domingo, fevereiro 27, 2011

Edward Hopper e eu


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Até o dia 10 de abril, estarão expostas, no Whitney Museum de Nova York, 32 obras de Edward Hopper e outras 40 de seus mais significativos contemporâneos. Essa notícia, esta semana, lembrou-me de como admiro e de como me identifico com a obra desse artista. Seus temas – a melancolia, a solidão e a impossibilidade de comunicação – são os meus temas também. As obras de Hopper têm o exato desenho da minha alma; quando as olho, vejo-me por dentro.
Não sei direito como, sem palavras e às vezes sem pessoas, Hopper consegue “falar” desses temas tão difíceis, mas ele consegue. “Cada qual com seu cada qual”, diria a minha amiga Adriana Victor: eu luto com palavras; ele, com tintas...
Já ouvi pessoas dizendo que as obras de Hopper são tristes, mas não concordo. Elas mencionam pessoas sozinhas, como lá dentro cada um de nós é, irremediavelmente, presos que somos daquela diferença que nos identifica como sujeitos. Mas é uma solidão do bem, na minha visão, não desesperada e molhada de lágrimas e, sim, repousada naquilo que lá dentro nos constitui e que é tão fundo, tão nítido e tão sereno que é como uma medula invisível que nos sustém. E que nós não conseguimos de todo expressar, tipo sombra fresca, agasalho, silêncio ou tempo parado e denso, vastidão, não sei dizer... Mas Hopper sabia...
Há duas lendas sobre Hopper que nem sei se são verdadeiras, mas que me ajudam a falar dele (e de mim, como estou fazendo). A primeira é que todo dia ele lia um ensaio do poeta R.W.Emerson, em que havia a seguinte frase: “O grande homem é aquele que, no meio da multidão, mantém com perfeita doçura a independência da solidão”. A segunda é que ele trazia sempre, na carteira, a seguinte citação do romântico alemão Goethe: “O começo e o fim de toda atividade literária é a reprodução do mundo que me cerca por meio do mundo que está dentro de mim”.
Não sei se tudo isso é verdade, mas não importa: há certas ficções que revelam mais sobre nós do que o estudo exaustivo de nossa biologia ou nosso esforço recorrente de retratar o real. E essas duas frases dizem muito sobre os trabalhos de Hopper: ressaltam sua perfeita doçura; sua independência mansa e calada (que pode ser verificada quando, na multidão de quadros da exposição, pudermos, comparando, saber o que ele não escolheu, o que ele não seguiu); seu realismo inegável e sua subjetividade viva e forte...
De difícil classificação, ele é um artista híbrido entre realista e modernista; entre objetivo e subjetivo: manteve-se ele mesmo e não pertenceu a nenhum grupo, nem a nenhuma escola. Caminhou paralelo ao Abstracionismo, ao Cubismo, ao Expressionismo e ao Surrealismo do século XX e nunca se deixou seduzir pela riqueza exagerada dos Estados Unidos, no princípio do século, nem foi arauto dos pobres, depois que ela desmoronou, com a Crise de 29.
Como ele próprio, seus personagens estão ensimesmados, estão presos numa irremediável solidão, mas estão bem, reparados, e são emblemas daquela “perfeita doçura” e daquela “independência da solidão” de que falou Emerson no seu ensaio. São retratados perfeitamente, como se uma máquina tirasse as suas fotos, mas os efeitos de luz e de sombra e o seu jeito de olhar além e mais alguma pitada de magia, que ele botava no seu pincel, revelam uma visão de mundo original.
Hopper fala do mundo, é certo. Mas de uma maneira tão, tão pessoal que quedamos inertes diante dos seus quadros, sem fôlego, admirados de sua idiossincrasia sem par no mundo.
Seus quadros nos prendem, parecem contar pedaços de histórias... Dizem as más línguas que eles falam de dores terríveis e repressões dramáticas. Não sei. Nem importa. Qual de nós, a certa altura, não é portador de dores indescritíveis e repressões difíceis? Ele fala por nós.
De uma beleza funda, como que afogada no silêncio e na solidão, sua obra é sobre esse segredo bom que se guarda dentro de nós e que não sabemos revelar. Às vezes, dentro de um milagre, conseguimos. E, aí, é preciso outro milagre para que seja compreendido. É milagre demais para que aconteça, infelizmente.
É sobre isso a obra de Hopper, sobre pessoas que vão levando a vida, dentro de casas, cidades, quartos, hotéis, estações, escritórios e esquinas ordinários, à espera do milagre inexequível da comunicação verdadeira. É sobre mim.

22 Comments:

At 8:59 PM, Blogger Becky said...

Ameei o texto, e de alguma forma me identifiquei com ele. Falar sobre si mesmo é uma tarefa muito árdua (falo isso por experiência própria) porque é muito comum falar algo subjetivo e mais ninguém entender. Às vezes fico "down" por isso, e sempre é difícil o mundo entender minha linguagem. :/

Fui :*

 
At 9:51 PM, Blogger Unknown said...

"Hopper fala do mundo, é certo. Mas de uma maneira tão, tão pessoal que quedamos inertes diante dos seus quadros, sem fôlego, admirados de sua idiossincrasia sem par no mundo."

Pra mim, ele fala de dilemas universais. Ele trás o pessoal e nos identificamos. Sempre acreditei que cada ser humano é um mundo, mas claro que há uma semente universal. Esse interior que mesmo sendo tão peculiar (e escondido) em cada um, existe em todos nós. Normalmente, não nos comunicamos com o mundo através dele e é por isso mesmo que vivo me perguntando até que ponto as pessoas são reais ou parte do que a sociedade exige de vc. O equilíbrio dessas duas coisas é o que venho buscando nesse momento.

Você se vê em Hopper. Eu, em Fernando Pessoa.

Lindo texto. Sempre tive você na palavra e espero continuar tendo.

Com carinho e uma dor no peito enorme,

Amanda

 
At 11:59 AM, Blogger Romero Maia said...

São teus temas, são meus temas, são temas da Amanda, são universais. Contudo, querida Flávia, preciso admitir, estou querendo me livrar deles. Eles dentro de mim. Seu texto me fez refletir sobre profunda paixão que nutro pela objetividade. Fez-me questioná-la, ver como se trata de um um contrassenso (paixão/objetividade) que me permite seguir sem fraquejar. Mas existe alguma outra forma de sentir, como poucos sentem, e continuar? Não pedimos para sermos gauches na vida. Quero, mesmo com esse fardo, partilhar o único bem especial de nossa economia simbólica. Aquele que é possível oferecer sem necessariamente ter, a felicidade. Abraço forte, Flávia!

 
At 10:57 PM, Anonymous Rogério said...

Flávia, mais um vez um espetáculo de texto!
sou aquele seu aluno que ia fazer letras lembra? sempre nos encontramos em frente ao bompreço e por ultimo na fliporto! Queria muito entrar em contato com você, passei na federal , e em letras!
MEU EMAIL: rogerio.mbn@gmail.com

 
At 11:54 AM, Anonymous Anônimo said...

Eu tive a felicidade de estudar com Flávia no cursinho. Além de ser
uma professora e educadora exemplar ela é uma das pessoas mais
humanas e simples que tive o prazer de conhecer. De vez em quando eu passo no seu blog para matar a saudade de ir para suas aulas nas segundas. Gostaria que você vivesse muito ainda para meus filhos terem merecimento de ter você como professora. Parabéns pelos textos e pela conduta de vida que é inspiradora para mim e contribui consideravelmente para minha formação enquanto ser humano... “ né meus lindinhos?” eitah saudades!!

 
At 12:04 AM, Anonymous Anônimo said...

Sempre que leio teus textos, me convenço de que cada um tem um dom. Então, desisto de escrever. =D

Amei o texto, embora o sinta extremamente melancólico. Quando leio tuas palavras, parece que algo lá dentro começa a apertar, a esmagar a alma. Parece que me prenderam os pulmões e disseram: "te vira agora, querida!"

Se eu, que leio, sinto tamanho pesar, fico a pensar no que sentes tu (ou sentias) enquanto os dedos rolavam pelo teclado.

Saudades de conversar com você, Flavinha... Embora nunca tenhamos de fato parado para conversar.

Abraço apertado!
Yslla.

 
At 9:34 PM, Blogger Alice said...

Um trxto irretocável como de costume. Não pare de escrever nunca!

 
At 10:29 AM, Blogger Beatriz Barros Braga said...

"Os espelhos são usados para ver o rosto, a arte para ver a alma." George Bernard Shaw

 
At 7:58 PM, Blogger João Eduardo said...

Lindo, Flávia. Como é bom que você existe e ter o privilégio de conhecer-te.

 
At 3:04 PM, Anonymous Anônimo said...

Flávia,parece cômico mas soube da sua existência após uma discursão com o meu namorado que estudou em seu curso.E desde desse tempo que venho aqui em seu blog e leio os seus textos,releios e não me canso.Pois a cada dia temos várias interpretações diferentes de um mesmo texto.Queria muito te conhecer pessoalmente.Pois temos Literatura como algo em comum.Sou estudante do 5º período de Letras da UFRPE.PS.: A discussão era sobre a supervalorização dos cursos da área de saúde e a discriminação de alguns cursos da área de Humanas.Ele parou olhou pra mim e disse "Mas você parece com Flávia,defende Letras até a morte" E eu fiquei curiosa para saber quem era aquela Flávia.E descobri que se tratava desta mente brilhante e de uma ótima escritora. Parabéns pelo seu trabalho. Priscila Mireli

 
At 8:59 PM, Blogger Pedro Fermi said...

Professora, seus textos e suas aulas são como o nariz e o cheiro. Sem um pra que o outro?

Foi uma ótima surpresa conhecê-la!

Beijos!

Pedro&Rayana.

 
At 9:13 AM, Anonymous Marcio said...

Hopper apresenta uma solidão sem drama, sem comiseração. Ele mostra a solidão como ela é: uma ascese, uma “descida ao centro de si sem o vento vão das consolações”. Os seus quadros me lembram as solidões de “uns joões batistas a pregar / para as dobras de suas túnicas / seu deserto particular”. Hopper reforça a tese de que “a solidão é a nossa condição ordinária” e que vivemos uma “solidão essencial, que decorre do fato de sermos os únicos a ser o que somos e a viver o que vivemos. A solidão é o preço a pagar por ser si mesmo”.

PS1. O silêncio, azul-cinza-amarelo-bege, que corta as telas de Hopper é inspirador. È um convite à solidão.

PS2: Solitude, com Billie Holiday (http://www.youtube.com/watch?v=jrMp3URM1JI) é uma das “cores” da solidão.

Beijos
Marcio Lucena

 
At 6:34 PM, Anonymous Fernanda Bérgamo said...

Amiga, como este 2011 está tratando você? De longe, torço por um ano leve. Beijos. Fernanda Bérgamo

 
At 5:08 PM, Anonymous patricia beltrao said...

Durante grande parte da minha vida me senti fora do lugar, a náusea acompanhou minha infância, adolescência e parte da vida adulta... acho que já nasci meio velha: me importava demais sofria demais temia demais... tinha um medo horrível de ser de não ser de saber de não saber de querer e de não querer...em muitas ocasiões sentia como se em mim habitasse secretamente um imenso buraco negro....
Durante toda minha vida fui guiada por uma curiosidade maior que eu, a alegria de saborear o cotidiano acompanhou minha infância, adolescência e vida adulta: extraía das pessoas tudo que elas pudessem me dar, meu desejo de saber era tanto que doía... para mim era excitante demais olhar o mundo, sentia na pele o desejo de beber o mundo, tremia de desejo... os rostos me hipnotizavam, todos os rostos... mas principalmente os de olhos tristes, os que exalavam solidão...
A maternidade, culminância de um exaustivo processo de des(construção), foi o momento em que me senti mais sozinha, mas era uma solidão sem angustia... não sei se consigo explicar bem mas depois do nascimento do meu primeiro filho saí da casca, desenvolvi uma força de leoa, um desejo de ser...plenamente... simplesmente... desde então a minha agônica sensação de impermanência foi arrefecendo...
A angustia me fundou e sou grata a ela... se hoje posso ser, se posso buscar prazer a pesar das coisas toscas da vida, se consigo perdoar a mim mesma e aos outros, se posso estar em mim, na minha alegre solidão, se consegui atingir uma serenidade ainda que tênue... é por ter sido essa criança amarga e doce... a minha história é prosaica... mas resultou em uma mulher que se contenta com pouco, mas não é o pouco que importa, é o contentamento...
Escrevi estas palavras olhando os quadros de Hopper, depois de ler algumas vezes o teu texto...Os quadros dele são flagrantes da alma humana, dos dramas pessoais, é a vida mesma escapando pelas infinitas e onipresentes janelas, é o prosaico, o cotidiano, o que é sem importância e ao mesmo tempo fundamental, é a dança do desejo com a insatisfação...é a busca de um sentido para a própria vida....

Patrícia

 
At 8:59 AM, Blogger Antonio Rezende said...

Flávia

Seu texto traz a delicadeza da sensibilidade que não renuncia aos sentimentos mais profundos. Todos passamos por eles, mas, muitas vezes, os deixamos escapar. A solidão e a tristeza possuem dimensões fundamentais para a imaginação e o diálogo com os outros.Como não vivê-los?
bjs
antonio paulo rezende

 
At 9:02 AM, Blogger Antonio Rezende said...

Flávia

Seu texto comunica uma sensibilidade de quem gosta de mergulhos no coração e não na superfície do descartável. Solidão e tristeza são sentimentos fundamentais.Como não vivê-los?

 
At 9:04 PM, Blogger Karla Elizabeth said...

Este comentário foi removido pelo autor.

 
At 9:05 PM, Blogger Karla Elizabeth said...

Que massa!
Às vezes é bom tentar flutuar nesse mundo de tanta gravidade,
é bom tentar observar e entender os corações bloqueados por paredes de concreto.
Os problemas, o cansaço, o cotidiano nos fazem esquecer do essencial: Viver.
Escrever é isso, e Você, Flávia, faz com perfeição. Seus textos trazem uma sensibilidade incrível. Meus olhos se tomam em luz ao lê-los.

 
At 6:25 PM, Blogger Beatriz Barros Braga said...

Cadê os textos Flávia?

 
At 8:46 AM, Anonymous Babi said...

Vir aqui é um paliativo pra minha saudade.

 
At 12:15 PM, Anonymous Paula Maia said...

LINDO! COMO TODOS OS SEUS TEXTOS!!! ACHO QUE ELE SÓ SAIRÁ DE DENTRO DE MIM DEPOIS DE RUMINAR CADA PALAVRA QUE VC ESCREVEU!

 
At 10:26 AM, Blogger tacilimasemproblemas.com.br said...

Uma transmissão silenciosa da alma, é o que pude ver retratada nas linhas que li sobre E.Hopper. A solidão não é significado de tristeza. Muitas vezes,inseridos na imensa multidão, muitos estão mais sozinhos, do que, na solidão retratada dum canto de quarto ou de um sala.
Nietzsche afirmou, em sua descrição de Goethe o seguinte:""Um homem bem nascido adoça nossos sentidos: ele é composta de uma fibra ao mesmo tempo tenra e perfumada. Apraz-lhe somente aquilo que é útil: o seu prazer e o seu desejo cessam quando ele ultrapassa os limites do útil.
Advinha ele todos os meios para reparar os males, afastando-se dos acidentes adversos; aquilo que não o aniquila torna-o bem mais forte.
De tudo o que ele vê, ouve, vive, colhe instintivamente a sua suma; é um princípio de seleção: muitas coisas deixa cair.
Está sempre em sua companhia, ou ocupando-se com os livros, ou com os homens, ou com as paisagens: como discerne, como aceita, como confia, ele também honra.
Reage a toda espécie de fascinação, lentamente, com aquela lentidão que lhe ensinaram uma longa prudência e uma soberba volúpia; examina o enlevo que ascende a ele - está bem longe de ir-lhe ao encontro.
Não acredita nem na "desventura" nem na "culpa": prevê logo qualquer coisa, consigo mesmo e com os outros, sabendo, sobretudo olvidar; é suficientemente forte para que tudo lhe redunde em benefício próprio.
Poderei aventurar-me a indicar ainda um último traço do meu caráter, que me causa não pequenas dificuldades nas minhas relações com os homens?
Eu sou dotado de uma irritabilidade inquietadora... Em relação a esta sensibilidade, possuo tentáculos psicológicos com os quais tateio qualquer segredo, empunhado: toda podridão, escondida no fundo de alguns temperamentos, causada talvez pelo sangue ruim, mas depois dissimulado da melhor forma de educação; resulta-me evidente, quase desde o primeiro contato... A minha humanidade... “E nós queremos viver acima deles, como ventos fortes, vizinhos das águias, entes ao sol; assim vivem os ventos impetuosos”. (Nietzsche)
E nesta compreensão, E.Hopper é para mim, como esta águia. E vc minha cara Flávia,a eterna companhia de si mesma, para muitos configurada como solidão, mas simplesmente, uma alma perfumada, que se sente bem acompanhada de seus livros, "vivendo acima deles," e sem perder a humanidade.
Acredite, amei reencontrá-la na livraria ontem após tantos anos.
Hopper retarta memso sua alma, e a descrição de Nietzsche também. Ao ler sobre Hopper e ver seus quadros, lembrei desta descrição sobre Goethe, e associei a ambos: você e Hopper.
Um grande abraço, Taciana Lima

 

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