abismo, a palavra que uso para as coisas humanas fundas que não consigo entender. Toda vez que isso acontece, como num pesadelo, todos os meus abismos voltam e os reavalio e comparo.
Tenho dois abismos principais: a doença que interrompeu meu filho do meio e o meu casamento; os outros abismos são menos meus, mas de todos nós. Ou seja, tenho, dentro de mim, abismos pessoais e gerais, como todas as pessoas, só que também tenho coragem (minha tia Germana diagnosticou-a como gentil e preguiçosa, com a ajuda de Guimarães Rosa) e jeito (apreciar arte me deu a ferramenta de ver tudo de uma maneira pessoal) para analisá-los e, como já disse, com medo da parábola dos talentos, falar deles (o texto está no arquivo ao lado, em janeiro de 2008).
Meu primeiro abismo é de todos o mais fundo; com ele aprendi que coisas horríveis acontecem com pessoas boas e que Deus, às vezes, não nos ouve, apesar de nossas insistências. Eu poderia não dizer essa segunda parte, mas aí ninguém teria ideia da proporção desse abismo dentro de mim.
Para resumir o que aconteceu, uso um raciocínio de Singer, sobrevivente do holocausto nazista: “Quando estou feliz, lembro o campo de concentração e concluo que não é tão bom; quando estou triste, lembro-o também e resumo que não é tão ruim". Isso mesmo me restou – desde o fato, nunca mais fui feliz, nem infeliz, só alegre, o que é mesmo diferente.
Meu segundo abismo diz respeito àquilo em que acredito e que, na prática, falhou: creio veementemente no amor, na delicadeza e, principalmente, na capacidade das pessoas de se reconstruírem noutra direção. Acreditar nisso, lutando, durante um tempo longo demais, e avaliar o desperdício foi muito doloroso. Mas esse abismo eu consegui pular, era menor. Continuo a pensar da mesma forma, só que, como uma ostra, guardei minhas pérolas e não sei se serei capaz de mostrá-las novamente; agora tenho medo.
Alguém poderia pensar que há uma incoerência entre o fato de me considerar corajosa e o medo, mas essas palavras são pertencentes – não há coragem sem medo.
Uma cirurgia que me abriu o peito e me deixou uma ferida em carne viva me fez revisitar esse último abismo, de forma transitiva direta, e a perda de um sobrinho recém-nascido, de forma transitiva indireta. Mas as cicatrizes começam a nascer...
As crônicas lindas do meu amigo Samarone costumam me inspirar e, na última, ele falou algo em torno de que somos todos do interior e que temos um imperativo de fuga, traduzido na expressão “fugir com o circo”. É verdade.
Ao ler o texto, lembrei-me de uma história hilária de nosso arquivo familiar: um dia, em Taperoá, resolvemos assistir ao espetáculo de um circo mambembe lá chegado, Gran Circo-Tourada, com hífen.
Como nosso dinheiro era pouco, arregimentamos todas as carteiras de estudante, possíveis e impossíveis, e, em alegre corso, chegamos à bilheteria:
– Meia entrada? O que é isso? – perguntou o bilheteiro.
Dá para ver o começo do esquema... Quando entramos, as arquibancadas eram, literalmente, um puleiro, difícil de explicar: havia uma espécie de cerca de pau-a-pique, com uma tora para apoiar os pés, e outra para segurar com as mãos; nela, ficamos todos em pé, num equilíbrio instável e perigoso, como o das galinhas na mesma situação, coitadas.
Os bois do título, aliás, os únicos animais do formidável e inesquecível espetáculo, tão assustados quanto nós, batiam na esquisita estrutura que, juntamente com a do circo, balançava, forjando um terremoto metafórico indescritível e ameaçador.
Todo o circo era uma gambiarra: os sapatos dos palhaços traziam uma ripa de madeira na frente, colada embaixo, provavelmente, porque o circo não tinha recursos para comprar sapatos de palhaço de verdade; as roupas eram mulambentas; a ajudante do mágico estava grávida e, bocejando de sonolenta, coçava seu ventre avantajado; os “touros” eram perebentos; e o número dos palhaços, pornográfico...
No meio do “espetáculo”, me deu vontade de chorar, com pena de tudo e com vergonha de Rafael, um amigo salvadorenho do meu irmão, que estava conosco e tinha ido visitar a cidade e o circo, como turista. Avalie...
Saímos – as três irmãs – estropiadas de temor, vergonha e pena, até porque ficamos com problemas de consciência social por ter conseguido, depois de explicações urbanas, convencer o bilheteiro a nos vender as entradas por metade do preço! E, como pudemos constatar, o circo estava abaixo da linha de pobreza e precisava de uma bolsa-escola para sobreviver.
É claro que, se eu fugisse com um circo, não seria com esse, do qual eu, antes, fugiria, com certeza, se tivesse antevisto a desgraça.
Esse circo é triste e alegre... Como a vida...
Um dia, eu li uma história da tradição popular japonesa que, talvez, me ajude a concluir esta crônica de hoje: um homem, fugindo de um leão, caiu num abismo cheio de cobras, mas conseguiu segurar-se nas pedras e raízes da parede. Sem saída, notou que, ao lado, havia um pé de morango, carregado de frutas, e, então, entre leões e cobras, pendurado, começou a saboreá-las, devagar e com prazer.
Sou assim mesmo: caí em abismos; nem sei como, curei as feridas; as cicatrizes, à flor da pele, me acompanharão... A literatura é meu morango ou meu circo, tanto faz... É com ela que, para suportar, fujo, como o personagem de “Abril despedaçado”. E compreendo.
Para Samarone Lima, de novo.
13 Comments:
Flávia, pelo tempo em que você ficou ausente de seu blog, imaginei algumas tristezas, mas não abismos. O bom é ter, por perto, pessoas que são luz no fim do túnel, ou cama elástica no fundo do abismo. Se eu puder ajudar, conte comigo. O pior do abismo é a queda, mas é sempre bom lembrar que pessoas como você são abençoadas com paraquedas, morangos e circos pelo caminho. Mantenha sua doce alegria. Nosso mundo fica muito feio sem ela. Beijo, Fernanda Bérgamo
Este comentário foi removido pelo autor.
Flávia, quanta delicadeza transformada, quanta simplicidade pra mostrar o que nem sempre sabemos como fazê-lo. Gostei muito o texto, sem palavras...
Gerson Q.
A sua vida é um exemplo. Como mãe, como amiga, como profissional respeitada e escritora. O rastro de luz que você tem deixado, tem iluminado a vida de outras pessoas: alunos, amigos, leitores, parentes. A sua generosidade tem marcado indelevelmente outras vidas. Um exemplo é a minha família. Seus filhos são homens de bem , dignos, vencedores.
Sei que somos sempre o resultado daquilo que sempre nos faltou, nunca pesa o que tivemos de sobra. Reflita.
Eu mesmo tenho orgulho de poder lhe chamar de minha amiga.
Luis Manoel Siqueira.
Sempre que demoro a passar por aqui, me arrependo pacas, vejo o que estou perdendo e geralmente tomo algum susto, de tanta beleza.
Você é uma danada, dona Flávia, uma danada.
Muitos beijos,
Samarone (de novo)
Tia Fla, é com prazer que leio seu blog, ele é de um teor lindo. Uma literatura que tenho prazer em recomendar. Não costumo comentar, mas hoje estou inspirado e me deu muita vontade de dizer que tenho uma admiração muito grande pelo ser FLÁVIA SUASSUNA. Este seu último texto me fez ver os abismos de minha vida, meus meses despedaçados. Meus amigos costumam dizer que é muito difícil ver no meu semblante que estou passando por algum problema. Ao ler teu texto e sabendo quem és posso ver esta virtude em você também. Foi quando me lembrei de uma música de Pe. Zezinho que diz: "Forte é quem grita sem ódio e sem medo a verdade maior,
Forte é quem nunca abandona a ternura nem mesmo na dor,
Forte é quem morre mas não adimite matar,
É forte a semente que morre mas morre pra ressussitar."
Gosto muito de ti viu! VAMOS VENCER!!!!
Oi, Flávia,
Quem te escreve dessa vez é Carol Dubeux. Prá começo de conversa,preciso dizer que adoro te ler no Trança. Li o novo texto e fiquei com um aperto no coração. Nada sei de teus novos abismos mas, vez por outra, também sou visitada por alguns dos meus. À quiza do tema fugir com o circo, lembrei-me de uma frase iluminada de minha avó paterna à qual recorro com uma relativa frequência e que te empresto nesse momento. Nas horas de aperreio,dizia ela: oh meu deus, que vontade de amarrar um pano na cabeça e sair andando estrada afora. Acho a imagem linda e sem saber o que mais te dizer, encerro com ela. Grande abraço, Carol
Flavinha
porque você sempre me toca tão forte que me faltam palavras ???
Você é um morango que a gente encontra, quando esta entre os leões e cobras desta vida!
continue aí, ok?
bjs prá você e Debie
Rosário
Flávia!!
Minha linda tu és uma mulher, mãe vencedora. Não desanime, pois muitos torcem para que sua estrela nunca pare de brilhar. Logo que te conheci vi o quanto teu coração é grandioso e tua alma iluminada.. Isso mesmo a palavra que te descreve ILUMINADA, nunca se esqueça disso. A vida querida as vezes é cruel mesmo, mas sempre vem um outro dia, nem sempre ela é como queremos que fosse, porém sempre tem esses morangos pelo meio do caminho para nos confortar. Deus te ama muito!!! BRILHA FLÁVIA!! que essa luz nunca se apague. Amém.
Amanda
Prôfe, apesar de triste, a crônica está incrível. É impressionante ler e conseguir imaginar tão certinho todas as suas caras e bocas, como se estivesse contando as histórias de Robin Hood em sala de aula...
Estava há tempos querendo ler o seu blog, mas só consegui lembrar hoje. Tentarei acompanhar.
Beijos, Dani (Único)
Esses dias conclui um livro que me fez lembrar muito de seus textos e seus "abismos".A insustentável leveza do ser faz uma analogia entre a leveza e o peso do ser,da alma,das escolhas...Todos temos abismos e adimiro muito a forma com a qual cuida dos seus.Sou sua aluna,novata inclusive;gostei de você Flávia.Belíssima.
Esse texto é daqueles que eu queria que tivesse saído de dentro de mim... acho que pessoa nenhuma escreveu palavras tão realista com a minha realidade como vc!!!!
Parabéns pelo texto!
monica
modesto1107@hotmail.com
Fantástico! Fiquei extremamente emocionada. Cheguei a refletir bastante. Quanta delicadeza, quanto sentimento. MARAVILHOSO!
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