domingo, julho 16, 2006

Por que literatura?

Eu era uma vez uma jovem, há muitos anos, com extremas dificuldades de comunicação, que resolveu fugir da realidade, lendo romances atrás de romances, trancada no quarto.
Pensando que a literatura faria o serviço de me isolar, caí, desabada, na idade madura, no abismo da mais nítida compreensão da vida – a literatura é um túnel de fuga invertido!
E, agora, ganho o que queria perder – a vida mesma, descortinada...
Um aluno meu, recentemente, começando, aos tropeços, a ler o mundo, me perguntou:
– Professora, como posso acreditar no que leio nos jornais? Aquilo é verdade?
Eu me vi diante da encruzilhada da minha vida: comecei a ler mentiras e a realidade me foi revelada.
Por isso não acredito em quem escreve dizendo-se isento, morro de medo de quem acha que escreve a verdade, independente de uma versão subjetiva. Todo ato de expressão é, antes de tudo, pessoal e intransferível, e ninguém pode ser totalmente objetivo.
Foram visões de mundo particulares que partilhei, muitas, muitas; e essa pluralidade me ajudou a pensar, a ver, a mudar quando foi preciso, a priorizar e a secundarizar, ou seja, a ser uma pessoa no mundo, sabendo a exata dor e a exata delícia de ser o que é.
A literatura parece não servir para muita coisa: neste mundo tecnificado, científico, materialista, ela parece algo supérfluo e desnecessário; neste mundo de comunicação massificada, a expressão solitária e interpessoal parece não valer.
Mas, quando paro diante da televisão moderna, com seus canais incontáveis e sua programação contínua, fico com saudade da comunicação verdadeira – aquela em que uma pessoa fala porque tem o que dizer de único e necessário, porque escritores sabem o que dizer, e comunicadores de massa dizem apenas o que o público quer ouvir, o que não constitui ato de compromisso responsável.
E o mundo está, hoje, cheio de palavras ao vento, vazias de significado; palavras que servem para vender o que não é necessário; palavras que são etiquetas que valem mais que pessoas; palavras que compram, que se transmudaram em cartões de crédito, que transformaram o mundo num lugar esquisito, onde as palavras “mercado” e “consumidor” substituíram as palavras “justiça” e “ser humano”.
Taí: acho que sei, agora, o que é literatura: é um ato de resistência – as palavras vêm escritas e não voam e nem se perdem; é a verdadeira globalização (não essa massificante, uniformizadora, avassaladora, serpente sub-reptícia, camaleão de que já ouvi falar).
Na literatura, está a comunicação como ela deve ser: plural, necessária, formadora, interpessoal, responsável e libertadora (digo isso porque, inclusive, somos livres para ler até o fim um livro ou para desistir de uma leitura começada).
Também diria sem fronteiras: o importante não é que seja o paciente inglês, húngaro, alemão, francês, indiano; o importante é que seja agente, construtor de sua própria história, e ninguém é capaz de ser agente construtor de si mesmo, sem tomar conhecimento de como outras consciências se formaram.
Somos tranças de gente – nada mais.
E a literatura é busca, resposta, troca de experiências e descobertas. Antes de tudo, entendimento e compreensão.
E, porque li Pasternak, Fernando Pessoa, Flaubert, Isabel Allende, Lima Barreto, Kazantzaki, Durrel, Gabriel Garcia Marques etc. etc. etc. ..., sei como deveria se desenrolar a verdadeira globalização: no respeito das especificidades e, no fundo, das referências construtoras de identidade pessoal.
E, quando vejo o mundo todo uniformizado nos seus padrões de consumo (e mais sério que tudo: nos seus padrões de desejo), tenho saudade de como aprendi o outro: único, específico, pleno de identidade cultural e pessoal.
Porque somos diferentes, solitários, inxerocáveis, insubstituíveis (ontologicamente), mas somos iguais e merecemos, todos, direitos iguais.
E só a partir da quebra da lógica de dominação é possível refazer as relações entre os homens e desconstruir essa falácia da mundialização que significa reeditar processos históricos em que há perdedores e ganhadores.
Sem literatura, esse caminho mágico de formação de consciências pessoais e, portanto, de respeito ao outro, o que será de nós? Como Prudêncio, o escravo de Brás Cubas, perpetuaremos essa lógica da dominação e caminharemos uns contra os outros indefinidamente.
A literatura é um caminho de construção do eu e caminho-de-construção-do-eu significa caminho de respeito ao outro.
Literatura é essa encruzilhada única de eus; é tecido justo e amplo de pessoas; é um lugar de registros de pluralidades, onde aprendemos que o outro e nós mesmos poderíamos ser o paraíso, aqui e agora.
Que possamos, um dia, fazer do mundo um lugar bonito em que seja possível viver em paz. Sem o fio das palavras, no entanto, esse tecido não estará à vista, nunca.
Acho que, ao fim e ao cabo, literatura é sonho também. E neste mundo globalizado, em que tantos acham que sonhar é sinônimo de comprar, tenho saudade do mais humano de todos os verbos que aprendi a conjugar, lendo: sonhar. Equilibrando-me no fio que separa aquilo-que-poderia-ser daquilo-que-a-realidade-é, comprometida, tento, lutando a luta vã das palavras, ajustar sonho e realidade. E la nave va.
Pronto. Acho que levantei um conceito de literatura. Fico com medo de dar por finda a tarefa e ter me esquecido de levantar algum ponto importante. Perdoem. Por mais que se diga, algo não é dito – esse é o motivo de haver tantos escritores dizendo tanto. E de alguns de nós sermos leitores ávidos por ler cada vez mais, tentando, todos, achar a última palavra, completa, que diria tudo. Ah! como a procuro...
Como diria João Cabral, essa palavra é “como a última onda que o fim do mar sempre adia”. Mas nos tornamos pessoas, quando, incessantemente, a buscamos.

5 Comments:

At 12:35 AM, Anonymous Anônimo said...

poxa to de boca a berta tá demais isso...olha vc um dia ainda tem que ser comentarista de jornal..revista..de literatura sei la....tu tem uma sensibilidade com a lingua escreve PERFEITAMENTE BEM É DE ARREPIAR

 
At 5:07 PM, Anonymous Anônimo said...

como tinha prometido pra Debora, comentar aqui.
Adorei o texto, muito bom mesmo.
Abraços

 
At 11:30 PM, Anonymous Anônimo said...

A literatura me ajuda a compreender o mundo que me cerca.

 
At 1:17 PM, Anonymous Ítalo M. Rocha Guedes said...

Flávia, Resolvi recapitular, conhecer seus textos desde o começo. Fico feliz que tenha começado com uma tentativa de conceituar literatura. Acho que isso é comum a todo leitor consciente, tentar entender, nem que seja só para si, por que se tornam melhores, mais humanos, os que leem muito. Imagino a literatura como a única forma efetiva de telepatia - entra-se verdadeiramente na cabeça do outro, espreita-se sem disfarce o que pensa. Quanto mais se lê, mais cabeças se adentra, mais "outros" se conhece com certa intimidade. Esse constante "exercício de alteridade" tende a destruir aos poucos a impressão egoísta de se ser o centro, de se estar sempre certo, de se ser a referência padrão para entender e julgar o mundo e os outros. Não concordo completamente com quem afirma que é preciso viajar muito ou "viver muito" para se adquirir verdadeira sabedoria - acho que sem a muita e boa leitura, sem esse adentrar na mente do escritor, na mente de meu semelhante, a experiência está incompleta. Se fosse mais enfático e apocalíptico, diria que fora da literatura (ou da arte), não há salvação. Enfim, peço-lhe desculpas pela verborragia, entrei para fazer um comentário e acabei, eu mesmo, tentando canhestramente definir literatura. O seu, ótimo texto, como sempre.

 
At 11:24 PM, Anonymous Anônimo said...

Nesse momento da minha vida, encontro-me repleta de dúvidas e incompreensões, então, ler isso aqueceu o meu coração. De verdade.
Mesmo que isso não tenha muito haver com a ideia principal do texto, apenas gostaria de compartilhar esse meu pensamento.
Sempre me questionei sobre qual curso eu deveria fazer no futuro. Não quero fazer letras ou jornalismo por vários motivos e, divergindo das opiniões daqueles que me cercam, eu resolvi cursar medicina. Contudo, antes de ler o seu texto, eu não tinha completa certeza disso.
Tinha dúvidas se era isso que eu realmente almejava cursar, afinal, sempre temi perder o meu poder de criticar e observar. Embora o que eu tenha acabado de afirmar soe completamente soberbo, não foi realmente essa a minha intenção.
A verdade é que eu tinha medo de que cursando uma profissão tão impessoal e tecnificada, eu perdesse esse meu "eu" e me tornasse apenas um produto da massa, que segue apenas técnicas, regras e ordens. Ou seja, alguém que apenas vive para ganhar dinheiro e gastá-lo, em um grande ciclo vicioso, cercada de coisas efêmera e vazias.
Contudo, após fazer essa leitura, eu percebi que, mesmo que eu curse medicina, eu não preciso abrir mão disso e posso continuar, de certa forma, a ser a mesma pessoa e possuir os mesmos pensamentos que o meu "eu" atual, tendo a literatura sempre presente na minha vida, afinal de contas, ela é sublime.
Não sei se eu consegui me fazer ser compreendida, mas enfim, seu texto é sensacional.
APHID

 

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