Consuelo
Sou a campeã das histórias fabulosas da minha família, na atual geração. O episódio vitorioso, "Trança e Coque", está aí ao lado, no arquivo, em julho de 2007. Isso, inclusive, é genético, não sei se histórias estranhas acontecem conosco ou se temos um jeito especial de contá-las e, aumentando-as com detalhes hilários e nem sempre verossimilhantes, admito, temos a fama de bons contadores de histórias. Um dos tios de meu pai assumia isso numa boa e costumava dizer:
– Quem manda a verdade ser sem graça?
Mas, no fundo, acho que temos um sentido especial para a atração de duas coisas: o “episódio metonímico”, que acontece com todo mundo e com que todos se identificam, e as pessoas meio loucas que vivem por aí e se aproximam dos incautos.
Quando contamos histórias dentro dessa equação, fazemos o maior sucesso. Um amigo disse outro dia que somos uma “família narrativa”. Adorei isso!
Pois bem: vocês sabem que sou duplamente sócia de minha irmã Débora – neste blog, no qual ela é a diretora do Departamento de Digitação e Marketing, cargo essencial e necessário à periodicidade e à organização geral, e num curso de português para o vestibular, em que ela é tudo, porque sou muito atrapalhada e, se não fosse ela, como ela mesma diz o tempo todo, “essa empresa não iria para frente”. Basta dizer que, no último feriadão da Semana Santa, minha tia Eugênia telefonou, perguntando se eu queria viajar com ela e eu, sem nem me lembrar da aula, disse-lhe que sim, que adoraria ir com ela. A felicidade foi que na quinta-feira, “en passant”, eu disse a Debe:
− Amanhã, vou viajar com tia Gena.
− Você está louca? E a nossa aula?
Tive que ligar e dizer que não podia viajar, e a pobre da Debe passou uma semana se queixando de que o curso fica nas costas dela, que a empresa assim não não vai para frente etc. etc. etc...
A coitada organiza tudo, faz todas as compras, fica toda nervosa e eu, meio zonza, só agradeço e dou minhas aulas.
Um dia lhe confessei que gostaria de ajudar mais nas complicações empresariais e familiares, e ela exclamou:
− E tua vida é refresco, mulher?
Na semana passada, aperreada para terminar logo de preparar minhas fichas para o dia seguinte, derrubei a caixa de grampos, que se espalharam pela sala inteira. Apanhei tudo bem direitinho, mas eles cresceram e se multiplicaram quando se partiram e não couberam na caixinha de volta, apesar de minhas tentativas. Quando cheguei em casa, telefonei logo para Debe:
− Debe, tenho um crime para confessar: derrubei a caixa de grampos, novinhos em folha, que você comprou e não consegui botar de volta... Você me perdoa?
− Se não fosse eu, o que seria dessa empresa, meu Deus, ela exclamou, rindo. E, no dia seguinte, quando cheguei ao curso, estava tudo arrumado e perfeito, como ela gosta.
Débora tem um senso de humor ácido, franco e muito engraçado e sai com cada tirada... Foi dela o diagnóstico de que minha casa é uma “mundiça sem remédio” (no arquivo ao lado, em abril de 2008, "Chá de rolha - 10"), descrição competente e irretocável, vale a pena frisar.
Há algumas semanas, no nosso curso, sistematicamente, começamos a receber ligações de um homem procurando Consuelo. Nossa empresa recém-nascida não tem secretária e, toda vez que o telefone toca, uma de nós ou meu filho Daniel, que nos dá uma mão com as cópias das apostilas, tinha que largar o que estava fazendo para dizer:
− Aqui não há nenhuma Consuelo, foi engano.
Nossos alunos já estavam achando graça quando o telefone tocava e eu dizia, antes de sair da sala:
− Coitado! O bichinho ainda não encontrou Consuelo...
Aí, quarta-feira, aproveitando que era Débora que estava na sala, expliquei melhor:
− Senhor, por favor, já dissemos várias vezes, aqui é um curso de português; há pelo menos dois anos, esse telefone não é mais de Consuelo...
− Desculpe − do outro lado, o homem respondeu.
Desliguei o telefone. Daí a pouco, o telefone volta a tocar:
− Alô! – eu disse, já irritada.
− Desculpe, eu liguei antes, acho que há algum problema no dial do meu aparelho; sem querer, liguei de novo, desculpe, não sou do mal, desculpe...
− Tudo bem, respondi e desliguei de novo.
Aí o telefone tocou de novo. Eu nunca pensei que seria o órfão de Consuelo novamente, achei que fosse outra pauta...
− Alô?!
− Por favor, não desligue! É que sofro de depressão, Consuelo costumava me escutar... Meu nome é Genilson, não sou do mal, como já disse; sou, inclusive, militar reformado...
− Meu senhor, eu sinto muito...
− Como é seu nome?
− ... Flávia... − respondi, com um fio de voz, hesitante.
− Flávia, veja bem, observe, tudo isso é uma conjunção cósmica, você não acha? Será que você não poderia substituir Consuelo? Você não acha que é coincidência demais? Eu telefonar assim, quase sem querer, e você atender? Poderíamos conversar... Quem sabe, até eu poderia estudar português aí... Sofro de depressão...
− Escute, respondi, tentando ser ríspida, aqui é um lugar de trabalho... Não é possível... Até logo... Desculpe... Acho que a conjunção cósmica errou.
Desliguei.
Passou bem depressa pela minha cabeça um verso que escrevi: a mão que suplica do poço carrega uma arma?
Todo mundo que soube da história ficou com pena de Genilson − e horrorizado − porque eu disse que a tal conjunção estava errada. Acho que muitos acreditam que conjunção, quando é cósmica, é certa, mesmo que o observador seja deprimido e desorientado.
Na verdade, tive medo.
Pensei nas cidades grandes, onde tantas pessoas estão juntas e, ao mesmo tempo, tão sós e infelizes... Em como é difícil ser gente, num mundo hostil e desumanizado, onde é mais seguro ter medo... Nos nossos meios de comunicação tão maravilhosos, mas que não nos ajudam a vencer a nossa babel e a nossa solidão... Naquele homem doente, que não sabe pedir ajuda... ou que pede ajuda a quem tem medo de ajudá-lo... ou que, de propósito, pede ajuda à pessoa errada, porque lá dentro a sua dor é o que ele tem, sem querer perder...
A Consuelo, que ajudou Genilson, antes de se cansar e vender o telefone.
15 Comments:
Iupiii, voltei a te visitar, e a Consuelo roubou a cena.
Muitos beijos,
Sama
ps. breve, te levaremos para algo bacana no Pasárgada. Eu, Suco e Gabi.
Não posso deixar de comentar esse post. Fui sua aluna em 2004 e suas aulas era um acalento. Até hoje saber de você, ler seus posts (todos, diga-se de passagem), ou até ver você me causam sorrisos involuntários. E hoje, como estudande de Psicologia, lá da Federal, me deu uma pontada de realismo lendo sobre Consuelo e seu amigo especial. Impossível não lembrar de minha realidade e da profissão árdua que eu esolhi pra minha vida.
Brigada Flávia, por ter me dado mais certeza da vida que eu decidi pra mim =]
Clarissa Correia
Ué, Flávia, você é a "cigarra" mas Débora a "formiga" é quem assobia?
Abraço. Bartot.
Inusitado.
Li esse post segunda de manhã.
Às 17h saí do trabalho no Recife Antigo para fazer um pgto em Boa Viagem, num local que fecharia às 18h.
No caminho, me livrei de duas "trancadas". A 1ª, de um caminhão que por pouco não me acidentou. Diante do 2ª carro (que atravessou literalmente uma rua de 5 faixas, no Pina!!!), também consegui frear, assim como outros três veículos, mas um motoqueiro não teve a mesma sorte. Seguindo meu caminho no meio daquele trânsito caótico, ficou a imagem do corpo do rapaz jogado ao ar. Não deu tempo de ver a queda, eu já estava adiante, se parasse, poderia ocasionar outro acidente.
Cheguei no destino. A criatura que me atenderia não estava na sala e seu celular continuava desativado.
Após uns 20 minutos, sentei diante dela e, enquanto preparava meu recibo, simplesmente desabafou a tragédia do seu fim de semana. "Desculpe, não estou bem e não posso conversar com ninguém aqui sobre isso".
Dei uma de Consuelo. Ouvi.
Ao sair, a história da moça se misturava na minha mente com o corpo do rapaz nos ares...
Ao entrar no carro o telefone pedia mais um momento. Era uma amiga chamando para sentar num bar e brindar seu aniversário. E lá fui eu.
Num instante, temi por mim, noutro, pelo rapaz, no seguinte, não sabia o que dizer, mas o dia terminou com um brinde.
Quando comecei a acessar seu blog, não tinha consciência de quanto apaixonante seria a leitura dos seus textos, muito menos de quanto eles poderiam vir a me ajudar de algum aspecto.Agradeço por tudo,de sua aluna e fã.
Nicole
Consuelo, por favor, não se esconda de mim com o pseudônimo de "Flavia".
Luis Manoel siqueira
Pimpa (penso que posso te chamar assim pois foi assim que te conheci...alguns anos passados), e também Deby (sua diretora do Departamento de Digitação e Marketing e que antes de assumir esse posto realmente essencial era apenas minha colega do colégio e amiga), Dodi muito jovem, Zézo (ou Zézio nunca consegui descobrir como era realmente - só me lembro dele dizendo que meu dedão do pé tinha complexo de superioridade por causa do tamanho exagerado - confesso que não fiquei com traumas - apenas alguns problemas de unha encravada resolvidos ...), a estudiosa Livia, Dr. Marcos (de quem Deby furtava um cigarro após o jantar prá mim ... q vergonha !!! prá mim claro !!! por ter sido fumante e ainda ter aceito mercadoria furtada) e a doce Dona Fá, com seu delicioso Bolo de Laranja que jamais esqueci, e a cada vez que tenho oportunidade de fazê-lo ... ela me vem a lembrança ... realmente uma doce lembrança ) - Será que vcs vão se lembrar de mim ?? ... Acompanho suas passagens através de seus fabulosos textos e de quebra tenho notícias da família ... todos que um dia tive oportunidade de conhecer e conviver e que me acolheram com tanto carinho . Aproveitando a lembrança e a passagem, desejo um FELIZ DIAS DAS MÃES para vcs !!! - Um grande beijo da Márcia
No momento em que nos comprometemos, a providência divina também se põe em movimento. Todo um fluir de acontecimentos surge ao nosso favor. Como resultado da atitude, seguem todas as formas imprevistas de coincidências, encontros e ajuda, que nenhum ser humano jamais poderia ter sonhado encontrar.
Flaviiiinha, meu deus... há qto tempo! Decidi passar aqui depois de muito "lembra e esquece", hehehe...
Seus posts continuam "maravilindos", e vc tem razão, a verdade não tem graça... quando eu rio com algo, tenho a mania de interpretar esse algo (uma piada, pegadinha etc) numa visão mais realista... é tiro e queda, não tem graça alguma. Ai de quem não tem a visão distorcida dessa "verdade", né?
E o procurador do Consuelo, coitado... nem o nome disse, ou disse? Eu tinha uma queda por acreditar nessas conjunções cósmicas, mas desisti. Se ela tiver de ser, será querendo eu (todos nós) ou não... então pra que se arriscar? E ele repetiu que não é "do mal"... me lembrei de uma história de um menino que, no meio da sala de aula, derruba um vaso e grita: "não fui eu, professora!".
Mas me conta, como tens passado? Nunca mais fui no GAME... mas te vejo tão maluquinha, perdida no espaço quando tais lá que sinto que atrapalho de uma forma ou de outra, hehe. Bom, fiquei um pouco preocupada com essa história de o vestibular ser o Enem, os cursos pré-vest vão acabar tendo, no mínimo, que sofrer uma séria adaptação, não é? Mas apesar disso, nem sei se é tão ruim assim essa mudança... tem seus lados bons e ruins.
Enfim, quando puder, manda um e-mail pra mim? Aqui está o endereço: ladyagami@msn.com
Beijos!!
Ah, ele disse o nome sim, é Genildo... disfarça... hehe.
Bjões grandões :***
deu uma pena do tal genilson...
e é bom se benzer depois de contrariar a conjunção cósmica, rs.
beijos, prof.
Já aconteceu algo parecido comigo há 4 anos atrás. Um número desconhecido ligou pro meu celular. Atendi distraída e deparei-me com uma voz desesperada. Não me recordo mais o nome do rapaz, nem detalhes da conversa, entretanto, ele disse que ia tentar suicídio e precisava falar com alguém antes. Achei que era trote, disse que tinha mais o que fazer, desliguei. Ele retornou, disse que tinha me ligado aleatoriamente e que isso deveria ser destino. Hesitei. Pensei nas danadas das conjunções cósmicas e, apesar de meu sol em capricórnio fazer de mim uma massante racional, achei por bem ouvi-lo. Lembro que me contou uma loga história sobre problemas familiares, amorosos e todos esses males que podem atormentar uma alma jovem. Eu tentei com todos meus argumentos de boa ouvinte e conselheira (segundo alguns que me alugam os ouvidos e os ombros) fazê-lo desistir da idéia. Ele agradeceu e disse que já tinha tomado sua decisão. Desligou. Fiquei muito brava, achando que tinha caído numa brincadeira de mal gosto. Depois veio uma angústia com a provável veracidade da história ouvida. O número era confidencial, nada fiz. Esperei outro contato. Minutos depois recebi uma mensagem dizendo que por um minuto eu o tinha feito querer viver mais um pouco, mas que infelizmente isso havia sido breve. Dessa vez, havia um número para retornar. Liguei. Fora de área ou não existente. Pensei que era impossível. Revisei cada dígito, liguei. Fora de área ou não existente. Apreensiva, contei para amigas no dia seguinte com lágrimas nos olhos. Elas me ouviram, me abraçaram e, juntas, decidimos deixar isso na posição de mistério. Dois ou três meses depois, algo mais próximo a mim me fez esquecer completamente o caso do celular. Um amigo do colégio jogou-se de um prédio em Casa Forte. A comoção em todo o GGE foi imensa. Todos se culpavam por não terem sido um pouco Consuelos. Eu também. Lendo seu texto agora lembrei do caso distante e da Consuelo que fui. Não sei o que aconteceu com meu Genilson, mas, seja lá o que tenha sido, a julgar pela mensagem a conjunção cósmica não foi de grande utilidade. A Consuelo aqui provavelmente possui algum defeito de fabricação. Talvez eu mesma seja vítima da babel.
Beijos, Flávia.
Consuelo = consolo...Genildo escolheu bem.
Coitado!
Também não sei qual
seria a minha reação.
ou que, de propósito, pede ajuda à pessoa errada, porque lá dentro a sua dor é o que ele tem, sem querer perder
Só uma inteligência Flaviana para ter essa sensibilidade... Professora de literatura com um conhecimento elevado de psicanálise...Impressionante!!!
Parabéns!!!
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