Aos nossos alunos - 6
Um dos temas a que recorrentemente
voltei nas minhas aulas neste ano difícil que termina foi o da comunicação
através de nossos vigorosos meios de comunicação – a televisão, o celular, a
internet e, portanto, as redes sociais.
Talvez não seja este o momento
mais apropriado para continuar pensando ou tentando fazer pensar, mas não acredito
que seja possível falar de verdade sem acrescentar algum conteúdo ao que já foi
dito. E é “falar de verdade” que talvez seja o ofício da professora de
literatura e pretensa escritora que sou.
Sei que há agora bilhões de
produtores de conteúdo, possíveis graças aos meios de comunicação mais
formidáveis e baratos da história humana. Porém constato também que estamos
morando na Babel mais absurda de todos os tempos: aquela resultante de um mundo
cheio de gente com meios de comunicação virtual inimagináveis há 20 anos nas
mãos. Mas onde faltam pessoas que consigam dialogar e se entender.
Cada um de nós carrega um pouco de
culpa dessa situação esdrúxula: jornalistas e professores, infantilmente,
abriram mão de suas importantes funções sociais e passaram a dizer o que todos
dizem ou o que todos querem ouvir. O senso comum triunfa, com suas
simplificações, com suas frases feitas, com suas receitas prontas que não dão
conta de nossas complexidades. Os professores de Redação, com o escudo do Enem,
propõem textos prontos, e os alunos acatam o atalho, perdendo a oportunidade de
se colocar, realmente, diante de questões cruciais de nossa sociedade. E o
pior: são levados a pensar que estão vendo tudo melhor quando, infelizmente,
escrevem ideias que lhes foram impostas. E não são capazes de ter as suas
próprias, decorrentes de um processamento de dados múltiplos. O governo acha
que tudo isso se resolve com uma suposta escola sem partido e não com
informação mais plural e mais pluridirecional. E cada um de nós também é
culpado quando não busca canais alternativos ou quando nem sequer escuta quem
pensa diferente.
O resultado disso tudo é apenas
embate de particularismos que deságuam numa sociedade fraturada e incapaz de
construir utopias coletivas, necessárias ao norteamento das ações cotidianas de
cada um.
Ao contrário do que se podia esperar,
nas famosas redes sociais, continuamos violentos e preconceituosos e, nesses
canais globais, escorre nosso ódio de cada dia em tal volume que alguns chegam
a pensar que estamos piores do que sempre estivemos.
Não estamos lendo nada; rotulando a
tevê com mil defeitos, também não estamos assistindo a ela. Presos a outra tevê
que cabe nas nossas mãos e pode ser portada em todo lugar, estamos subordinados
à ditadura da futilidade mais avassaladora de toda a nossa história:
publicidades, piadas, músicas de baixa qualidade, correntes de oração
ameaçadoras, ou mesmo rápidas e curtas frases sem autores ou com errada autoria
circulam tão rapidamente que nossa memória não retém; chegam em tal quantidade,
que enchem nossos celulares a ponto de os travar e inutilizar. E, então,
descartamos... Nada fica, nada permanece... Os meios de apagamento são também
espetaculares – um click em “limpeza rápida” e tudo se apaga. Nada fica, nada
permanece.
Tudo parece fácil, rápido, possível,
alcançável... Na verdade, o nome disso é superficialidade, falta de compromisso
com as verdades internas e com o outro. Sem olhar nos olhos uns dos outros, sem
dizer o que o outro precisa escutar e sem nos dispor a ouvir, estamos nos
afastando...
Zapeando de uma guerra a um concurso
de beleza, de uma criança ferida a uma baleia encalhada, somos capazes de nos
apiedar da baleia... E de acharmos que as guerras virtuais e higiênicas do
mundo de hoje são uma boa prevenção contra a imigração que nos ameaça...
Seguimos sem pensar, escolhemos
atalhos, o canal que todos veem, quem tem mais seguidores, quem vende mais...
Sem atentar para o fato de que escolhemos. E, quando analisamos, apenas
dizemos: o capitalismo move e comanda... Nunca conseguimos ver as nossas
próprias ações que o fortalecem... Estamos uma sociedade cheia de discursos,
não de diálogos. Dizer que a tevê mente, esconde; constatar sua ligação com o
poder; adorar o professor que diz apenas o que queremos ouvir; escolher o mesmo
que a maioria escolhe é fugir – fugir da responsabilidade de ouvir, de pensar,
de retrucar, de discordar, de ser humano.
Esse apetite voraz por hedonismos de
toda sorte está nos jogando num trajeto sem sentido que afogamos em bebida,
drogas e outros desastres. E está nos colocando uns contra os outros.
O nome disso não é democracia. É
tirania. O nome disso não é comunicação. É barulho.
Pensando em vocês, vem-me a
palavra “responsabilidade”. Na minha responsabilidade e na de vocês. A minha
consistiu em alertar vocês sobre esse engodo em que estamos metidos; a de vocês
é de resistirem.
Os jornalistas, os advogados e
juízes, os médicos, os engenheiros, os professores, enfim os profissionais que
vocês serão precisarão agir de modo mais crítico e humano. Vocês terão ainda,
antes de atuarem, uns anos de preparação. Leiam. Leiam livros técnicos para
aprenderem o “como” fazer. Mas leiam também literatura. Ela nos ensina a ver de
outro ponto de vista, a nos identificar com o outro, a não só nos divertir, mas
também vislumbrar um sentido e considerar o outro, a nos movermos juntos,
apesar de nossas diferenças.
Dessa riquíssima indústria cultural
também faz parte uma herança que nos ensina o que já fomos. E todos nós temos
responsabilidade em relação a esse legado: não iremos repeti-lo, é claro. Mas é
preciso conhecê-lo para modificá-lo e tirar frutos dele. Esse insaciável
apetite pelo novo está apenas nos fazendo consumir o que não tem qualidade. O
resultado disso não é felicidade, é depressão mascarada de bem-estar. O nome
disso é hipocrisia.
Espero que cada um de vocês tenha
ficado com, pelo menos, uma palavra minha. Espero que cada um de vocês possa
multiplicar essa palavra. Espero que cada um de vocês possa ter uma palavra
própria. E que essa corrente seja uma direção a seguir, a multiplicar... Nesse
mundo onde a maioria das histórias não tem sentido nem depois, que nosso
diálogo deste ano norteie e, quando nos encontrarmos mais tarde, possamos nos
reconhecer, como o fazem aqueles que partilham e acertam a caminhar juntos,
como aconteceu este ano.
7 Comments:
Como sempre Flavinha você traz a realidade e nos coloca a refletir ...
Querida vou compartilhar seu testo . É o melhor que posso fazer agora.
Muito mais do que um discurso: uma sábia e bela lição para a formação da pessoa e do/da cidadão/cidadã.
Ana Pádua
Flávia, meus cumprimentos, você discursa bem.
Carlos Daconti
Flávia, você é a lembrança viva e ambulante de tudo o que de já existiu sobre essa Terra.
Pedro Gabriel
Bravo, Flávia, pessoas como você fazem a diferença nesse mundo. Sua fala retrata a indignação de uma profissional que age com responsabilidade e se sente remando contra esse lamaçal de medíocres e assassinos dos nossos jovens. Gostei demais do seu discurso. Mais uma vez, parabéns. Um grande abraço fraterno.
Zaina
No Facebook, esse texto obteve mais de cem apreciações. Também teve 20 compartilhamentos e 25 comentários. Cada um mais lindo do que o outro. Obrigada a todos.
Flávia Suassuna.
Minha querida:
Nestes tempos de agora, quando o tempo que posso chamar de meu é um tantinho de nada, uma das coisas de que gosto é do seu blog. Por isso, fico atenta às novas postagens, com um prazer sempre e sempre renovado. Se perco filmes bons, não mais me entristeço: fico feliz quando leio uma análise sua e faz de conta que li tal livro ou vi tal filme - sob a sua ótica cada vez mais lúcida, mais pertinente. E, se não posto alguma conclusão/consideração a que possa chegar no “comments” é tão-somente por causa de uma insegurança que anda a me acompanhar ultimamente.
Continue, querida, pensando e escrevendo bonito, tão bom para nós todos.
Beijo,
Graça
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