Humanidade e transcendência
Desde muito pequena, eu me senti diferente. Quando eu tinha apenas sete
anos, no dia da minha primeira comunhão, embora minha mãe estivesse com o belo
vestido que eu pedira que ela usasse, meu pai e meu irmão chegaram à igreja
atrasados, da granja, muito sujos e desarrumados, e aquilo foi uma experiência
forte de “desarranjo” social.
Essa sensação
perdurou confusa e silenciosa em mim até os doze anos, quando minha tia Germana
me explicou como Platão pensava. Um jeito de ser, estar, pensar, fazer abriu-se
para mim. E mais nunca me encaixei, de perfeito, no mundo. Até porque era outro
o mundo que eu, a partir daí, queria. Meu caminho na religião e na literatura foi
a “gratificação substitutiva” que construí e que moldou o que sou e todas as
minhas escolhas.
É lógico que a
minha relação com essas duas “palavras” foi um processo. Tive, por exemplo, de
início, com a religião uma relação de medo, e Deus foi um anjo julgador severo
a quem eu pedi tudo e de quem esperava tudo. Fiz, nesse momento, sacrifícios
inaceitáveis – fui doente à missa, desmaiei de fome na igreja... – com medo
desse Deus esmagador e poderoso, cujo retrato, eu pensei, estava no altar da
Capela Sistina, em Roma, tirado por um fotógrafo chamado Miguelângelo. Eu tinha
pesadelos com aqueles corpos retorcidos, caindo no inferno, e temi aquela mão
erguida em riste durante toda a minha infância.
Na adolescência,
fui estudar num colégio de freiras católicas, e tudo piorou. Elas fortificaram
esse Deus bruto e mostraram-me anulações e castrações como caminhos que segui,
aos trancos e barrancos. Sim, porque havia, no mais recôndito de mim, aquela
discordância ontológica que foi minha primeira célula e que, portanto, me
constituiu.
Aos doze anos, fui
apresentada à literatura, que, junto com as inquietudes religiosas, me deu um
arcabouço de palavras, conceitos, ferramentas e possibilidades para me mover
daí para a frente.
Mas nunca saí deste
cativeiro ambíguo: eu moro e sobrevivo num real bruto, inaceitável, injusto,
errado; mas tenho um horizonte melhor, que me orienta, me faz, me identifica,
me move. Meu sentido é menos (mas também) a sobrevivência neste mundo esconso
do que a visão brilhante desse possível, que me faz perguntar sempre “por que
não?”.
Como há sempre
espaço e jeito dentro de qualquer prisão, fiz, devagar, disso tudo uma espécie
de barco que me permitiu continuar a travessia.
Aos dezoito anos,
tornei-me a melhor aluna de história da escola em que estudava. Meu professor
era marxista e me recontou os fatos numa outra perspectiva e com outras
palavras. E com tal certeza científica, racional e empírica, que me paralisou.
Mas aquilo tudo me serviu para percorrer a história humana e começar a
criar sentidos: inicialmente, posso citar um tempo impreciso quando a tradição
situava o que era esperado de cada indivíduo do grupo, desde o nascimento até a
morte. Nesse contexto, a religião produzia sentidos para a vida e para a
morte e explicitava rituais; os mitos não só explicavam por que as coisas são
como são, mas também “sustentavam” as interdições, necessárias para a
manutenção e mesmo a consolidação dos laços sociais; a família e os
antepassados (e/ou contadores de histórias) detinham um saber que “perpetuava” o
sentido de algumas experiências de que o grupo se apropriava como referência –
chefes, reis, santos e guerreiros tinham suas vidas exaustivamente contadas e
recontadas, e isso tudo orientava escolhas morais, determinava valores,
estabelecia caminhos, dava respostas.
É claro que levanto aqui conceitos que parecem
imutáveis, como numa vitrine, mas eles traziam desvios, tanto que, mesmo
lentas, mudanças ocorreram. Para que essa “equação” se completasse, vários
termos são necessários: o tempo passa muito devagar, as comunidades são
pequenas e exercitam a oralidade, as identidades são fortalecidas e legitimadas
no dia a dia e os homens se pensam como partes integrantes de um todo.
Na Idade Média, por exemplo, o universo era explicado
como se fosse uma catedral: anjos existiam, milagres aconteciam, os astros
moviam-se pelo poder de Deus, e os eventos mais simples eram determinados pelo
Seu dedo, que tudo regia, como a uma orquestra cósmica imutável.
Mas a Idade Moderna começa a “quebrar” essa lógica – a
ampliação do processo de urbanização, as grandes navegações, os descobrimentos
e seus relatos plásticos e escritos, a imprensa e a reforma protestante
fraturaram aquela visão monolítica, e novos paradigmas instauraram-se: o fortalecimento do capitalismo
comercial e a consolidação dos Estados nacionais faziam par com o Absolutismo,
em que Deus fortalecia o Rei que, por seu turno, tinha o “direito divino” de
governar.
Aliás, o romance, como gênero, nasce no começo do
século XVII, com o “Dom Quixote”, de Cervantes, em circunstâncias muito
especiais, mas, realmente, só se desenvolve no final do século XVIII, quando o
Iluminismo se contrapõe ao Absolutismo por meio das ideias de progresso e razão
e da afirmação do homem como sujeito que observa a realidade.
Durante toda a Idade Moderna, observa-se, assim, uma
crise crescente nas relações dos indivíduos embrionários com a tradição e mesmo
com a religião, que, até então, amparavam suas escolhas de vida e sua visão de
mundo. Aí começa o século XIX, período que Eric J. Hobsbawm, sabiamente,
localiza entre 1789 (ano da Revolução Francesa) e 1914 (começo da Primeira
Guerra Mundial) e que, sem dúvida, é o século de ouro do romance.
É que o sujeito ocidental, efetivamente, se desliga da
tradição e da religião (que falavam por ele), e se constata uma compulsão de
falar, escrever, narrar, para elaborar uma nova ordem – a burguesa industrial.
E a literatura se constitui como um contraponto necessário que elucidava novos
costumes, novas relações sociais, novos comportamentos, novos valores; que
criava identificações e que apresentava ideias, teorias, discussões,
argumentos, contra-argumentos, exemplos, experiências. Balsac, Vítor Hugo,
Stendhal, Charles Dickens, Jane Austen, Tolstoy, Dostoievsky, Flaubert, Eça de
Queiroz, lá na Europa, e José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Aluísio
Azevedo, aqui no Brasil, entre outros, construíram uma tradição narrativa em
que um narrador onisciente, linear, cronologicamente ordenado, isento, objetivo
e predominantemente masculino entrou no lugar da “voz da tradição e da
religião”, digamos assim, e trouxe o necessário: aconselhamento, sentido,
explicação, elaboração, ressignificação...
O século XIX foi a
extrema-unção da síntese teocêntrica anterior, com seu cientificismo
exacerbado: onde antes se viam poderes miraculosos em operação, a ciência disse
que havia leis fixas e imutáveis. O pensar científico venceu o religioso, e a
ciência tomou o lugar da religião, que passou a ser considerada irreal,
infantil, primitiva, neurótica, opressiva, irracional. É como se o homem
tivesse aprendido a lidar com suas questões, sem recorrer a Deus como uma
hipótese explicativa.
De fato, a ciência
nos ajudou a derrubar, quando surgiu, aquela ordem religiosa e opressora
dominante, mas os interesses econômicos, ao cabo, conseguiram domá-la e colocá-la
a seu serviço, e ela não fala mais essa língua da oposição de que sempre
precisamos.
Aí as guerras mundiais do século XX instauraram o
malogro da razão e, consequentemente, da ciência e do progresso material. Desde
1914 até 1989 (ano da queda do muro de Berlim), instala-se o
antitradicionalismo, ou seja, as novas gerações desfazem o que foi feito pelas
anteriores. E a quebra da tradição romanesca aparece como consequência disso: a
fratura da lógica, da perspectiva, da linearidade narrativa, da cronologia e
mesmo do narrador; o aparecimento do monólogo interior, ou seja, da narração
não episódica; a transgressão do código da língua; a retração do descritivo; a
quebra das fronteiras entre realidade e imaginação e o narrador que ocupa um
lugar de exceção são traços novos que revelam outra nova ordem, ainda mais
complexa, cheia de conflitos e encruzilhadas.
A literatura parece não fazer parte desse novo século
que substituiu a palavra – o DNA do
século XIX – pela imagem – o DNA do
século XX –, mas os roteiros submersos dos filmes e das propagandas e os
inúmeros escritores que, apesar das dificuldades, deixaram suas narrativas
desconcertantes e desconcertadas apenas nos mostram que continuamos seres
narrativos e que nossos relatos são influência de nosso tempo, ao passo que o
influenciam, como uma cobra que morde o rabo.
Talvez o declínio da função paterna, constatado nos
consultórios, e o apagamento da figura de Deus, nos corredores do Vaticano,
tenham esmagado o narrador tradicional. Mas o fato é que, sem o primeiro,
continuamos a contar histórias e, sem o segundo, a rezar.
Virginia Woolf, James Joyce, Durrel, Pasternak,
Saramago, João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos recontam,
revelam, tropeçam, perguntam, refazem, inquietam, mas falam do esgarçamento da
hierarquia, da responsabilidade de quem não “sofre” um destino, da falta de
segurança, de certeza, de sentido, da relatividade, do medo do tempo em que nos
coube viver, nós, sujeitos do século XX.
Este tempo tem incoerências, é verdade – ele autoriza
a diferença e, portanto, torna desnecessário o relato da experiência do outro,
o que é um ônus – mas ele também traz bônus, ainda pouco visíveis e muito
amedrontadores, consequentemente.
Ao contrário do que
Marx pensava, há nele uma nova experiência religiosa que precisa ser avaliada.
A religião não é um ópio alienador – ela triunfa sobre todos os avanços científicos e tecnológicos e sobre
todos os modelos empíricos e matemáticos que pudemos erguer. Mas ela está diferente.
Rubem Alves, no seu
livro “O enigma da religião”, nos incita a pensar na palavra “imaginação”, que,
diz ele, é uma operação da consciência humana e que, ao lado da arte, da
religião, da cultura, nos faz aquilo que somos – uma ontologia única e diferenciada
da dos animais. Portanto, nossa ordem (histórica, social, psicológica e
espiritual) é diferente da natural, que não dá conta de nossas complexidades;
apesar das tentativas malogradas de estudiosos da sociologia e da antropologia,
que tentaram nos explicar por meio dos
mesmos métodos das ciências da natureza, quedamos surpresos com o reducionismo de suas análises.
É verdade que nem
toda experiência religiosa nos ajuda a pensar sobre nosso tremendum. Mas também o é que temos rezado de outra forma – nunca
deixamos de buscar respostas; de ter coragem, apesar daquilo a que chamo “morte
de Deus”; de ter esperança, apesar dos campos de extermínio; de ter filhos,
apesar das infelicidades gerais... E toda experiência de esperança não pode ou deve ser considerada
religiosa?
Podemos hoje pensar
com mais liberdade, dizer mesmo que a religião está perto da arte, da beleza e
do riso; que ela é o grito dos oprimidos, como o fez Marx; ler os livros santos e seculares, a partir de nossas
ansiedades e esperanças; negociar e realocar suas utopias
e seus desesperos, recriar suas metáforas... sem medo das fogueiras da
Inquisição... Embora seja menor sobre nós a influência da religião, até porque
muito erramos em nome dessa “palavra”, não o é a experiência com Deus, cuja
dimensão tem nos ajudado a escrever a utopia da diferença e da tolerância, novo
sonho velho sobre o qual se montam nossas mais belas ações e nossos mais nobres
pensamentos. E, quando ainda restam energias para a invenção de novas utopias e
novas lutas por um mundo melhor, é porque estamos rezando – com outras palavras
–, mas estamos rezando.
Não quero dizer com
isso que a contemporaneidade é consertada e que, enfim, chegamos a um tempo em
que tudo é justo. Mas que há (como sempre houve) quem lute ainda pelos valores
humanos, apesar das forças que sempre conspiraram e conspiram contra eles, não
sei se mais, tão ou menos fortemente. E que a ideia de Deus ainda nos ajuda
nesse projeto sem fim de um mundo com uma significação humana.
Além disso, nem o
real é neutro, nem pode ser copiado; como diz Piaget, ele é uma organização
mental de que nem sempre tomamos consciência. Freud mesmo nos presenteou com a
ideia de que sonhos têm significado e que seu absurdo é uma forma de revelar
verdades que nos pertencem. Nesse contexto, o tutano da consciência e,
portanto, da religião é a emoção (não a descrição) e o valor (não o fato) –
descrever é o papel da ciência; constatar fatos, do jornalismo. Nossos símbolos
(presentes no pensamento religioso e no artístico) nos unem e falam de uma relação
vivida e a viver, a qual teve ou faz sentido para nós (novos sentidos, é claro,
ainda não nominados; daí a importância de continuarmos em busca de novas
palavras, estendendo o léxico e as possibilidades sintáticas das línguas, como
vêm fazendo os escritores modernos, que colocamos no lugar dos profetas).
Portanto, estamos
condenados à consciência, à cultura, à arte e... à religião. Nenhuma delas é
temporária, nem descartável. Pois só com elas seguimos... É
claro que entendemos tudo isso por meio de conceitos inimagináveis por um homem
medieval, mas seguimos construindo colossos e desastres, como sempre... Porque
acertamos, erramos e porque não nos conformamos, lá dentro, nem com o passado
(seja ele qual for, já que não o recuperamos, a não ser pelas lembranças), nem
com o real presente que nos cerca. E queremos transformá-los num
futuro melhor (que não é apenas uma consequência reta e previsível, pois milagres
insuspeitos acontecem)... É notório que isso faz parte das coisas de que não devemos
falar no contexto atual, pois o discurso mágico está marginal e silenciado ou
trancafiado nas histórias de trancoso ou na literatura. Mas sou uma escritora,
e escritores falam daquilo que todos calam, quando é preciso.
Isso somos nós... Ou é Deus com seus
truques?
5 Comments:
Flávia, você presenteará seu professor com a coisa mais linda já endereçada a ele. Em seu texto, nada sobra ou falta. A menção à substituição doa palavra pela imagem e as referências à psicanálise foram valiosas. Obrigado por lhe ler.
Beijo,
Pedro Gabriel
Concordo com o Pedro. O texto é um presente aos olhos de quem o lê ! Brilhante, ela começa colocando sua própria experiência como conteúdo, o que já dá partida à nossa vontade de ler mais. E continua, trazendo referencias de grandes mestres sobre o tema mas, sempre nos trazendo a necessidade de refletir sobre o que vai sendo colocado, o que, para mim, é a essencia de qualquer livro ou texto que se propõe a nos enriquecer. E ainda finaliza com " Isso somos nós... Ou é Deus com seus truques? "
Este texto me fez querer LER O LIVRO QUE DARÁ, COM CERTEZA, CONTINUIDADE AO QUE ESTÁ AQUI.
Sim, Flávia, porque, depois de ter começado, eu quero ver a continuidade e o final desta sua maravilhosa obra ! Parabéns !!!
Rosário
Este comentário foi removido pelo autor.
Um texto profundo. Com muita identidade e que nos leva a uma profunda reflexão. Amei e me identifiquei principalmente no início. Pois também, por conta da criação, fui "vítima" desses dogmas religiosos de um Deus que castiga - colégio de freiras, cultura limitada de cidade de interior. Mas, ainda bem que descobrimos em tempo que o verdadeiro Deus é o Deus do perdão, do amor, do querer bem. O DEUS que quer a VIDA e a felicidade, seja ela como for, de cada um dos seus filhos. Um grande abraço professora, tenho muita honra e felicidade de a tê-la como minha. :)
Tenho 29 anos e ainda moro com meus pais e não consigo enxergar a perspectiva de vida que eles enxergam.
Pra que danado alguém precisa de tanto dinheiro para viver dignamente?
Por que tenho que usar roupas do tipo tal, celular que faz isso e aquilo, ter um carro (e além de todo o esforço de conseguir ter e mantê-lo ele tem que estar impecável e ser sempre do ano ou no máximo ter três anos de uso)?
Por que tenho que ir a tais lugares, tenho que comprar coisas (publicidade, marketing e tv) e falar sobre tudo com desenvoltura?
Por que tenho que ter um emprego que além de me pagar incrivelmente bem ele tem que passar status e poder? (Caralho, que mundo merda)
Para que o poder e o status tão perseguido durante milênios de maneiras distintas e que hoje gira entorno exclusivamente do poder de compra?
Poder e status para quê? Na minha cabeça só serve para inflar egos e mais nada. Pra que tanto poder se, por exemplo, para sair do chão e voar gasta-se uma quantidade estupenda de energia e de maneira incrivelmente rudimentar? Sinceramente não vejo muito sentido nas coisas.
Pra que tanto poder e status se ainda hoje se morre de desnutrição e sede?
Nosso cérebro (e genes) são incríveis. Eles nos convencem que cada um de nós é super importante, que viver nesse mundinho bosta é super necessário, que nossa existência é importantíssima, por mais que a televisão nos mostre o contrário (incrivelmente).
Estou verdadeiramente convencido de que não tenho nenhuma importância, de que nada do que vejo todos os dias e que empurram de goela abaixo tenha a mínima importância. Minha existência é parasitária, não ajuda em nada e nunca ajudará, quanto mais se eu vestir ou tiver um carro ou até mesmo que eu escreva uma verdadeira obra prima ou descubra como fazer fusão a frio.
Não há sentido na vida e eu só não acabei com a minha porque nem para isso presto e tenho coragem. Minha vida é um eterno vazio circundado por constante dor e sofrimento.
Desculpe-me por escrever isso tudo, mas eu precisava desabafar.
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